sexta-feira, outubro 28, 2022

As casas (ainda tão cheias de vida) de Jorge Amado
-- e memória de outras casas

 


Gosto de ver casas. Gosto de casas. O meu signo é caracterizado, entre outras coisas, por gostar de casas (e por gostar de estar em casa). Algumas das minhas memórias infantis prendem-se com casas.

Lembro-me da casa da mãe do meu melhor amigo, a nossa modista da altura. Trabalhava no que lembro como uma espécie de marquise mas que talvez fosse um anexo pois, para além do atelier propriamente dito, creio que tinha uma pequena cozinha e uma casa de banho. Lembro-me do que ela e a minha mãe conversavam. Eram da mesma idade, amigas. Conversavam muito, tenho ideia que trocavam confidências. Mas a casa propriamente dita era do outro lado do terraço e lembro-me que se abria uma porta cá em baixo mas que costumávamos subir até a um primeiro andar. E tenho ideia que estava sempre praticamente às escuras. Era uma casa triste, silenciosa, com móveis escuros. O meu amigo sempre foi muito reservado e a mãe também o era. 

Lembro-me da casa de um colega da infantil, uma moradia ampla, luminosa. Era uma casa térrea, que tinha portas de vidro por todo o lado e que estavam sempre abertas de par em par, deixando entrar o sol. Tenho ideia de que os móveis eram de madeira clara e que os sofás estavam estofados com tecido floral, colorido, diferente do que eu conhecia. Esse meu colega tinha vários irmãos, um grupinho ruidoso e alegre a quem os pais deixavam fazer o que quisessem. Gostava imenso de lá estar. A casa deles fazia parte de um conjunto de moradias idênticas, algumas habitadas por nórdicos, altos, muito louros, cujas casas eram também claras e luminosas.

Também me lembro da casa de uma amiga, essa já nós no liceu, de que já aqui falei. Era o último andar de um prédio grande. Eles tinham todos os apartamentos desse piso. Aliás, o pai tinha sido o construtor desse prédio cuja base era a sede da sua empresa. Os apartamentos desse último piso estavam unidos entre si o que fazia com que a casa fosse muito grande. Cada divisão tinha uma campainha. Na cozinha -- que não era só cozinha mas quase um apartamento com a cozinha propriamente dita, que era enorme, mais lavandaria, copa e um balcão com bancos altos -- havia um painel com números e onde se ouvia tocar a chamar. Nessa cozinha havia sempre duas empregadas fardadas a rigor. E eram essas empregadas que tomavam conta da casa. A mãe ou estava lá numa grande sala vedada às crianças ou tinha saído. Se o pai por lá passava cumprimentava-nos com alguma breve simpatia. A minha amiga tinha um quarto enorme que era uma suite e tinha uma zona que antes era para brincar e que se tinha transformado em zona de estudo. Os pais iam várias vezes por ano a Londres fazer compras. De lá traziam roupas para os filhos, brinquedos, estojos, forras para cadernos e livros, canetas, adereços para os cabelos dela, tudo colorido e moderno, completamente diferente da monotonia baça existente, à data, no nosso país. Estar em casa dela era como ir a um parque de diversões, tudo tão diferente da minha casa e das casasque eu conhecia. Tinha havido uma tragédia na família dela e, por isso, a mãe se fechava tanto. Mais tarde, já eu era casada e com filhos, soube de uma nova tragédia na família. Há famílias que parece que estão predestinadas à tragédia e isso é demasiado triste. Quando me lembro dessa casa, recordo-a à luz dessas tragédias.

Uma outra casa e da qual também já aqui falei era um solar de uma quinta não muito longe da minha casa. A mãe da minha amiga era deputada e de vez em quando víamo-la chegar ou partir num carro grande com motorista. Do pai não me lembro. A minha amiga era uma de uma meia dúzia de irmãos. Ela e as irmãs usavam tranças. Dos irmãos não me lembro bem, eram rapazes independentes. Estavam todos, eles e elas, por conta própria. Lá em casa também só me lembro de ver empregadas, fardadas como era costume. Havia um pomar muito grande, havia cães, havia anexos, não sei se não haveria cavalos, mas entrávamos logo, não me lembro de andarmos cá fora. A casa tinha uma coisa que me fascinava. Dentro de casa, tinha bancos de pedra de cada lado das janelas que eram altas. E, na entrada, tinha vários painéis de azulejos em tons de azul. Cada irmão tinha o seu quarto e, quando lá estávamos, nenhum, rapaz ou rapariga, se aproximava. Era como se fossem de famílias distintas. Cruzávamo-nos, dentro de casa, com outros miúdos que mutuamente se ignoravam. Eu tinha a sensação que aquela casa não acabava e que nunca se sabia bem quem é que lá vivia.

Durante muito tempo sonhava recorrentemente que chegava a uma casa e que era uma casa muito grande, quase sem portas, em que se andava de divisão em divisão como se a casa não tivesse fim ou fosse circular. De umas divisões saía-se para o jardim mas como a casa era assim, havia jardins que se viam de um lado mas não de outro. E todas as divisões estavam requintadamente decoradas, com peças que me deixavam espantada. Ia de uma para outra, surpreendida, com vontade de não sair de lá.

Na verdade, as minhas casas, quer a do campo quer esta, seguem um pouco esse conceito: são casas muito abertas, em que se circula quase como se a casa fosse circular. Isso traz algumas dificuldades, em especial quando nos queremos isolar pois, em especial se está mais gente em casa, há sempre alguém a passar. Se tenho reuniões. é mais do que certo que o cão anda por ali ou que o meu marido chega e passa por perto, com cuidado para não ser visto. Da porta de entrada até a grande parte das divisões é circulação franca, sem portas.

Talvez porque os sonhos, de certa forma, se materializaram, não tenho sonhado com aquelas maravilhosas casas. Adorava aqueles sonhos, gostava imenso de sonhá-los.

O mais parecido que agora tenho com isso é passear por aqui à noitinha. As luzes acesas dentro de casa, as janelas a deixarem ver tudo lá para dentro. Casas bonitas, a intimidade ali à vista, gente cozinhando, gente na sala vendo televisão. Ontem vi uma biblioteca que me deixou com vontade de ali ficar a olhar para dentro de casa. O meu marido chama-me. Claro. Também não gostaria de ver estranhos parados na rua a olharem para dentro da minha casa. Mas talvez os donos não se importassem, talvez até me convidassem a entrar. Adoraria.

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O vídeo que hoje partilho mostra as casas de Jorge Amado. Sabendo como ele gostava de receber, é fácil ver as suas casas e imaginá-lo, a ele e à mulher, em animadas tertúlias com os amigos. É a filha e a neta que aqui mostram as suas casas.

Paloma Amado, filha de Jorge Amado, mostra as casas do pai pelo Brasil e mundo | Casa Brasileira

O escritor brasileiro Jorge Amado deixou grandes obras literárias e sua marca por todos os lugares que morou. Paloma Amado, filha do autor baiano, abriu as portas da casa dele na Bahia, onde atualmente funciona um museu, projeto feito pelo cenógrafo Gringo Cardia. Jorge Amado também morou em Copacabana, no Rio de Janeiro. O apartamento do escritor foi vendido, mas alguns itens foram mantidos pelo comprador para manter a brasilidade do local, como o sofá e objetos de arte popular.

Outro endereço de Jorge Amado foi Paris. Ele viveu durante um tempo em hotéis na cidade francesa logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1947. O escritor encontrou amigos, como Maria Bethânia e Marcello Mastroianni, por lá e transformou o local em sua casa, sentindo como se tivesse na Bahia.


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Pinturas de Lee Krasner ao som de 'Casa no Campo' interpretada por Elis Regina

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Um dia bom
Saúde. Aconchego. Paz.

4 comentários:

  1. Confesso que também gosto de casas e de estar em casa. Belo texto.
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    Feliz fim de semana.
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Gostei muito deste texto sobre as casas que guardam memórias e as memórias que guardamos delas.
    É uma história de casas que conheceu e do que ainda lhe fazem sentir.
    Hoje eu não gosto de ver casas. Onde entro estão vazias de gente que partiu e cheias de coisas que deixaram.
    É muito doloroso dar volta às memórias dos familiares que partiram.
    Mena
    maiordesessenta.bkogspot.pt

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  3. Olá - R y k @ r d o -

    A casa é um refúgio, um ninho, um aconchego. Não é?

    Um bom fim de semana também para si.

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  4. Olá Mena

    Eu, quando os meus familiares mais queridos morrem, gosto de ficar com coisas que me trazem boas memórias deles. Aqui à minha frente, enquanto escrevo e vejo televisão, está um pequeno móvel de madeira, uma estante pequena com portas de vidro. Foi o meu pai que fez.

    A profissão não tinha a nada a ver com carpintaria. E todos achávamos que ele era péssimo para trabalhos que requeressem 'jeito', cuidado, paciência. Contudo, quando se reformou, começou a fazer coisas que nos deixaram surpreendidos. Fazia desenhos técnicos, projectava as peças com medições e cálculos, um rigor milimétrico. Coisas da sua profissão. E depois executava como se fosse um edifício, com método e sistematização. Saía tudo muito bem. Tenho vários desses seus pequenos móveis. A minha casa tem pois, bem presente, coisas que guardam a sua memória.

    Obrigada pelas suas simpáticas palavras.

    Um bom fim de semana.

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