Poder-se-ia pensar -- se alguém pensasse sobre isso o que não é o caso -- que a parte mais substancial do meu dia teve a ver com o que fiz para justificar o que me paguem de ordenado. Pudesse eu aqui descrever e talvez até pudesse ter alguma graça. Personagens de filme não faltam, mulheres bonitas muito menos, homens para vários gostos também não. Até um que estava quase sem cabelo anda agora com frondosa melena. E sempre muita intriga. Romance, se houver, é clandestino. Comédia e tragédia também há -- e sempre em dose dupla.
Mas, se tiver que eleger os melhores momentos incluirei aqueles em que conduzi pela cidade branca, luminosa. Acompanhada pela Antena 2, rolando ao longo do rio, por entre árvores e flores, ou nas largas avenidas (em que felizmente se conduz devagar), de janela aberta, sentindo o calor suave, a brisa, os odores, vendo o movimento. Uma sensação boa de liberdade.
Decidi uma coisa: não deixei o carro no parque da empresa. Deixei-o antes, num parque público. Apeteceu-me muito andar a pé, por entre gente desconhecida, vozes de outras nacionalidades. Já estranho um pouco quando tenho que andar mais, na rua, de saltos altos. Mas rapidamente me habituo. O prazer de me misturar com pessoas, em especial com estranhos, com ente de todas as cores, idades e nacionalidades é muito grande.
Uma vez mais aconteceu-me o que ultimamente acontece sempre: esqueço-me de pôr o relógio, aliança ou anéis. Nem pulseiras. Braços e mãos nuas. Desabituei-me de os usar e agora parece-me que faz mais sentido ver-me assim.
Também muito boa a praia ao fim da tarde. Estava um pouco de vento, talvez uma aragem fresca. Ainda assim, estive de fato de banho. Caminhámos e depois sentámo-nos na areia. Levei a máquina, estive a fotografar. Outro prazer dos bons.
Gaivotinhos pequenos brincando à beira da água, casais passeando em contra luz, crianças correndo e mergulhando, jovens autofotografando-se, o espaço aberto e limpo, o som do mar e do vento - momentos bons.
À vinda da praia, porque sexta-feira é sexta-feira, passámos por um dos restaurantes que nunca desilude e fomos buscar comida. Ao aproximarmo-nos, um pequeno ajuntamento em movimento no passeio. Olhei. Reconheci uma candidata. Rodeada de uma dúzia de pessoas, uns já um bocado entrados, uns três ou quatro jovens que, creio, estavam a filmar, oferecia uma imagem de desolação. Estacionámos. Quando estava a ir para o restaurante, estava o grupinho a fazer o mesmo. Não sei se foram cumprimentar ou deixar folhetos. Uma coisa meio triste, fora do tempo. Ali ia aquele pequeno e desgarrado bando, sem vida, não se sabe bem a fazer o quê. O olhar da candidata cruzou-se com o meu. Ambas de máscara. Inexpressivos os olhares como se, quer eu, quer ela nos estivéssemos nas tintas uma para a outra. E era mesmo isso. Reparei que ao longo do passeio, se algumas pessoas se cruzavam com a fajuta comitiva, não se detinham nem prestavam atenção. A candidata mudou de passeio e vi algumas pessoas com instrumentos musicais. Não sei se iam improvisar alguma sinfonia ali mesmo. Mas nem eu quis saber nem os próprios também o queriam. Tinham os braços caídos ao longo do corpo e o instrumento pendurado na ponta da mão.
Não sei para que servem estas arruadas. Do que vi apenas servem para demonstrar à saciedade que não fazem qualquer sentido nem têm qualquer utilidade.
À noite voltei ao Homeland. Viciante, viciante. Uma qualidade inexcedível. O argumento, a dimensão psicológica dos personagens, o enquadramento político dos acontecimentos. E, claro, o mundo dos serviços secretos que é um mundo dentro do mundo e que é demasiado fascinante.
Agora estou aqui. É a minha última tarefa do dia: escrever no blog.
Lembro-me da Ana de Amsterdam que eu gostava tanto de ler. Contava coisas mirabolantes, sexo sem tino, bebida sem limite, desolações, tristezas, actos extremos. Não percebia se seria tudo verdade, se tudo mentira, se um misto. Parecia tudo verdade até as coisas que inventava. Havia sempre um elemento de surpresa e de insólito na sua escrita. E isso prendia-nos.
Tenho pena que tenha deixado de escrever o seu blog.
Mas isto para dizer que eu não tenho nada assim para reportar e que, quando abro o computador às tantas da noite, já cansada e perdida de sono, penso inúmeras vezes: para quê? o que tenho eu a dizer que valha a pena? E concluo, sem falsas modéstias, que nada. Mas gosto de escrever e, no fundo, no fundo, também tenho esperança que gostem (mesmo que só um bocadinho) das banalidades e insignificâncias que para aqui vou desfiando.
Quando me reformar e me dedicar à escrita das minhas memórias é que vão começar a aparecer histórias cabeludas. Me aguardem...
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As fotografias foram feitas esta sexta-feira e acompanham Mandy Patinkin, o fantástico Saul Berenson de Homeland, em I Have Found My Happiness
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Pode gostar de ler esta entrevista, é da semana passada:
ResponderEliminarhttps://ionline.sapo.pt/artigo/745962/ana-cassia-rebelo-que-fique-claro-tudo-o-que-escrevo-e-verdade-nao-ha-fingimento-da-vida?seccao=Mais_i
Não gosto da 1ª foto !
ResponderEliminarEstá bastante escura e a cachopa não tem fio dental... Tá mal !
A apreciar o "nada" que agora conta e a aguardar pelas "histórias cabeludas".
ResponderEliminarBom fim de semana.
Eu cá gosto muito de ler o seu blog. Não acho nada banal, temas variados, escritas diversas.. Vou espreitar todos os dias e com muito gosto. Beijinho
ResponderEliminarOlá Anónimo/a
ResponderEliminarJá li a entrevista e gostei muito. E gostei de saber que há livro novo. E gostei de saber que ela está bem.
Por isso: muito obrigada!
Olá, Senhor Mal Agradecido
ResponderEliminarEntão eu em busca na luz mais bonita, da contraluz mais interessante... e vem o meu Caro e desfaz a minha 'arte' em três tempos. Não está certo...
Mas vou pensar no seu caso.
Ok?
Olá Corvo,
ResponderEliminarMuito obrigada. todos os dias, quando estou a escrever sobre as minhas banalidades do dia a dia me questiono: mas estou a escrever sobre isto para quê, se isto não tem ponta por onde se pegue...? Por isso, muito agradeço o seu incentivo.
E penso também muitas vezes que um dia que me sinta 'livre' poderei contar tudo aquilo que tenho vivido com os nomes dos intervenientes, muitos dos quais de pessoas conhecidas. Mas agora não. Ainda não.
Uma boa semana, Corvo!
Olá Maria,
ResponderEliminarMuito obrigada também.
Se calhar os médicos, os exploradores, os professores, os psicólogos ou os advogados teriam cenas picantes ou tristes ou dramáticas ou espectaculares para reportar diariamente caso o seu código deontológico o permitisse, em especial com o detalhe que permitisse identificar pessoas ou lugares.
Mas para quem tem uma profissão e uma vida sem acontecimentos extraordinários, tudo o que há a dizer é o de sempre. Por isso, temo sempre que seja uma seca e o que me consola é que escrevo por prazer e não para ter 'likes' ou ganhar votos...
Agradeço, pois, a generosidade das suas palavras.
Dias felizes.