Conheço uma pessoa, muito boa pessoa, daquelas pessoas discretas de que quase ninguém se apercebe. Ela conhece-me a mim há mais tempo do que a conheço a ela. Quando me foi apresentada, disse-me que já me conhecia há uns anos, que eu frequentava um lugar onde ela costumava estar. Não tinha ideia. Eu ia de visita: para mim, tirando a pessoa que eu ia visitar, todos os outros eram desconhecidos. Para quem lá estava, eu era a que vinha de fora para ter reuniões com o Big Boss, o Senhor Doutor.
Durante algum tempo pensei que era daquelas mulheres que vivem para o trabalho. Trabalhava horas a fio. Por mais complexo que fosse o trabalho que alguém lhe entregasse, o trabalho aparecia feito e bem feito. E isso orgulhava-a tanto que parecia mesmo que se alimentava desses seus sucessos em que ninguém reparava ou agradecia.
Rapidamente me tomou como sua confidente. Queixava-se, com alguma tristeza, mas parecia uma tristeza conformada, que exigiam, exigiam, sem quererem saber do trabalho que dava e sem quererem saber do que tinha que sacrificar para cumprir. Mas que, apesar disso, cumpria e sempre cumpriria, assegurava com orgulho.
Quanto melhor a conhecia mais a admirava. E olhando-a, sempre com aquele seu ar um bocado fora de moda, eu pensava que, a trabalhar como trabalhava, era natural que não tivesse tempo para andar às compras ou a embonecar-se.
Um dia, para meu espanto, percebi que, afinal, tinha uma família, marido, filhos. Conseguia dar conta de tudo. Sem carta de condução, gastava horas em transportes públicos. Nunca consegui perceber como conseguia trabalhar tanto, gastar tanto tempo em transportes, muitas vezes despachar processos em casa e, ainda assim, tratar da casa, dos filhos adolescentes, fazer bolos e outras iguarias.
Mas decorria depois algum tempo durante o qual eu, também sempre atarefada, pouco a via e em que, para falar verdade, quase me esquecia dela.
Um dia vi-a com semblante fechado, coisa rara nela. Perguntei-lhe. Contou-me que estava preocupada com a mãe. Que tinha sabido recentemente que a mãe andava sem apetite há algum tempo, com a sensação de não conseguir engolir. Exames feitos, coisa má, adiantada demais. Contava isto e a boca secava-se-lhe, a garganta estrangulada. O medo bem visível. Uma médica dizia que a mãe tinha que ser operada de urgência, outra dizia que já não se ia a tempo. Até já tinha ido a um médico naturista. Estava desesperada. Acompanhei-a e ajudei-a como pude, triste porque, afinal, já nada havia mesmo a fazer. E levei-a ao hospital e fui lá buscá-la, sempre que me foi possível. Acompanhei-a na aflição. O sofrimento de ver a mãe a esvaziar-se de vida, sem qualquer esperança. Por fim, não se alimentava de todo, emagreceu muito, perdeu o andar. Ainda foi a casa pelos anos, sabendo que seria a última vez que estava em casa. Regressou ao hospital para atenuar o sofrimento e ela tentava conter o soluço de tristeza ao contar-me isso. Que tiveram que levá-la ao colo, um corpinho de menina, dizia ela. Ligou-me uns dias depois, era feriado. A mãe tinha morrido. Daqueles telefonemas que a gente nem sabe bem o que dizer. Acabou a agradecer-me. E eu nem quis ouvir tal coisa. Agradecer o quê?
Contou-me no dia seguinte. O pai tinha uma empregada que ela achava muito suspeita, achava que era mais do que apenas empregada. O pai andava a levantar muito dinheiro, não queria lá a filha, tudo muito estranho. Um dia que ela tinha manifestado preocupação, tinha-se virado, furioso, e perguntado: 'Não posso gastar o que é meu? Porquê? Queres todo para ti?'. Ofendida, não voltou a dizer nada. E naquele dia, o pai que tinha tido que ir à terra, ao regressar a casa, tinha encontrado a porta escancarada, a casa quase vazia, nem televisão, nem os melhores móveis, nem o dinheiro e até os caixilhos das janelas tinham levado. O pai tinha-se sentido mal ao ver aquilo, tinha-lhe ligado e tinha-lhe pedido para ir ter com ele.
Entretanto, ela e o marido foram com o pai à polícia. Disseram que iam investigar mas não se mostraram surpreendidos: velhos, viúvos, com algum dinheiro são presa fácil. Ah, e, claro, ninguém sabia da empregada.
Ao fim de pouco tempo, obras feitas, o pai regressou a casa e ela voltou à mesma alegria discreta. Dizia que tinha recuperado a intimidade da vida em família, que o pai sempre haveria de ser para ela um estranho. E já descontraída, contava-me dos filhos, contava-me de receitas novas. Depois, uma vez levou uma peça de cerâmica. Tinha adquirido um forno, estava toda orgulhosa. O marido tinha-lhe transformado a garagem num estúdio para os seus trabalhos de cerâmica. Usava termos técnicos para se referir ao forno e às técnicas que usava para modelar, para pintar - mas agora não me lembro deles. Contou que antes já o praticava mas que tinha que ir pôr as peças num forno colectivo. Fiquei espantada: ainda tinha tempo para isso? Claro que tinha, dizia ela. Sempre tranquila, sempre feliz. Trabalhando até mais não poder, noitadas que os outros davam como adquiridas e depois, não sei como, ainda lhe sobrava tempo para os seus hobbies. Pelo meio, lamentava que não a valorizassem e, ao mesmo tempo, lhe atirassem para os braços trabalhos tão complexos, demorados, e, sobretudo, sempre tão em cima da hora. Mas, minutos depois, já me falava dos filhos, e, toda orgulhosa, anunciava que ia ser avó.
E assim foi. Para surpresa geral, ao fim de duas ou três semanas, nem sei, ei-la de volta. Cansando-se ao falar, cansando-se a andar, mais magra, mal encarada. Isto passa, descansava-nos ela. E a verdade é que, dias depois, quando a vi, nem queria acreditar. Digo dias mas, se calhar, foram semanas. Não sei. Apareceu com um outro corte de cabelo, outra cor. De facto, bem mais magra, jeans, blusa justa. Parecia filha da outra. Toda sorridente, explicou: O médico disse que tinha que fazer dieta, fazer mais exercício. E apeteceu-me uma vida nova. Já não trabalho tanto. Vou mais cedo para casa. Todos os dias vou fazer uma caminhada. Está na altura de pensar em mim'. Toda orgulhosa e feliz. Eu olhava para ela e parecia-me outra. 'E já vem outro a caminho, imagine'. Um segundo neto. A vida não para. Toda contente. Perguntei-lhe pelo pai. Riu: 'Já não quero saber. Anda outra vez de namorada nova. No outro dia fui lá a casa, estava uma a sair que não enganava ninguém. Sempre foi disso que ele gostou. Há-de acabar depenado. Deixa-o, é o que quer, quem sou eu para impedir?'. Nem mais, concordei. Leve, leve, ela. Ajeitou a bolsa a tiracolo, um livro na mão. Ar de teenager que vai à descoberta do futuro. Vou mais cedo, dá para ler nos transportes.
Já não a vejo há muitos meses. Não sei se voltarei a vê-la. Mas há-de estar sempre optimista, sempre feliz. A ver se, da próxima vez, sou eu que lhe ligo.
Que bom haver pessoas assim
ResponderEliminarPessoas fantásticas pelas lentes de uma pessoa fantástica. Adorei!
ResponderEliminarUm bonito feriado (hoje está maravilhoso por aqui).
Não sei se esta história é verdadeira ou inventada, mas há pessoas assim. Tenho uma tia parecida, que admiro muito. Uma pessoa simples, da aldeia, cuja história de vida foi dedicada ao trabalho e aos outros, sempre, sempre com um sorriso nos lábios, mesmo nas alturas mais difíceis.
ResponderEliminarGostei imenso de descobrir este Coro que aqui colocou. E achei o alfinete(?) super giro!
Um bom feriado:))
Olá Redonda,
ResponderEliminarSim, é bom por elas pois são pessoas que parece que nasceram para ser felizes, mas também para quem convive com elas, ficamos rendidos e com vontade de ser um pouco assim.
Obrigada pela visita e pelas palavras, Redonda.
Olá Francisco,
ResponderEliminarMas sabe? É tão eficiente, tão prestável, tão dedicada... tão pouco reivindicativa... que as pessoas acabam por nem dar por ela. E, por muito que ela faça, como as pessoas estão tão habituadas a que ela seja sempre assim, exageram no que lhe pedem e, no fim, nem manifestam grande agradecimento.
Gosto imenso dela e, sobretudo, tenho admiração por ela.
Obrigada pelas suas simpáticas palavras. E, por aqui, também um solzinho brando de tarde, ainda deu para me sentar um bocadinho e ler e a ver se me cobria de vitamina D... :)
Uns ricos dias para si, Francisco!
Olá Isabel! Que bom vê-la por aqui!
ResponderEliminarNão é história inventada, não senhora, tudo verdade, verdadinha. Parece que não se irrita, que não se enfurece, que aceita tudo com leveza. Mesmo quando se queixa é uma queixa ao de leve pois, pouco tempo depois, já está na boa. E o que me impressiona é que parece que também não tem medo. Com os problemas de saúde que tem tido, problemas graves, ultrapassa tudo também com uma tranquilidade que me deixa pasmada. Quando foi fazer a biópsia andava eu mais preocupada que ela. É depois, quando o veredicto foi o que não se queria, também encarou como mais uma pequena maçada que teria que ultrapassar. Agora este último susto, bem grande, e que deixou algumas sequelas, também está serena, a mudar hábitos mas como se fosse coisa ligeira, agora com um ar mais moderno, mais elegante. Uma pessoa fantástica.
Na volta é mesmo como a sua tia.
E não é um pregador. É um íman. Não é tão bonito? Gosto imenso dele. É um dos que tenho num dos lados do frigorífico. O outro lado está encostado à parede e na porta da frente não tenho nenhum. Naquele lado, que é um lado discreto que só se vê se estivermos mesmo a olhar para ele, desforro-me: tenho ímanes de alto a baixo. Gosto de descobrir ímanes bonitos. É a Isabel com os marcadores de livros e eu com os ímanes para pôr ali. Como são muitos tenho que os pôr juntinhos e mais ou menos por 'estilos'.
Abraço, Chabeli. E dias felizes!
O íman é giríssimo!
ResponderEliminarObrigada pela simpatia. Venho aqui sempre espreitar, mas ultimamente ando com pouca paciência e confesso que quando vejo posts sobre política, Trump e afins, não leio, nem aqueles posts mais atrevidos ou estranhos. Não é falso puritanismo, é mesmo desinteresse.
Gosto, como sempre dos seus posts com beleza dentro, com livros, com histórias interessantes, de gente comum ou com as suas coisas, das suas casas e do campo, dos seus meninos...esses gosto e leio.
O seu blogue parece escrito por duas pessoas: uma, a mãe de família, dona-de-casa, amante da família, dos livros, dos trabalhos manuais, do campo e a outra, a executiva sexy, atrevida, descarada, sem papas na língua e capaz de chocar e de escandalizar os mais distraídos, com alguns posts inesperados (mesmo que para si seja tudo natural).
Sou muito terra-a-terra e gosto mais da primeira.
Beijinhos e uma boa semana:))
Olá Isabel,
ResponderEliminarNa volta sou mesmo duas: uma que é minimamente atilada, toda peace and love, coisas de casa, família e flores, livros e memórias e uma outra que, embora seja tudo isso, é também danada para a brincadeira, furiosa contra os maus políticos, não condescendente contra escritores facilitistas, irritadiça contra gente parva. Duas: eu. Ou quatro, como as fases da lua. Ou não, pensando melhor, não como as fases da lua porque, se fosse, haveria uma fase em que desapareceria de cena e isso, até ver, ainda não aconteceu. Todas as noites aqui estou caída...
Beijinhos, Chabeli! Dias felizes.
Ah!Ah!Ah! Exactamente isso!
ResponderEliminarBeijinhos:))