Pois o que tenho a dizer é que, mal abri a porta, senti o frio que vinha lá de dentro. Frio, frio, frio. E húmido. Uma coisa mesmo desconfortável. Tanto tempo fechada e logo na altura em que a temperatura esteve tão baixa, não admira que tenha guardado o frio nas paredes e no ar interior. Melhor na rua que dentro de casa.
No chão, algumas laranjas, nenhuma em bom estado. Apanhei as que subsistiam na laranjeira. Só uma é que tinha laranjas. Na tangerineira ainda duas pequenas tangerinas. Mexericas, escreveu-me no outro dia quem disse que estava a beber um chá com casquinhas de mexerica. Ela, ao cheirar as mexericas que lhes tínhamos dado, disse que cheirava a bergamota. E é. Cheirinho fresco, cítrico, floral, delicado.
Os folhados estão floridos, lindos, lindos. Parecem bouquets de noivar.
Ao contrário do que temíamos, o mato não está assustador. Andámos à caça de tojo e, enquanto eu fotografava aqueles curiosos folhos que nascem nos troncos cortados, ele cortava silvas e tojo.
Mas não são apenas folhos, alguns esverdeados, outros em tom acobreado. Há outros seres que brotam de troncos aparentemente mortos. Não sei se são cogumelos, líquenes, fungos, habitantes de um mundo oculto, vestígios de flores que não chegaram a ser, vultos brancos que irradiam luz nas noites em que os lobos saem em busca de sombras. Não sei. Fotografo tentando adivinhar.
Há muitos musgos. São lindos, de um verde sumptuoso de que gostaria de me vestir. Têm em cima folhinhas, pedrinhas, pequenas pétalas. Um mundo de recordações. Fotografo encantada.
O silêncio ali é mais silêncio. Os pássaros ali cantam em maior inocência e liberdade. A serra envolta em neblina, mal se via, em toda a volta. Um vulto imponente, uma presença magnífica, quase apenas imaginada.
Um prazer tão tranquilo, estar ali. Uma largueza, uma quietude, uma paz.
Depois, não sei porquê, olhei em volta e deu-me uma daquelas minhas que não sei de onde vêm mas que se impõem, de imediato, como incontornáveis: uma vontade de mudança. Neste caso, mais simples do que da última vez: pintar tudo. A casa é uma casa de campo, rústica. De origem, as paredes são rugosas. Não gosto, nunca gostei. São práticas, sempre me disseram. Mais fáceis de manter, disseram-me. Mas nada disso me convenceu. O que me convenceu foi dizerem-me que era preciso lixar tudo, estucar de raiz. Demorado. Muito pó. Uma maçada prolongada. Avessa a maçadas e, ainda por cima, prolongadas, fui tolerando, pois. Até hoje. Hoje deu-me uma impaciência. As teias de aranha infiltram-se nas rugosidades. Maçada é manter as paredes sem teias de aranha. Tudo liso, branco, simples, isso sim. E não só. Também as portas e os rodapés brancos. Tudo mais claro. E, de repente, olhei para o quarto e tive vontade de também me desfazer dos móveis antigos. Pareceu-me escuro. Se calhar é porque o tempo estava cinzento, com ar de quem quer chover. Mas achei que a culpa também era da mobília. Já não gosto de coisas que não sejam luminosas, claras. Depois olhei para a sala de jantar e tive vontade de pô-la também toda branca. Mas aí travei-me. Falei ao meu marido. Assustou-se. Receia estes meus ímpetos. Quando pensa que estamos a entrar num tempo de alguma acalmia, apareço eu com vontade de tsunamis. E, no que se refere em concreto à sala de jantar, não lhe parece bem que fique em branco. Gosta dos móveis. Também eu: são muito bonitos, de boa madeira, invulgares, até. Talvez se puser um tampo de mármore no aparador já aclare. Mas a mesa, que é tão bonita, já é pequena demais. Tenho que pensar no caso da sala de jantar até porque liga com a zona da lareira e aí há cadeirões e banquetas que não são propriamente brancos ou minimalistas.
Mas o resto, incluindo paredes exteriores, telheiro, portões -- tudo a precisar de limpeza, de pintura. Quiçá algumas janelas também novas. Estão a precisar. Quando fui fechar janelas da parte mais antiga, estavam um bocado empenadas. São de madeira, vidro simples. Não queria desfazer-me delas, sempre as achei bonitas. Mas já não estão com nada. Hoje reconheci-o.
Claro que esta altura não ajuda nada. Não nos podemos deslocar facilmente. Esta terça-feira fomos até lá porque podia circular-se entre concelhos, porque fomos de casa a casa, porque temos que enviar contagem de água e electricidade, porque estávamos preocupados com o mato, porque queríamos certificar-nos que estava tudo bem com a casa.
Bem, para dizer a verdade, fizemos uma pequena paragem pelo meio. Passámos por casa da minha mãe. Levei-lhe uma camisola que lhe tinha dado pelo Natal e que lhe estava apertada. Troquei-a logo a seguir mas já não consegui levá-la. Hoje, sim. E queria ensiná-la a tirar fotografias com o telemóvel e anexá-las a mails. E queria ensiná-la a usar a lanterna do telemóvel, E, claro, queria estar com ela. Desde o Natal que, tirando as video-conferências, não a via.
Está óptima, estava toda bonita, tinha estado a ter aulas na universidade sénior. Gostei de revê-la. Foi por pouco tempo porque todos os cuidados são poucos. E estivemos de máscara, claro. E, tão ou mais importante, com as janelas abertas.
Tenho ainda a declarar uma coisa: quando íamos a passar ao pé daquela tasca ao lado da bomba de gasolina onde, antes, às vezes íamos comer caracóis, choco frito e outros petiscos, deu-me uma vontade enorme e achei que poderiam ter take away. O meu marido achou que eu era maluca, nem queria parar. Mas, face à minha insistência, fez-me a vontade. Lá fui. A porta estava aberta mas com uma mesa à porta. Lá dentro escuro. Ao ver-me, a dona, que estava sentada a uma mesa, levantou-se. 'Têm comida para levar?', perguntei. A senhora, que é também quem atende na bomba, olhou para mim com um ar espantadíssimo e, passados uns segundos, disse com ar de quem nem percebia a pergunta: Não....!
Quando entrei no carro, sujeitei-me àquele riso de gozo que tão bem conheço: 'Não me digas... não têm take away...?'. E, pronto, foi isto.
Continuei a leitura vagarosa das cartas de RMR mas hoje já não vou pôr-me para aqui a transcrevê-las, não é?
Vou pregar para outra freguesia até porque daqui a nada tenho que estar a pé. Mas, antes de me ir, gostava de partilhar um vídeo que está em fase com a minha disposição: leve, pronta para tempos melhores, com vontade de dançar, vontade de rir, vontade de renovação.
Rudolf Nureyev e Anthony Dowell
[em Valentino]
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Se me permitem, recomendo que desçam até ao post seguinte pois é de futuro que ali se fala
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Desejo-vos um dia feliz
A UJM tal e qual a minha mãe, quando se lembra, aqui vai disto, mudar posição aos móveis, deitar coisas fora, pintar paredes. Eu às vezes fico de nariz torcido, mas quando vejo o resultado, quase sempre acabo por dar razão.
ResponderEliminarAqui, no final do verão, foi ao contrário, canseira de branco, pintei a sala e o corredor de ocre amarelado. Entretanto com o tempo mais quente irá o consultório.
Fotos sempre bonitas!
O tempo aqui esteve húmido, mas não muito frio, ao final da tarde andei a lavar o carro de manga curta e calção e acabei já escuro e não senti assim frio par aí além.
Continuação de boa semana.
Olá Francisco,
ResponderEliminarSou muito avessa à monotonia. De vez em quando bate uma vontade de mudar. Gosto de limpezas, arrumações, remodelações. Gosto mesmo de imaginar, conceber. E depois ver acontecer. Chegar a um espaço e parecer novo.
Dá trabalho mas depois é outra loiça. A sua mãe deveria entender-me se me conhecesse.
O ocre amarelado é aconchegante, é bom para espaços de partilha, ilumina e consola a alma.
Já trabalhei num espaço que, ao ser remodelado, quis que fosse justamente em tons de luz quente e era uma alegria lá trabalhar, gente que se tornou amiga para a vida.
Estou certa que o seu consultório é agradável, acolhedor e que mais ainda ficará, quando o pintar.
Eu agora estou numa de luz, de espaço, de tranquilidade total. A cor e a luz são apontamentos mas quero que predomine a paz. E a paz é branca, certo...?
Abraço, Francisco.
Dias felizes.