Dia de férias. Sem canseiras, sem stress. Finalmente. Ainda assim, foram compradas e depois postas prateleiras na despensa para arrumar melhor os sapatos, cabides para bonés, cabides para panos do pó em uso, um cabide com uma coisa com compartimentos que o meu marido diz que é para pôr sapatos mas que eu não sei se é e usei para acondicionar produtos de limpeza (de madeiras, de vidros, de fornos, de tapetes). E acho que ainda temos que adquirir caixas de arrumação para ter numa as pilhas, noutra as lâmpadas, noutra as extensões, etc.
De manhã, quando fomos ao Leroy, à cidade mais próxima, quis logo trazê-las mas ele não quis. Aquele é o seu território e não me quer a arrumar as suas coisas. Diz que a minha lógica não é a dele e teme nunca mais encontrar o que hoje tem à mão de semear. Só que eu olho para aquilo e vejo um caos. Ele espanta-se, diz que durante vinte anos eu não quis saber de nada daquilo e agora quero organizar tudo. Explico que é uma questão de prioridades. Agora já estamos no fundo dos fundos, na despensa.
Quando estávamos a ir de carro para o Leroy ele deu-me uma novidade: 'as gavetas do móvel da despensa estão vazias'. Fiquei sem perceber: 'Quais gavetas?'. Nunca dei por gavetas nenhumas. Ele respondeu: 'Como queres que te responda? As gavetas do móvel'. Não estava a ver. 'Mas onde estão as gavetas?, nunca as vi'. Ele disse: 'Não me admira que não tenhas visto, nunca vês esse tipo de coisas. Como queres que te explique?'. E eu, admirada: 'Mas é que nunca vi mesmo. Parece que aquilo tem só portas e portinhas, umas de madeira, outras de vidro, prateleiras, prateleirinhas e nichos. Explica: estão em cima ou em baixo, entre o quê? Entre portas?'. E ele: 'Sim, isso, em baixo, entre portas'
Aquele móvel imenso, atafulhado de coisas e mais coisas, sempre foi, para mim, território a ignorar. Mal cheguei a casa fui logo conferir. Três grandes gavetas. Como é possível que nunca tenha reparado nelas? Há com cada mistério... E, de facto, vazias. Um desperdício. Portanto, vou dar-lhes um destino. Se calhar, uma vai ser para panos do pó, panos de limpeza e coisas afins. Hoje tenho uma gaveta da cozinha com isso. Outra se calhar vai ser para individuais e/ou toalhas de exterior. A terceira ainda não sei. O meu marido diz que se calhar para papéis que hoje estão em caixas num móvel da cozinha. E na cozinha posso pôr toalhas de mesa que estão num móvel que, às tantas, pode ficar para outra coisa.
Ou seja, a so called despensa que, na prática, é uma arrecadação, está a ficar um lugar bem aproveitado, e, além do mais, civilizado e transitável.
Tirando isso, os novos habitantes. Estive na espreguiçadeira, à sombra, a ler. Às tantas, levantei-me para ir buscar água e tive uma visão.
Temos um portão alto que separa a zona das traseiras (se é que, numa casa como esta, faz sentido falar em traseiras). Antes de termos parte da propriedade vedada, pusemos aquele portão para tentarmos que não acontecesse uma coisa que uma vez aconteceu e que nos incomodou bastante. Estávamos na sala, de janela aberta, descontraidamente em família, e, às tantas, ouvimos vozes mesmo ali. Olhámos pela janela e estavam umas pessoas a passear mesmo junto à casa, dá ideia que, inclusivamente, a olharem para dentro. Quando nos viram, disseram com a maior descontração: 'Parabéns, está tudo muito bonito'. Habituados à total privacidade citadina, aquilo pareceu-nos uma tremenda invasão da nossa privacidade. Não me passaria pela cabeça que um dia estivesse a sair da casa de banho, nua, e algum curioso estivesse ali a passar e a observar. Portanto, pusemos um portão para ver se, ao menos, quem passasse na rua se sentisse inibido e sem à vontade para circular por ali, junto à parte mais privada da casa. Mais tarde, quando os caçadores andavam por todo o lado, deixando-nos com medo por causa dos miúdos, vedámos parte do terreno, a parte mais ou menos circundante da casa. O portão intermédio perdeu o seu propósito mas não o tirámos pois gostamos dele. Está, contudo, quase sempre aberto.
E, então, deitado no chão, no recanto formado pelo portão aberto e pela parede, estava o cão. De vez em quando, damos por ele cá dentro. Parece que está em sua casa. Olhou para mim com interesse. Quando passei lá perto, levantou-se e foi deitar-se num banco de pedra que há colado àquele lado da casa. Mostra conhecer os cantos à casa.
Também vi o gatinho malhado de branco e dourado. Também por aí anda, como se este fosse o seu território.
Tenho estado a ler o livro do António Guerreiro 'Zonas de baixa pressão'. Gosto das suas crónicas. É daquelas pessoas que atravessa o seu caminho sem desvios ou concessões. Diz o que pensa e tenho ideia que, como a malta o respeita, não se vê metido em alhadas ou confusões verbais. É como o Vice-Almirante Gouveia e Melo que soube impor respeito. Aquela maralha do comentário a metro ou os jornalistas de meia-tigela batem a bola baixinho quando falam com ele ou de algum tema que o envolva. E tenho ideia que com António Guerreiro passa-se o mesmo. E nem tem que andar de camuflado.
É daquelas vozes lúcidas, que não vai em modas e que, aparentemente, não tem grande medo de represálias. E é inteligente. E isso, parecendo que não, faz muita diferença.
Leio uma crónica, fecho o livro e volto a abrir ao acaso. Como se fosse um baralho de cartas que se abre e se distribui a partir de onde calhar. Assim eu a ler este livro de crónicas. Os temas são variados, alguns absolutamente actuais, outros intemporais, e não há cedência ao facilitismo. Pelo menos, assim me parece.
Leio e penso que deveria ter um lápis para ir sublinhando algumas passagens, talvez para reler, talvez para partilhar convosco. Mas a preguiça tem-me impedido de me levantar para ir procurar um lápis. Portanto, agora, népias.
Aliás, agora que peguei nele reparei numa página a que, à laia de marcação, tinha ao de leve dobrado um cantinho. Transcrevo parte de uma frase:
A natureza gosta de se esconder, tanto quanto a ignorância gosta de se mostrar
Mas é a excepção. Não assinalei mais nada. Aliás, só mais uma. A crónica à qual pertence o título deste post chama-se: 'Se eu fosse...' e numa nota, no seu final, António Guerreiro explica:
No título, a palavra 'paneleiro' é substituída por três pontos. Não por motivos de censura ou auto-censura mas porque seria um foco de atracção dos clicks Antes paneleiro que populista.
E eu, que sou uma descarada, apesar de também não suportar o populismo, puxei este statement para o título pois acho um daqueles sound bites de estalão.
No Porto, antes da praga dos hostels, havia na rua dos Caldeireiros um senhor que fazia panelas. Era o Sr. António. E por via das dúvidas, tinha um letreiro manuscrito logo na estrada da oficina. Dizia assim: sou paneleiro/faço panelas/pego numa delas/parto-te as costelas.
ResponderEliminarAs pessoas que por lá passavam, começavam a ler o versinho com um sorriso e terminavam-no com um ar preocupado. É que o Sr. António era um guerreiro.
Para a maioria das pessoas, ele era um paneleiro sem ser paneleiro; para outras, um paneleiro paneleiro. Agora, à distância, vejo-o como o Sr. António, guerreiro e exímio paneleiro.
Um bom dia!
Olá Amofinado,
ResponderEliminarAqui fica a memória do Sr. António, paneleiro e guerreiro.
E, com isso, veio a memória do Porto. Há ano e tal que lá não vou. Terra bonita. Que saudades. Na última vez que lá fui, numa das vezes almocei no restaurante da Casa da Música, um espaço muito interessante.
Deu-me ideias, Amofinado.
Obrigada
E um dia feliz para si!
O meu cronista preferido! Aprendo muito com as crónicas dele. É o editor da revista da fundação EDP (electra). Uma revista muito interessante onde ele reúne muitos pensadores que tem como referência, geralmente fora do.mundo anglo saxonico (o que é de especial relevância porque em geral só nos chegam palavras desse mundo). Já que somos roubados pela EDP ao menos que nos sirvam este tipo de produtos - não legítima o roubo, mas ajudas suporta-lo!
ResponderEliminar