quarta-feira, outubro 06, 2021

Basta a tristeza e a confissão da vergonha?

 



Continuam a chegar as notícias: 330.000 crianças abusadas sexualmente, por gente da igreja ou de instituições geridas por religiosos, ao longo dos últimos 70 anos só em França. Ou seja, nestes anos, em média, todos os dias 13 crianças foram abusadas sexualmente.

Não há atenuante ou perdão possíveis para uma barbaridade desta dimensão. E não ocorreu num qualquer lugar recôndito do mundo em que a moral e a ética sigam padrões antagónicos aos do mundo dito civilizado. Não foi levado a cabo por arruaceiros armados, daqueles que raptam crianças e as violam, não se passou na Nigéria ou num qualquer outro ponto do mundo de que nos sintamos civilizacionalmente distantes. Não: passou-se em França e foi prática que chegou aos dias de hoje.

Já no outro dia aqui o escrevi. Quando no seio de uma qualquer instituição se passam crimes tão reiterados e tão espalhados, o problema deixa de ser apenas de quem, individualmente, os pratica mas da instituição que os encobre, de quem os protege, fazendo de conta que nada sabe.

A investigação francesa conclui outra coisa ainda mais preocupante: os números a que se chegou representam apenas uma ínfima percentagem dos crimes efectivamente perpetrados contra crianças. Na verdade, estima-se que o número de crianças abusadas em França por elementos ligados à Igreja Católica seja da ordem dos 5 milhões. 

Perante esta onda de vergonha que queima como lava ardente, não basta virem as hierarquias agora dizer-se indignadas e tristes. Perante um crime tão impunemente praticado ao longo de anos há muito mais a fazer.

O Papa Francisco, pessoa por quem sinto simpatia e me parece daqueles que está distante deste nojo, não deveria limitar-se a dizer-se envergonhado e triste. Deveria ordenar que, em cada País, sem excepção, fosse conduzida uma investigação independente para apurar o que se passa em cada diocese, em cada igreja, em cada sacristia. Tudo passado a pente fino. Doesse a quem doesse, até às últimas consequências. 

Todos os predadores, psicopatas ou simples tarados sexuais deveriam ser expulsos da Igreja e entregues à Justiça. 

Não é apenas ideia minha (e agradeço ao Leitor, que muito prezo e a quem muito agradeço, que me escreveu para me transmitir a sua opinião) mas o que penso é que muitos dos que vão para padres ou se acolitam nas suas hostes são pessoas (maioritariamente homens) que não encaram tanto o celibato como uma provação mas como uma capa que lhes permite melhor gerir e encobrir as suas mais inconfessáveis pulsões. Muitos serão homens atormentados sem coragem para assumir socialmente as suas orientações sexuais, outros serão psicopatas, predadores sem escrúpulos. Gente dissimulada. Gente perigosa.

Não são todos, claro, mas, a julgar pelos números, isso acontece em número significativo. E até para que não pague o justo pelo pecador é bom que a verdade se apure.

Com a noção de pecado tão venenosamente instilada desde a mais tenra idade nas crianças, com o pretexto do segredo tão caro à Igreja Católica e tão cuidadosamente treinado com a confissão, os criminosos estão à vontade para fazerem as crianças crerem que devem esconder o que se passou, que a culpa também foi delas, que, se disserem alguma coisa, vão causar sofrimento aos pais ou vão arder no inferno. Outras vezes, segundo ouvi em testemunhos, dizem que aquilo que se passa é a manifestação do amor de Deus, que eles foram escolhidos por Deus,  que tudo aquilo é uma coisa sagrada e, portanto, secreta.

Quebrar a vergonha de quem encobriu segredos tão amargos durante anos, quebrar o esquecimento a que sempre quiseram forçar-se deve ser muito difícil. É preciso muita coragem para adultos -- que durante anos tudo fizeram tudo para apagar da memória a ignomínia a que foram sujeitos -- virem confessar que foram abusados. 

Mas só a sua denúncia pode ajudar a punir os criminosos.

E, volto a dizer, com um escândalo desta dimensão -- que se desenvolveu como um cancro metastizado no seio da Igreja Católica em França (e em todos os países em que escândalos idênticos têm rebentado) -- não é minimamente provável que o fenómeno seja local. O mais certo é que esta indesculpável e insuportável pouca vergonha grasse por todo o lado.

Por isso, se os Cardeais ou Bispos ou quem for da Igreja Católica de cada país não tomam a iniciativa de ordenar uma investigação rigorosa e independente, o Papa que a ordene. O Papa que passe das pias palavras aos actos.

E, se houver indícios, por pequenos que sejam, a Justiça que avance, primeiro com pés de lã para apanhar o máximo de suspeitos e, depois, que lhes caia em cima. A pés juntos. A pés juntos -- repito.

Os meus filhos andaram durante os seus primeiros anos num colégio diocesano. Andaram não por afinidade com os nossos princípios mas porque pensávamos que era a melhor opção, sobretudo do ponto de vista logístico e da sua protecção (tinha actividades, tinha amplas instalações, era vedado com segurança à porta, era perto de casa). Mas não estavam inscritos na Catequese e a sua participação em actividades religiosas ou afins era a mínima possível. Mas tinham aulas de Religião e Moral -- que creio que eram obrigatórias -- com um padre de quem apresentei queixa. Um homem cruel e estúpido em que bastava olhar-se para ele para que as piores suspeitas nos ocorressem. E mal achámos que já tinham autonomia para poderem ir e vir sozinhos para a escola, tirámo-los de lá e, em boa hora o fizemos, e foram para uma boa escola oficial que adoraram. 

Por isso, porque o contacto com a igreja ou elementos dela foi diminuto senão quase nulo, estou relativamente descansada em relação aos meus filhos. Mas, se os tivesse tido a andarem lá por dentro, estaria apreensiva. E não quero imaginar a revolta, a raiva, a sede de vingança que sentiria se viesse a saber que algum padre ou catequista ou afim lhes tinha posto a mão em cima ou feito algo bem pior. Não sou dada a violências mas acho que, em tal circunstância, não conseguiria conter-me e faria de tudo para lhes dar estaladas com toda a força de que fosse capaz, bofetadas que os envergonhassem e lhes doessem a bem doer. E haveria de lutar até ao último dos meus dias para garantir que tais porcos jamais pudessem voltar a aproximar-se de qualquer criança.

Penso que todas as pessoas de bem, crentes ou não crentes, católicas ou não católicas, deveriam exigir o conhecimento integral do que se tem passado e ainda passa em toda a Igreja Católica. Em cada país, em cada cidade ou aldeia, em cada diocese ou paróquia -- onde for. E, sem piedade, exigissem que se agisse, com mão pesada (embora justa), contra os criminosos. Crimes contra crianças indefesas não têm perdão.

E a Igreja que pense bem que meios tem para despistar que, os que a procuram como seus 'servos', não são senão servos da própria luxúria ou tara sexual. E, se não tem meios, que peça ajuda. Que nada sirva de desculpa para não agir.


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Infelizmente, a pedofilia não é o único cancro que mina a Igreja Católica no que se refere à sua doentia ligação às crianças.

Abaixo, um exemplo:

Como a Igreja Católica escondeu centenas de crianças irlandesas 


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E, no entanto, apesar de, de vez em quando, se falar e de parecer haver alguma indignação, a verdade é que a transparência na Igreja Católica não acontece. Quem sabe, parece preferir fazer de conta que não sabe, não viu e não fala. São cúmplices dos crimes. 

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2 comentários:

  1. Bom dia,

    Só uma correcção: não foram 70 anos de crimes, foram 2000. https://lishbuna.blogspot.com/2021/04/blog-post_64.html

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  2. Uns são pedófilos e outros protegem-nos com maior ou menor cumplicidade … ou com o seu silêncio. E ninguém garante que esta pedofilia não continue dentro da Igreja.

    Alguém que indique ao Senhor, por favor, onde fica a França:

    https://www.publico.pt/2018/12/20/sociedade/entrevista/abusos-menores-fenomeno-fundamentalmente-anglosaxonico-1855352

    E que lhe diga para não ter medo que se investigue:

    https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/diocese-do-porto-nao-vai-criar-comissao-para-lidar-com-abusos-sexuais

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