Sempre gostei de ter as janelas abertas. Quando morava na cidade, uma vez entrou um pombo para a sala de baixo. O meu marido passou-se, disse que já me tinha avisado mil vezes que isso poderia acontecer. Foi o fim da picada para o tirarmos de lá. O pobre andava assustado, às voltas. Vimos o caso mal parado.
Mas pior foi a gaivota. Grande, umas asas enormes. Já estávamos preocupados, com pena. Já o contei aqui. Dei uma de S. Francisco de Assis.
(Não sou de listas mas um dia hei-de começar a fazer uma com as cenas incríveis que já aconteceram na minha vida, começando pelas vidas que salvei. Não sei se no caso da gaivota é correcto dizer que lhe salvei a vida mas, pelo menos, salvei-a de um mau bocado)
A gaivota estava presa na varanda pois, quando queria abrir as asas, batia nas paredes e não conseguia elevar-se para dela sair. Aquela varanda, em concreto, é uma varanda estreita. O meu marido tentou ajudá-la mas ela assustava-se, não aceitava ajuda, fugia. Estava num desespero (ela -- mas ele também). Gritava, esvoaçava a batia com as asas de um lado e do outro. Uma coisa que fazia impressão e pena. Pensei que tinha que acalmá-la. Então fui-me aproximando devagarinho. Pedi ao meu marido que me trouxesse uma vassoura. Comecei a falar com ela, a falar baixinho. Fui-me aproximando, ela foi ficando mais calma. Eu falando, apaziguando, dizendo que ia ajudar. Ela já sossegada a ouvir. Depois deitei a vassoura no chão e tentei que ela se pusesse em cima da parte mais larga. Assustada, a escapar-se. A tentar esvoaçar. E eu falando baixinho. Até que ela aceitou que eu deslizasse a vassoura sob as suas patinhas. E eu: 'Schhh, não tem medo, só quero ajudar, schhh...'
Isto pode parecer inverosímil e, ao escrever, até a mim me custa a acreditar. Mas aconteceu. O meu marido assistiu a tudo. Atónito.
Quando ela já estava em cima da parte mais larga da vassoura, comecei a ver se levantava a vassoura na horizontal. Queria pô-la ao nível do parapeito para que pudesse voar. Assustou-se com o movimento. Eu a segurar a meio do cabo, muito perto dela e sempre a falar baixinho, 'não se assusta, não tenha medo, vou ajudar...' e ela sossegadinha, assustada, trémula. Até que comecei a conseguir levantar e ela quase imóvel. Muito pesada. Tive que segurar o cabo mais perto. Ela já confiando. E eu a fazer um esforço enorme para não a deixar cair. O meu marido em silêncio a observar. E eu sempre falando: 'está a ver? está quase... não tem medo, já vai voar..'. Até que consegui elevá-la até ao ponto em que ela percebeu que já podia abrir as asas. E voou.
Quando me lembro, sinto-me emocionar. Um momento extraordinário.
In heaven temos mais cuidado. Já bastam os aranhiços, os bichos de conta, as melgas, as borboletas. Agora pusemos redes mosquiteiras, já é outro sossego. Mas há uns meses entrou um ratinho pequeno. E às vezes encontramos pele seca de cobra lá perto. Não quero pensar se um dia alguma entra. Isso assustar-me-ia.
Aqui nesta casa só hoje vi um bicho aqui dentro. Não. Já uma vez entrou um passarinho lá para cima. Pusemos as janelas todas abertas e lá conseguimos que encontrasse o seu rumo.
Deixo as janelas a bascularem de dia e algumas à noite. Mas à noite os estores estão para baixo, não entra nada. Mas, de dia, se calhar entram.
Há pouco vi um bicho aqui na sala. Não sei se era grilo, se quê. Matei. O urso felpudo nem aí. Coisa pequena destas não lhe faz mossa. Eu aqui sozinha na sala é que tive que resolver a situação. Quando, de manhã, contar ao meu marido vai fazer logo aquele número de me perguntar quantas vezes já me avisou. Mas gosto de ter as janelas abertas para entrar a luz e o ar da rua.
Custa-me matar bichinho. Não me fez mal nenhum. Porque o matei? Nem sei. É daqueles gestos reflexos em que a gente nem pensa. Poderia ter pegado nele com um papel, aberto a janela e atirado lá para fora. Foi uma crueldade desnecessária.
E hoje não tenho mais nada para contar. As reuniões foram demoradas, pouco tempo sobrou para mim. Os telefonemas também. Estou naquela fase do ano que, quando o telefone me toca depois das seis e tal, já fico irritada. E quando o tema é chatice só me apetece é pedir que me deixem em paz. Ou, como diz o José Leôncio lá do Patanal: 'larga da mão'.
Mas digo isto por dizer. Na verdade, não tenho de que me queixar.
No outro dia, ao fim da tarde, fui a uma consulta de rotina. Como sempre, o médico estava atrasadíssimo. A televisão estava sem som. Então, ia -- discretamente -- observando as outras pessoas. Nada de especial para observar. Até que uma senhora já de uma certa idade recebeu um telefonema de uma prima e o atendeu em alta voz. Todos na sala ouvimos tudo. E o que ouvi deixou-me nem sei como dizer. Não quero contar pois foi há poucos dias, não quero cometer uma inconfidência. Quem estava na sala ouviu o que eu ouvi mas a senhora que estava a falar não foi avisada de que a chamada estava em alta voz. Quando a gente pensa que tem um problema esquece-se de relativizar e pensar que há quem não tenha um mas, sim, vários problemas. E nenhum deles problemazinho, tudo problemazões. E, no entanto, nada fatalista e sempre simpática e generosa, preocupando-se com a saúde da prima com quem estava a falar.
Enfim. A vida de algumas pessoas, de facto, não é nada um mar de rosas.
Mas como estamos a entrar no fim de semana, não é altura para carpir ou reflectir. Não é altura para filosofias ou metafísicas.
Mas para arquitectura, com vossa licença, já pode ser.
Deixem, pois, que partilhe dois vídeos bons de ver, em especial por se situarem em extremos opostos
La Casa Rosa, uma casa moderna projectada por Luigi Rosselli Architects, um prestigiado e galardoado arquitecto
E agora algo de verdadeiramente fabuloso.
O Zaha Hadid Architects projectou o centro cultural de Xi'an para evocar "vales sinuosos". Foram divulgadas imagens do Jinghe New City Culture & Art Center, que abrange uma autoestrada de oito pistas em Xi'an, na China.
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Imagens da vida selvagem do Guardian
If you try to elevate people's virtues, be aware that you will also elevate people's vices.
ResponderEliminarWhy is this fraught with danger?
Because whilst virtues are open source/public, vices are proprietary/private - you can always estimate what virtues' may bring, but you will never know what vices' can hide.
65 (excerpt)
Taoist rulers of old did not enlighten people but left them dull.
People are difficult to govern because they are very clever. Therefore, ruling through cleverness leads to rebellion. Not leading through cleverness brings good fortune.
Know these two things and understand the enduring pattern. [...]
Tao Te Ching by Lao Tzu (Stephen Addiss & Stanley Lombardo - English version, 1993)
Ora bem, K.,
ResponderEliminarTarefa difícil a de educar. Educar é abrir mentes e, quando uma mente se abre, em teoria tanto se abre ao bem como se pode abrir ao mau. Mas é em teoria. Na prática, a mente abre-se conforme a vontade e a maneira de ser de quem a domina.
A vida é curta demais para a enchermos de receios, para a torturarmos com excessivas cautelas e rodeios.
Viver, ouvir os pássaros, partilhar a alegria das crianças, acreditar em dias melhores (mesmo que não existam razões para isso), esperar pelo feliz acaso que, tantas vezes, tudo vai conseguindo harmonizar. Isso já é bom.
Um feliz dia de domingo para si, K.