Preferia que fosse sobre obras não entregues nas editoras ou obras entregues e rejeitadas. Ou obras perdidas. Obras esquecidas. Obras mal amadas por quem as gerou. Mas não noutros tempos. Agora, ainda. Todos os dias, algures, alguém a acabar uma obra, a sua obra, e depois, pelas voltas e desvoltas da vida, ninguém vir a saber de nada. E, no meio de tantas obras abandonadas pelos tempos, estarem obras primas. Para sempre esquecidas.
Ou músicas. Ou pinturas. Ou fotografias.
Por vezes acontecem milagres e muito tempo depois, por um acaso que apenas um qualquer deus pode ter inspirado, essas obras perdidas aparecem, ressuscitam. Aconteceu isso com as fotografias de Vivian Maier. Mas é muito raro.
A vida é uma combinação infinita de acasos. O milagre é o que acontece e tudo o que acontece é um milagre. Tudo o resto fica por acontecer.
Bastava, por vezes, um gesto de apoio, bastava um passo dado numa outra direcção, bastava a pequena coisa que não aconteceu naquele momento.
É como os amores. O que aconteceria se, num certo dia, num certo instante, coexistissem no mesmo espaço aqueles que, se isso tivesse acontecido, teriam sido amantes para o resto da vida?
Jamais o saberemos.
O que sabemos é que a cada fracção de segundo acontecem acasos, acasos, acasos.
Uma vez, há muitos anos, o responsável de uma área da empresa em que eu trabalhava, ia reformar-se. Nos meses anteriores eu tinha trabalhado com um outro que me tinha parecido muito responsável, muito conhecedor. Propus o seu nome e, embora na altura, a decisão não fosse minha, a minha opinião foi tida em atenção. Ocupou, efectivamente, o lugar deixado vago pela reforma do outro senhor, progrediu profissionalmente e foi bastante bem sucedido. Poucos anos depois, soube da vaga de um director daquelas áreas mas numa outra empresa do grupo. Perguntaram-me se recomendava alguém. Voltei a pensar nele. Seria um salto na sua carreira. Falei nisso. O administrador da altura achou bem. Privilegiava-se a rotação entre cargos. Seria dar uma oportunidade a alguém muito responsável. Além disso, ele tinha recebido um curriculum vitae de um jovem que poderia ocupar a vaga e vir a ser uma lufada de ar fresco. Com a luz verde do administrador, falei na oportunidade de um lugar de director àquele tal. Hesitou. Não era ambicioso, preferia viver na sua zona de conforto. Insisti. Não desperdiçasse a oportunidade: a água não passa duas vezes de baixo da mesma ponte, dizia-lhe eu. Ele reticente. Aliciaram-no, incrementaram as condições. Acabou por aceitar. Agradeceu-me muito por mais uma vez me ter lembrado dele. Para o ex-lugar dele foi o tal rapaz novo, vindo de fora, de uma outra realidade, desconhecido de todos. Este rapaz, agora homem feito, por mais uma sucessão de acasos, é agora o pai de alguns dos meus netos.
Acasos, acasos, acasos.
Ou as casas em que tenho vivido -- outros acasos. Nunca quis casas feitas de novo. Sempre preferimos casas existentes. Mas, com as nossas exigências, nunca descobríamos o que nos agradasse. Quando andávamos à procura de uma casa no campo, vimos dezenas, ao longo de anos. Ao fim de semana íamos à procura de casas ou quintinhas. Tenho ideia que ainda não havia as remax, era, century 21 e etc. O que estava à venda tinha uma tabuleta e a gente ia a passar, via o número de telefone e ligava. Até que num fim de semana de chuva, não fomos, estava mau tempo para andarmos à procura. Então, estava em casa a ver o Expresso e, às tantas, vi um anúncio. Não era nada do que pretendíamos nem era minimamente nos lugares onde até então tínhamos andado a ver. Zero. Mas bateu-me uma daquelas intuições que me chegam com carácter de urgência. Telefonei. Perguntei se podíamos ir ver nesse dia. Fomos. E imediatamente nos apaixonámos. Todos. Os miúdos numa alegria. Os papéis da casa e do terreno não estavam em ordem, uma confusão, nem certidões nem registos, a maior barafunda. Quase queriam convencer-nos a desistir. Mas não desistimos. É o nosso querido heaven. Se não tivesse estado mau tempo e eu não me tivesse posto a ver os anúncios, provavelmente a história tivesse sido outra.
E poderia continuar. E se dei exemplos meus foi apenas por facilidade. Qualquer pessoa terá os seus infinitos acasos. Mil caminhos, infinitos caminhos. E nós vamos por um. O que teria sido a nossa vida se tivéssemos escolhido qualquer outro nunca o saberemos.
Devemos sentir-nos agradecidos pelo que temos. Mas devemos estar atentos, disponíveis. Nunca há apenas um caminho.
[O que não sei é se somos nós que escolhemos o caminho ou se, de certa maneira, é o caminho que nos escolhe a nós -- mas isso já seriam outros quinhentos (como agora soe dizer-se).]
The Road Not Taken, by Robert Frost
Fotografias de Vivian Maier na companhia de Nina Simone com Mr. Bojangles
Gostei do texto, UJM: uma daquelas gemas em que o lado Aparente é bom e o lado Bívio ainda melhor.
ResponderEliminarThanks!
" Chamo liberdade à minha ignorância do destino
ResponderEliminare destino ao meu ignorar da liberdade.“
(Agostinho da Silva)
K., obrigada eu. O seu Lado A e Lado B, assim apresentados, são um achado, uma maravilha.
ResponderEliminarOlá Anónimo de Sto Agostinho,
ResponderEliminarNão conhecia e gostei muito de ficar a conhecer. É isso aí. Vou ver se consigo fixar pois são palavras que poderei usar a miúde.
E, qual Aurélio Agostinho, não peque (por agora) muito.