quarta-feira, março 23, 2022

Masha conta a conversa que teve com o pai, o actor e realizador Vladimir Mashkov, público apoiante de Putin.
E eu, aqui na minha santa vidinha, conto parte do meu dia.

 



Sou uma pessoa com sorte. Ali tão perto há cidades desfeitas e gente morta e milhões de pessoas que deixaram ou perderam a família e a casa e os bens de uma vida. Eu, pelo contrário, consigo continuar a viver a minha vidinha de sempre. Não ouço sirenes, não vivo num abrigo subterrâneo nem estou a caminho sabe-se lá de onde, nem vivo numa casa desconhecida num país desconhecido onde se fala uma língua desconhecida. Tenho sorte e sei que a tenho e, por isso, por valorizar esta sorte, sinto-me agradecida. 

À hora de almoço fui, numa corrida, às compras. A seguir ao almoço tinha uma reunião e, por isso, não poderia alargar-me. Estou agora tão desabituada de incumbências variadas que, ainda por cima, pressionada pelo tempo, com medo de me esquecer de alguma coisa, escrevi uma mensagem a mim própria com as coisas de que não poderia esquecer-me: bananas, meias para o meu marido, um presente para a minha mãe, uma coleira para o ursinho, produto para a humidade, talvez já alguma coisa para o pequeno carneiro que, não tarda, fará anos (em vez de 'pequeno carneiro' talvez devesse, antes, dizer 'borreguinho mais fofo').

Quando estacionei no centro comercial, com receio de me despistar e, depois, não dar com o carro, mandei outra mensagem, desta vez ao meu marido, com o piso, o lugar e a cor em que estava.

Claro que tive vontade de ir espreitar os perfumes novos tal como tive vontade de ir espreitar livros novos. E entrei na Natura e vi um casaquinho fino que não era um casaquinho mas uma rede finíssima em forma de quase casaquinho, quase transparente, naquele tom de verde dourado que tanto me cativa. Mas controlei-me. 'Não preciso'. Segui. Ando minimalista e sinto-me bem assim. Tal como quando deixei de fumar me senti orgulhosa por ter deixado vício tão estúpido também agora me sinto feliz por ter deixado de ser consumista. Portanto, de loja em loja, focada exclusivamente naquilo de que precisava, consegui despachar tudo. Para lá e para cá fui na companhia da antena 2. Abri a janela, pus o som bem alto. Boa música, uma injecção de ânimo para a minha alma que tem andado a tender para o meio-apagado.

Nunca falei aqui mas acho que nem precisaria: obviamente acho a maior parvoíce banirem-se artistas, compositores, autores russos (ou de qualquer outra nacionalidade). Espero que quem se vingou de Putin banindo a arte russa rapidamente perceba o disparate e reverta a decisão. A arte está acima da guerra, acima das conjunturas, acima da estupidez humana. A arte é intemporal, é eterna, é a manifestação suprema da liberdade. Banir a arte é não perceber nada da vida. 

E depois almocei muito à pressa, fui para a minha reunião, depois fui caminhar, depois fomos comprar uma pizza. E depois regressei a este meu poiso e partilhei um interessante vídeo sobre os cenários possíveis para o fim da guerra.

E agora aqui estou, jogando conversa fora antes de partilhar um vídeo que me impressionou bastante. Masha, uma bela actriz russa, conta a conversa -- estranha, desagradável, perturbadora -- que teve com o pai que apoia Putin e que não acredita que haja uma guerra. Pelo contrário, acha que a filha, ao criticar Putin, pode ser acusada de traição e aconselha-a a regressar à Rússia. Imagino o medo, a tristeza e a preocupação de uma filha cujo pai apoia um ditador criminoso, num país em que se vive sob o signo do medo e da repressão.

Russian actress Masha Mashkova is speaking out against Russia's war in Ukraine after her father, Russian actor Vladimir Mashkov, spoke at Vladimir Putin's rally in support of the war


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As fotografias do Lago dos Cisnes são da autoria de Alex Axon

A música é da autoria de Tchaikovsky - Concerto Pour Piano No.1 Allegro Non Troppo, Opp.23

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Saúde. Sorte. Paz.

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