Por vezes um pessoa lê coisas que preferia nunca ter lido. Percebe-se uma estranha forma de crueldade mas, pior ainda, uma crueldade gratuita. É como quando alguém ofende outra pessoa por razão nenhuma, destruindo a dignidade de outra pessoa por nada, só porque sim. Fico triste, sem perceber o que leva a isso. E afasto-me.
O dia hoje tem sido assim. Notícias más, medos.
Alguma coisa má anda à solta pelo mundo, pelo meu país, matando, assustando, espalhando crueldade.
Estou no meu casulo silencioso e tranquilo. A vida lá fora anda assim, cruel, mas aqui sinto-me protegida. O dia esteve branco. Não. Não branco, cinzento. Um casulo húmido, quase atrofiante. Lá fora tudo molhado, triste.
A cameleira está coberta de flores mas grande parte está caída. Não sei se é normal ser assim mesmo ou se é da chuva. Talvez as flores não aguentem o peso da névoa. Apanho as camélias molhadas, umas ainda conservando a cor, outras já amarelecidas. Com as flores caídas cubro a terra de alguns vasos. Ficam bonitos, com qualquer coisa de Frida Kahlo. Amanhã a ver se me lembro de fotografar.
A tangerineira está carregada de pontinhos luminosos mas hoje o chão também estava todo colorido. Apanhei algumas, comi algumas ali mesmo, tão doces.
A vida corre devagar. Ou não. Se calhar corre depressa demais. Não percebo como se esvaem estes dias. Nem estas semanas. Trabalho muito. De manhã penso que vou fazer isto e aquilo e depois há mil coisas que se intrometem e quando dou por ela é hora de almoço e logo, logo, recomeçam telefonemas e logo, logo, é hora de reunião. Não chego a ter tempo para tratar de assuntos pessoais. E tenho dificuldade em perceber o que se passa. Mal tenho tempo de espreitar a rua. O dia embaciado, tudo molhado e triste.
Morrem muitas pessoas, muitas estão em cadeiras, com oxigénio, mal instaladas, sem atenção, sozinhas, assustadas. Uma enfermeira dizia que sim, que já estão a seleccionar quem vão tentar salvar. No prazo de poucas semanas chegámos aqui.
De noite, doentes estavam a ser transferidos de um hospital para outros, parece que não conseguiam assegurar o oxigénio, talvez por avaria nas tubagens. Digo talvez porque, na verdade, não sei a causa. Não nos podemos fiar na comunicação social que empola, dramatiza. Não sabem informar, sabem, sobretudo, teatralizar, deformar. Inclino-me para razões técnicas nas instalações, mas é mera intuição.
Tenho falado neste receio que sinto. As equipas invisíveis que asseguram o funcionamento do país estão a ser afectadas. Muita gente infectada, muita gente em quarentena por terem estado perto de infectados. Quem assegura o bom funcionamento das instalações criticas (infraestruturas de todo o tipo, desde electricidade, água, gás, vapor, comunicações, caminhos de ferro, estradas, edifícios, equipamentos como, por exemplo, os de telecomunicações, redes de frio e oxigénio, avacs, electromedicina, etc, etc, etc) são pessoas iguais a todas as outras com a particularidade de que não podem estar em teletrabalho. Deslocam-se em transportes públicos, almoçam em cantinas, trabalham em equipas. Trabalham por turnos. Se um fica infectado, fica toda a equipa. Se uma equipa fica inoperacional alguma coisa grave pode acontecer algures.
E eu preocupo-me com tudo isto. O meu marido não quer ver mais notícias, não me quer ouvir falar nisto com quem me telefona. Então, para que não proteste, quando recebo uma chamada, vou falar para o lugar mais longe dele que posso.
Claro que também não quero estar afogada em notícias tristes mas não consigo deixar de querer saber o que se passa. Sobretudo, quero ver se percebo na tendência dos números algum amolecimento que me permita alguma esperança.
Nesta coisa do tempo correr depressa demais, só espero é que cheguemos rapidamente a Abril. Gostava de viver o 25 de Abril na rua.
Vi, creio que na 2, uma reportagem em Lisboa. Creio que seriam ingleses que andavam por Lisboa. Estávamos os dois, em silêncio, muito atentos. O meu marido, depois, disse: 'Há quanto tempo não passeamos por ali?'. e eu disse que era verdade, há tanto tempo. E ele disse: 'E sabemos lá quando vamos voltar a andar'. E eu não disse nada. Mas acredito que em Abril talvez possamos voltar a passear por aquelas ruas, no Chiado, descer a rua do Alecrim, ver o rio, ou no Príncipe Real, ir à Travessa, depois ir comer uma pizza ou um risotto ao Avillez, cirandar, fotografar as montras da Hermès.
Talvez não completamente em Abril, talvez seja optimismo a mais, talvez mais lá para Maio, isso sim, quase de certeza. A ver se vem o bom tempo, a ver se a vacinação vai a bom ritmo para o final de Abril chegar e com ele o Maio, maduro Maio, e depois o tempo da praia, do mar.
O pior é o que ainda falta para lá chegar. Mas, para já, pelo menos aquele frio que me enregelava até aos ossos parece ter ido para longe. Não gosto de tempo tão frio. E os dias já estão maiorzinhos e isso é bom. Custa-me muito pensar nas vidas que irão ainda perder-se até que a nuvem negra se afaste, custa-me o sofrimento de tanta gente. Mas, mesmo sem querer, começo a dar por mim a querer olhar para os dias de verão esperando que me tragam os abraços e os beijos dos meus filhos, dos meus netos, a companhia descontraída da minha mãe, que possam trazer-me amigos para virem conhecer a minha casa, que possam trazer de volta a vida sem medo, os grupos ruidosos em volta de uma mesa grande, cheia, das cantorias e alegrias. Sinto tanta falta disso.
Mas vejam estas coisas do além. Somos transportados para um outro mundo, um mundo onde não há pandemias nem medos nem crueldades. Há cor, há formas elegantes, imaginadas.
The Surreal World of Set Designer Shona Heath
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Desejo-vos um dia bom, vivido em delicadeza e harmonia
Saúde.
Querida UJM se ao menos houvesse Sol..
ResponderEliminarO seu marido tem razão. Este mundo está muito complicado. Desisti de ouvir e ver todas as noticias, até porque já duvido de muitas delas.
Teve certamente conhecimento de na semana passada ser-mos inundados com uma carta, entrevistas e muitos posts de um deputado medico voluntario em que num só dia assistiu a um numero tão elevado de mortos que afligiu muita gente. e obrigou o Hospital de Cascais a fazer um desmentido, corrigindo os numeros. Correcção essa que não teve a mesma divulgação por parte de quem espalhou o alarmismo.
Este deputado, do PSD, aproveitou para culpar o governo, como se tivessem alguem capaz de fazer melhor nestas condições.
A situação do país e do mundo não está para brincadeiras mas estes casos deveriam ser pelo menos chamados à razão.
Agora deixe-me falar um pouco de mim.
Devido ao meu historico clinico tenho uma vigilancia médica periodica. Em 2020 Tacs, e outros exames foram adiados para os primeiros meses deste ano. As consultas foram feitas por telefone o que demonstra que o SNS, os médicos, não esqueceram os doentes não Covid.
Daí que este mes de Janeiro já fui quatro vezes aos hospitais SFXavier e Egas M. Fui de coração apertado pois ja tinha visto os cenarios das imediações e de enfermarias.
Nos respectivos serviços a que me dirigi reinava o profissionalismo atenção e ternura que sempre vi. Tenho por hábito cumprimentar e falar com os profissionais que me atendem e o assunto foi tambem o caos anunciado. Não são maquinas e umas palavras de apreço além de merecidas, são mais que justas. Todos se mostraram calmos e conscientes de que o assunto é muito sério mas com "cautelas e caldos de galinha" havemos de o superar.
Se cumprirmos as recommendações de recolhimento e mascaras protegemo-nos e aos outros.
Se é facil? claro que não, e nesta idade faz-nos falta o convivio com os amigos, as visitas a lugares queridos, os afetos, um abraço de braços pequeninos cheios de graça.
Desculpe deixei-me levar e alonguei-me.
Calma e Um beijinho amigo