sexta-feira, dezembro 11, 2020

Palavras nuas que beijas quando a noite perde o rosto

 



Não vives aqui há muito e, no entanto, já sabes mais de mim do que qualquer outra pessoa. Gosto muito de ti. Acho que é a primeira vez que o digo. Mas já tinhas percebido, não tinhas...? Não precisava de ter dito. Nunca fui de dizer coisas assim. Fui habituado a guardar os sentimentos. A guardar não: a esconder. Já te contei: o meu pai não é homem de afectos, é um homem rude. Casca grossa, mãos calejadas, coração de pedra. Todo ele um bloco de pedra. Se alguma vez me ouvisse a dizer a alguém 'gosto de ti' haveria de ser o bom e o bonito. 

Caiu no mundo, ninguém sabe dele. Deixá-lo. Se calhar já nem é vivo. Nunca telefonou nem mandou qualquer notícia. E ninguém quis saber dele. Ninguém deu parte do desaparecimento, ninguém quis saber se foi para fora, se caiu num buraco, se foi atrás de alguma mulher. Foram muitos anos a desejar que se fosse embora ou que caísse morto. Quando foi, fizemos de conta que nunca tinha existido. Quando os vizinhos perguntavam, dizíamos: foi trabalhar para fora. E ninguém perguntava mais nada. Ninguém gostava dele. Foi-se embora e se alguém ainda se lembra dele faz de conta que não.

Falar nele ou em qualquer coisa que tenha a ver com ele é conversa que também não se pode ter lá em casa. Se a minha mãe percebe que penso nele, fica furiosa, diz que se ele lhe aparecer à porta chama a polícia. Chegou já a dizer que se tenho saudades dele que vá à sua procura e nunca mais ponha os pés lá em casa, que fique com ele, que o traga para cá, para minha casa. Por isso, nunca falo nele. É tema que virou tabu. 

Não é afectuosa, a minha mãe, acho que nunca aprendeu a ser. Afecto na minha família é fraqueza e ela sempre teve que ser forte.  Um dia conto-te umas coisas. Hoje não. Ainda não consigo falar no que aquilo era. Percebo muito bem a minha mãe. Não sei se ainda pensa nele mas também já não interessa. Ninguém é eterno. Poderia ter morrido de doença e também já cá não estava. É melhor assim, uma ausência. 

Ninguém sente falta. O que sinto, e se calhar ela e as minhas irmãs sentem o mesmo, é que não merecíamos ter passado por aquilo. 

Quanto à minha mãe, gostava que a conhecesses. Só quando fala nele fica assim, amarga, azeda, cáustica. De resto, para além de ser tão franca que chega a ser bruta, é cuidadosa. Melhor: é uma cuidadora. Quer sempre saber se estou bem, preocupa-se comigo. Faz-lhe impressão saber-me longe. Já devia estar habituada. E já está. Mas acho que lhe faz impressão. Quando me vê, pergunta logo quando é que assento. Quando é que assento... Conversa de mãe.

Mas olha,  se calhar já estou mesmo a assentar. A minha vida mudou. De vez em quando ainda me deixo cair no meu anterior mutismo mas, mal te vejo, logo tenho esta vontade de falar contigo. Já deves ter reparado: volto quase a correr da rua, despacho-me mais depressa do trabalho, mal vejo a hora de aqui me vir sentar a conversar contigo. 

Se te considero uma amiga...? Ah não, uma amiga não... Ainda não sei bem, dá-me mais algum tempo. Mas amiga, não. Por deus, amiga não.

Mas, olha, deixa que te diga, e estou a ser sincero, nunca antes tinha conhecido alguém assim. Sabes ouvir, sabes respeitar o silêncio, sabes esperar por mim. As tuas palavras são sempre inteligentes, sensatas e eu gosto de conversar com alguém como tu. Fazes-me perguntas que me deixam a pensar. De certa forma, sinto que vais levar-me a mudar de vida. Não sei como, mas parece que o pressinto. E sei que tu é que és de pressentir coisas, não eu. Mas, neste caso, parece que pressinto, acredita.

Sabes? Tantos livros, tanto estudo, tanto conhecimento e ainda estou aqui, sem saber para onde ir. Não sei de nada. Bem gostava de saber, bem sabes que sim, tantas vezes te tenho falado nas minhas dúvidas. 

Se calhar não preciso de ir a lado nenhum, se calhar o meu futuro é ficar aqui mesmo, enredado nas minhas rotinas, a fazer o meu trabalhinho quotidiano para chegar ao fim do dia e aqui, contigo, os dois, a conversarmos pela noite dentro. Se calhar é isso. 

Vejo aqueles vídeos meio loucos, gente que larga a cidade para ir plantar couves e criar galinhas, fazer montinhos de pedras à beira do rio, parecem felizes e em paz com o seu destino. E se, por um lado, penso que era o que eu deveria fazer, por outro, acho tudo aquilo tão ridículo...

O que achas? Diz-me. Gosto de te ouvir. Vês-nos a morar numa cabana na montanha, a escutar os murmúrios da noite e os passarinhos da manhã, a passar o Natal à lareira? Ou, antes, aqui, aos dois, sem querer saber de natais nem de nada do mundo exterior, para sempre trocando palavras, infinitas palavras, palavras que nos transportam aonde a noite é mais forte, ao silêncio dos amantes abraçados contra a morte

Sorris. Sorris e nada dizes. Diz qualquer coisa... Diz.

Ah, Sissi, esse teu sorriso...


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O que é o amor

Love is a strange and beautiful thing.  But we often put provisions on love - we attach it to how others are acting, to circumstances and emotions.  But what would the world be like if we stopped looking to get something in return, and just loved unconditionally, for the happiness it brings us all?  The most important thing is to learn to give out love, and let it come in.


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Fotografias feitas aqui em casa ao som de Há palavras que nos beijam, poema de Alexandre O'Neill na voz de Mariza

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Um dia feliz

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