O dia foi quase normal. Aliás, se calhar, não foi 'quase', foi 'mesmo' normal porque o meu normal agora é o meu 'novo' normal. E botem aspas nisto tudo. É bem verdade, Leitor, um cão muda a nossa vida. Pior ainda se for um cachorro que, na volta, quando veio era ainda mais cachorro do que julgávamos. Diz a médica veterinária que provavelmente tinha sido tirado da mãe há pouco tempo, se não antes do tempo, e que pode ter acontecido que o aparelho digestivo ainda nem estivesse plenamente desenvolvido, adaptado à vida sem a mama da mãe. Não o saberemos. O pastor foi evasivo, disse que achava que, que talvez fosse..., ou seja, na volta, nem dois meses teria.
Idas ao veterinários várias, rações e latinhas de comida para experimentar o que funciona melhor várias. Medicamentos, análises, sei lá. E eu sempre a fazer figas para que não fique internado como, por três vezes, me disseram que era uma hipótese. Nem quero pensar.
Uns dias murchinho, quase só a dormir. Depois arrebita e vira a casa do avesso. A casa -- disse bem. De cão de guarda para ficar na rua, em menos de uma semana estava um cachorrinho de casa, coisa mais fofa, bonequinho mais querido da sua dona.
Agora está mais gordinho e eu fico toda contente quando faz menos cocó, quando o cocó é menos mole ou quando o vejo a portar-se mal.
E se tem andado a portar-se mal. Como é possível? Esperto que só visto. Digo-lhe: 'anda, vem com a dona'. E ele olha para mim, certamente para ver se é para levar a sério e, depois, quando me vê a ir, lá vem também. Digo-lhe: 'anda beber agüinha' e ele vem e vai beber água.
Quando se apanha sozinho, age por conta própria. Arrasta o saco da ração para o meio da casa, vira a sua cama de pernas para o ar, destrói o caixote de cartão que tínhamos posto a separar a cozinha da sala e aparece-nos deitado ao lado da cama. O meu marido diz que o gajo é escapista. E eu acho que ele é, sem tirar nem pôr, o cão das minhas histórias, o terrível e maroto cão da Princesa Margaret que aparecia sempre onde menos se esperava.
Quando alguém tenta tirar-lhe alguma coisa da boca, dá sapatadas, rosna, arreganha o dente, tenta morder. Toda a gente se assusta com aquela violência. Dois quilos e tal de cão em que metade é pelo e ali está, destemido e armado em leão.
Pois bem, antes de ontem, apanhei-o a arrancar uma coisa do chão e a comê-la.
Já o apanhei com caroços de nêspera, na casa da minha mãe tâmaras velhas, e raízes e toda a espécie de porcarias.
Mas, então, tentei tirar-lhe aquilo da boca. Supostamente, quando se porta mal, atina se lhe agarramos pelo cachaço como os pais lhes faziam. Então, zanguei-me e fui aplicar-lhe esse correctivo. Eis senão quando o pequeno capeta se virou e me ferrou a mão, de lado, abaixo do polegar. Senti uma dor e, instintivamente, tentei soltar a mão, elevando-a. Pois bem. Veio agarrado à mão. Ou seja, com os agudos dentinhos ferrados na minha incauta mão, voou a metro e tal do chão. Com a dor sacudi-o e ele, então, despenhou-se lá de cima, caindo redondo no chão. Como ali o piso é inclinado, rebolou. Pensei, assustada: não pode ser... matou-se. Afinal, levantou-se meio aturdido, sacudiu-se e ficou como novo. E eu com dois buracos na mão a escorrer sangue. Parece-vos normal? A mim não. Agora tenho aquela zona inchada, meio escura e com dois ferimentos.
Estou a ensiná-lo a ficar na cozinha e terraço da cozinha para ver se me deixa trabalhar.
Agora à noite, vindo do veterinário, vim aqui à sala ver o computador, a ver se havia caso. Pois, o danadinho esgueirou-se, deitou-se no chão para receber festa, e, passado um segundo, estava a querer roer os pés do sofá e, pior, o cabo eléctrico.
E ainda não contei qual a brincadeira preferida: tentar arrancar as franjas das carpetes de arraiolos. Passo-me. Tento convencê-lo a entreter-se com uma corda com franjas que vendem nas lojas para animais mas o brinquedo não oferece os mesmos desafios que dar conta de coisas a sério.
Portanto, como poderão constatar, este é o meu novo normal.
Acho que não estou grávida, que isto é mesmo só gula. Outro bebé agora não vinha a calhar, já basta este mais novo que por aqui anda a dar-me cabo do juízo.
Tirando isso, neste meu dia, pouco mais digno de registo. O que houve foi, para falar curto e grosso, mais do mesmo.
O nobel da literatura foi, de novo, para alguém em quem nunca antes tinha ouvido falar pelo que agora aqui também nada posso dizer. Gostei de vê-lo e ouvi-lo, na televisão, a contar como soube da notícia. É bom quando a gente vê alguém que forçosamente há-de ter algum valor a agir na plena consciência da sua condição efémera e insignificante. Se há coisa chata nesta vida é ter que aturar gente que se acha importante e que se revela inconsciente da sua condição de passageira acidental.
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De Asaf Avidan, Les bal des folles. Peças de cerâmica de Keiko Masumoto
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Peço desculpa por andar a não responder a comentários mas vocês sabem lá o que isto tem sido...
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Desejo-vos uma happy sexta-feira
Tudo de bom: saúde, vida nova, esperança e alegria
Assistir ao crescimento de um cão e torná-lo um pouco à nossa medida é das coisas maravilhosas que a vida tem. Árduo ao princípio, sem dúvida, muito disparate, muita coisa ruída, muito chichi, muito cocó. O balde e a esfregona de serviço a tempo inteiro. Mas depois vem aquilo por que ansiámos quando resolvemos ter um cão: a amizade incondicional, a companhia, a ternura, a aventura. Portanto, o que lhe posso desejar é que aproveite bem todos os passos desse crescimento até à pacífica convivência. Um dia fará ele sacrifícios por si, terá toda a paciência, toda a lealdade e toda a sabedoria de que só um cão é capaz.
ResponderEliminarFelicidades nessa aventura canina. E ainda bem que pregamos partidas ao antigo normal, por vezes tão aborrecido.
que horror, ruída em vez de roída: enfim, ão, ão.
EliminarBem vinda ao meu mundo.
ResponderEliminarO nosso Argos, enquanto crescia, devorou livros, cds, peúgas, canetas, comandos de televisão, roeu pernas de cadeira, comeu tapetes, roubou comida (uma vez foi uma piza inteira).Depois acalmou, mas tem dias. Ainda há pouco a minha mulher gritava com ele por lhe ter destruído a (outra) lapiseira.
Mas compensa, oh se compensa.
JMM
Olá Teresa,
ResponderEliminartem razão. A gente afeiçoa-se a eles tal como se fossem gente e eles mostram que nos amam melhor do que se fossem gente.
Hoje estive fora todo o dia. Quando me viu, já ao lusco fusco, foi uma alegria, todo ele se abanava, corria à minha volta, numa alegria efusiva. Como ele é escurinho, no jardim com pouca luz, enredado nas minhas pernas, sem querer pisei-o. O pior é que estava de saltos altos. Coitadinho, desatou logo a ganir. Mas a alegria era tanta que logo se levantou, a festejar o meu regresso.
Depois estive a fazer-lhe festas, e todo ele se rebolava para que eu lhe fizesse festas na barriga, depois rebolava, depois voltava a rebolar. Cãozinho mais bem disposto e fofo.
Mas é um pequeno diabrete. Mordisca tudo, arranha tudo, puxa por tudo. E quando não apanha nada a jeito, mordisca-me os chinelos, as meias, as pernas. Uma festa.
Dos cocós (e já bati três vezes na madeira) parece que está a regularizar e desde ontem que só faz quando vai ao jardim. Ainda não há lugar fixo mas, quando estiver vacinado, logo o levamos lá atrás, à zona da horta, para ver se se habitua a ir lá ao fundo.
E é isso que diz: acomodarmo-nos aos velhos normais para quê? Para ficarmos a pastelar, mortas de tédio...? Ná. Nada como irmos inventando novidades para termos sempre coisas boas para descobrir.
Um belo sábado (sem ruído... 😃), Teresa!
Olá JMM,
ResponderEliminarE depois de tanto banquete o Argos não ficava mal da barriga?
Depois deste safadinho andar tantos dias com diarreia fiquei traumatizada de cada vez que o vejo a mastigar por aí. Anda sempre a apanhar porcarias no jardim. Mas também nos custa tê-lo preso em casa quando é um cão de monte, de campo.
Felizmente parece que está a melhorar. Mas não quero que piore.
O seu também devia ser uma bela pestinha... O que faziam quando ele fazia coisas dessas (roer pernas de cadeiras, tapetes, etc?). O meu filho diz que, quando a nossa boxer era pequena (mas acho que não era tão pequena como este), usávamos uma folha de jornal dobrada para fazer de conta que lhe batíamos, que com o barulho do papel ela se assustava.
Mas parece que não vou ser capaz de fazer isso, estou cada vez mais pacifista...
Obrigada pelas suas palavras. Eu sei que toda a trabalheira que esta coisa pequena agora nos dá já vale muito a pena.
E boas caminhadas ou boas brincadeiras com o seu Argos.
Um belo sábado!
Evolução natural para um cachorrinho na sua nova família. É das maiores felicidades que se pode ter.
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