Não tenho propriamente saudades. Tenho recordações. Saudades no sentido de querer voltar a viver, isso não tenho. Nem há nada que gostasse de voltar a viver para fazer o que na altura não fiz ou para repetir o momento.
Se, agora que escrevo, tentar pensar em momentos bons que gostasse de reviver apenas me ocorrem instantes. Mas não seria bem reviver o que eu gostaria, seria mais estar de novo dentro daquele momento, agora que sei que aquele momento ficou retido no passado.
Por exemplo, eu teria uns catorze anos e houve uma gincana num fim de semana. Éramos pares e a prova incluía percurso de carro, depois eu saía e tinha que fazer tiro ao alvo, depois no carro aos esses, depois andar com um ovo numa colher, depois no carro a fazer peões. E o meu par, no carro, era um jovem bem mais velho que eu (na altura eu achava que ele era bem mais velho mas se calhar tinha uns vinte ou vinte e poucos) e eu achava-o um ás do volante e aquilo era muito renhido e nós estávamos empenhados em vencer e estava a correr-nos bem, eu entrava e saía do carro quase em andamento e era muito emocionante, ouvia gritar por nós e, no fim, ganhámos. E lembro-me de ter os cabelos compridos, soltos, e lembro-me que tinhas uns calções curtinhos e uma blusinha em azul turquesa com o desenho de malmequeres. E estava sol e eu lembro-me que, naquele instante, estava tão feliz e que pensei que ia sempre lembrar-me daquele momento.
Também me lembro do dia em que já era de noite, no inverno, os dias eram curtos, e estava um nevoeiro cerrado. Teria uns quinze ou dezasseis anos, estava sozinha, devia ter vindo daquela casa onde supostamente ir ter explicações mas em que, na realidade, ia pela tertúlia, pelo ambiente de liberdade e alguma clandestinidade que ali se vivia, e ia para a paragem de autocarro, apenas se viam vultos, eu estava um pouco assustada. E, então, um vulto cruzou-se comigo e disse o meu nome mas no diminutivo. E eu olhei e já não vi ninguém. E fiquei arrepiada, trémula, no frio e nevoeiro. E não me importava de voltar a estar ali para tentar perceber quem era aquele homem. Só por isso. E também pelo ambiente cinéfilo, um suspense materializado.
Lembro-me daqueles dias em Angola, tanto calor, tanta humidade, os meus cabelos fartos e compridos ao fim do dia sempre ainda mais pesados e húmidos. Ansiava pelo banho para poder limpar aquela humidade que se colava à pele e aos cabelos. Usava blusinhas cai-cai, quanto muito com uma fita que se atava atrás do pescoço. E ele -- que tinha um perfume que, na sua pele, se tornava afrodisíaco em contacto com aquele calor africano -- a olhar-me fixamente e a dizer que os meus ombros o deixavam maluco. E eu ria e dizia que ele tivesse juízo mas, lembro-me bem, o que eu queria mesmo é que ele não tivesse juízo nenhum. Ele tinha namorada em Portugal e eu também. Talvez fosse bom voltar a esses dias. Mas seria só para observar melhor aqueles momentos em que, de verdade, senti o que era ser mulher e como era bom estar com um homem. Não quereria voltar a revivê-los nem daria largas à vontade forte que sentia de deixar correr sem qualquer preocupação pois sei que se isso tivesse acontecido talvez a minha vida tivesse seguido outro rumo e eu gosto muito do rumo que ela seguiu. Mas não me importava nada de nos ver naqueles longos e maravilhosos dias.
E lembro-me da manhã de um dia 10 de Dezembro, dia também húmido, Lisboa branca, envolta em neblina. O primeiro dia do resto da minha vida. Não queria reviver mas fotografá-lo, fotografar-nos, aos dois, envoltos num tule branco e molhado, naquele dia em que não conseguíamos parar a torrente de beijos nem separar-nos. Gostava de saber como nos viam aqueles que se cruzavam connosco porque nós não víamos nada, apenas tínhamos olhos e mãos e bocas um para o outro.
E, claro, lembro-me de mil instantes de mil ternuras, eu e os meus filhos, bebés, depois mais crescidos, depois adolescentes, depois adultos, depois a viverem as suas vidas, a terem os seus filhos, mil momentos de amor. Mas revivê-los não, apenas revê-los. Sonho é com os momentos que estão por vir.
Não sinto, pois, vontade de regressar ao passado para o reviver. Não. Só o futuro me interessa. Tenho é muita vontade de ser surpreendida pelos momentos que o acaso e a sorte têm para me oferecer. Que nunca me faltem os bons momentos para relembrar. Gostava de ter pela frente mais muitos mil instantes luminosos cintilando na minha memória.
E que entrem as Avós da Razão para dizerem de sua justiça sobre o Saudosismo
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