Uma vez íamos, à noite, para a nossa casa no campo e, pelo caminho, parámos no supermercado da cidade mais próxima. Eu tirei a senha para o peixe e o meu marido foi comprar fruta, legumes, queijo -- essas coisas. Eu fiquei à espera da minha vez. Estavam várias outras pessoas à espera. Então, uma das pessoas, uma mulher, abeirou-se de mim e começou a contar-me sobre os problemas que tinha com o filho, separado, incapaz de se fixar num emprego, só a falar em ir para fora, com uma criança pequena de quem não queria saber. A mulher, à beira das lágrimas, dizia que não sabia o que seria do filho se fosse para outro país, que ficaria sem saber como é que ele estava. E que perderiam o contacto com a criança. Que não sabia o que fazer. Que achava que ia perder o filho e o neto. O meu marido, que se tinha despachado, ao ver a senhora a falar comigo, ficou de longe, penso que era alguma pessoa minha conhecida. Quando chegou a vez dela ser servida, ao ir-se embora, agradeceu-me. Quando contei, o meu marido voltou a dizer que não percebe como é que, do nada, alguém chega ao pé de uma pessoa que nunca viu e começa a falar de assuntos tão pessoais. Também acho estranho. Mas é isto que acontece.
Ultimamente, quando percebo que isso está prestes a acontecer, afasto-me um pouco, agarro-me ao telemóvel para que as pessoas se retraiam. Aconteceu no outro dia à porta da farmácia. A lotação é limitada pelo que a espera se faz no exterior, esperando a vez da nossa senha. Estava ali e vi uma senhora que se foi chegando. Percebi que não haveria de faltar muito para me falar de assuntos muito seus. Fiz de conta que não tinha percebido e dei uma volta por ali. Não sei porque agora evito. Creio que é porque receio não estar à altura e não ter a palavra ou a atitude certa.
Lembro-me de quando salvei uma mulher que tinha tentado suicidar-se. Também o contei, não sei se aqui se no outro blog. Andávamos a caminhar à beira rio e o meu marido foi por um lado e eu quis ficar ali, não sei se a fotografar, se quê. Já era lusco fusco ou noite, também não recordo com exactidão. Havia o barulho das ondas a bater na amurada. Só eu estava ali. O meu marido detestava que eu ficasse para trás, em locais ermos, ainda por cima já sem luz. E, então, pareceu-me ouvir uma voz, um choro, a vir da água. Abeirei-me e vi que estava uma mulher dentro de água, tentando segurar-se ao muro. Mas as ondas puxavam-ma e, por vezes, desaparecia. Quando me viu, suplicou-me que a ajudasse, suplicou-me que ficasse ali, que não a deixasse sozinha. Sem ver vivalma, sem ver o meu marido, sem saber se haveria de ficar a falar com ela se sair dali para ir em busca de alguém, vivi uns instantes de aflição. Não vou descrever em pormenor mas consegui chamar ajuda. Estive o tempo todo a dizer-lhe que se aguentasse, que tudo se iria resolver. Ela, mesmo quando estava a ser puxada com cordas, não parava de me pedir que não a deixasse, que a ajudasse. A custo, os bombeiros conseguiram resgatá-la. Estava gelada, perturbada. Pediu-me que ligasse ao marido, quis que fosse eu a falar. Pedi ao senhor para ir ter ao hospital. Ela não me largava a mão, pedia-me 'ajude-me, ajude-me'. Disse-me: 'sou muito infeliz'. Queria que eu fosse com ela na ambulância mas os bombeiros não deixaram. Fiquei muito perturbada. A mão gelada dela agarrada à minha não me sai da memória. Não a procurei no hospital. Pensei que ela deveria ter apoio clínico especializado, não o apoio de uma leiga, de uma desconhecida. Mas não sei se fiz bem.
Mesmo aqui já recebi apelos aflitos, pedem-me que lhes ligue e enviam-me o número de telemóvel ou pedem-me que vá ter a alguns lugares, já me disseram que não sabiam a quem mais recorrer, pedem-me ajuda, que não aguentam mais, percebo que estão no limite. Não acedo, não ligo, não me encontro. Tento ajudar de outra forma, tento que procurem ajuda especializada. Não tenho preparação para lidar com situações limite. Tenho receio de falhar.
No outro dia, quando fiquei em observação no hospital, perto de uma jovem suicida que toda a noite gritou e chorou, tive muita vontade de ir falar com ela. Várias vezes me soergui e me preparei para me ir sentar ao lado dela. Mas ela estava rodeada de enfermeiros que a seguravam e atavam à cama, e eu própria tinha que estar em repouso -- não iam aceitar. E, depois, que lhe diria eu?
Mas, se calhar, em situações assim, não é preciso dizer muito, se calhar basta ouvir e sentir o sofrimento que os outros sentem.
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Excerto de pinturas de Pieter Bruegel, o Velho, ao som de A Garota Não que interpreta Mediterrâneo
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Desejo-vos um dia bom
Não é apenas a comunicação oral entre si que o “ser eminentemente social” reprime. Também reprime a comunicação via tacto. Isso está bem patente nas crianças. Não há criança que não faça um esforço para falar com outras crianças. E não há criança que fale sem tocar. E, parece-me, há uma fase em que elas interiorizam que isso não se deve fazer, como se fosse um pecado. Parece-me que aqui está a origem de muitos dos nossos recalcamentos.
ResponderEliminarUma cultura assim, tendencialmente individualista, precisa de um acontecimento importante para banir a barreira que isola as pessoas. É a morte do filho, como nos conta a UJM, mas também é o golo no futebol que leva os jogadores a tocarem-se com todo o à vontade, tudo isto sem que haja qualquer ponta de recriminação social. Em termos de tacto, ainda se tolerava que um adulto fizesse uma pequena festa a uma criança. Mas isso já era, sobretudo depois da percepção da pedofilia. E com o fim da obrigação social de salvar os outros, idem, aspas, aspas. Não falar, não tocar, não olhar ..
O que resta neste “ser eminentemente social”, é a vontade de falar com os outros, é a vontade de tocar nos outros.
E digo tudo isto com uma profunda “mea culpa”. Eu que fiquei todo indignado quando um dia, num subúrbio que não conhecia, entrei num café grande, também desconhecido, totalmente vazio, sentei-me num dos seus cantos, e o cliente seguinte, o segundo, no meio de todo aquele espaço vazio, optou por acomodar-se na cadeira que pertencia à mesa que eu ocupava. Passamos a ser dois naquele café enorme. Tudo normal. O anormal estava na minha indignação.
Parecem relatos extraídos de filme tipo Eat, Pray, Love. Fui uma vez de autocarro e uma senhora abeirou-se de mim. Há muita gente em sofrimento atroz, é normal acontecerem encontros assim meia dúzia de vezes na vida de qualquer pessoa, por muito lineares que ela e a sua vida sejam.
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