Quando eu era pequena tinha medos. Aliás, tinha um medo. Um senhor medo: um pavor. Tinha medo de ver alguém com alguma doença que me parecesse grave. Era um medo incapacitante. Toda eu tremia por dentro, aterrorizada. Não sei precisar quando nasceu esse medo. Seria quando o meu avô materno morreu? Não sei. Pensava que teria uns três anos quando ele morreu num acidente. Afinal, tinha dois anos, disse-mo a minha mãe. No outro dia, quando morreu a filha do Tony Carreira, a minha mãe disse que nem queria imaginar o choque da família ao receber a notícia. Chorava enquanto falava. Perguntei porque chorava assim. Disse-me que se lembrava de quando recebeu a notícia do acidente do meu avô. Diz que até hoje ainda não recuperou do choque e desgosto. Imagino como terá sido, na altura. Tinha vinte e cinco anos, ela. Tinha uma relação por vezes um pouco indiferente em relação à mãe mas era amicíssima dele. Durante toda a vida presenciei o desgosto pela morte prematura do pai. Foi um acidente traumatizante. A minha avó, que era apaixonada pelo marido e que nesse dia ia ao cinema com ele, teria quarenta e um ou quarenta e dois. Durante anos a vi chorar ao falar do meu avô. Vestiu luto durante quase toda a vida. Na altura esconderam de mim (já o contei muitas vezes) mas devo ter percebido. Penso que é, portanto, provável que tenha nascido aí o meu medo da morte.
Durante anos íamos passear e fazer compras à Baixa, usando um transporte público que era usado por quem também ia para a 'Palhavã', o IPO. O pavor que eu sentia, o terror que me trucidava as entranhas só eu sei. Se via alguém com pensos, ligaduras ou ar de doente quase morria de medo. Mas escondia-o. Tinha medo de preocupar os meus pais. Penso que eles perceberam pois tenho ideia que tentavam que eu compreendesse que não tinha mal nenhum. Mas era mais forte que eu.
Já o contei. Desculpem que me repita. Quando era pequena, talvez três anos, parti uma clavícula. Estava em casa sozinha com o meu avô paterno. Gostava de me pôr de joelhos em cima de um banco que havia na cozinha e de me balouçar lá em cima. Ninguém queria que eu fizesse isso mas eu gostava de pôr o banco em dois pés e de o inclinar para ver até onde conseguia equilibrá-lo. Os meus pais e a minha avó agarravam-me, zangavam-se. Mas o meu avô, muito meu amigo e muito condescendente, tinha dificuldade em zangar-se. E, naquele dia, o banco virou-se, eu caí e, ao contrário do que costumava acontecer, chorei muito. O meu avô percebeu logo que alguma coisa se passava e mandou chamar o meu pai que estava a trabalhar. Quando o meu pai chegou, lembro-me bem, eu estava na cama do quarto ao lado do quarto dos meus avós e estava a chorar. O meu pai vinha assustado e ao tentar perceber o que se passava deve ter-me mexido no braço ou deve ter visto, através da pele, que o osso estava partido. E eu vi o meu avô também assustado e a declarar-se culpado, e o meu pai, aflito, quase a chorar. Então, para os descansar, disse que já não me doía e fiz de tudo para não chorar. Fui de imediato levada ao médico que, à vista, percebeu logo o que se passava. Tinham-me pegado ao colo e puseram-me numa marquesa que me lembro como sendo muito alta mas que, se calhar, era normal. Sei que o médico disse que ia, com as mãos, endireitar os ossos, alinhando as duas partes. Avisou que ia doer e que eu tinha que ser corajosa. E fui. Lembro-me bem. Doeu-me muito. Mas não chorei. Os meus pais sim. O médico ficou espantado com a coragem daquela criança; e eu hoje espanto-me com isto.
Toda a vida fiz de tudo para me mostrar corajosa para não assustar os outros.
E de tal maneira me habituei a esconder as minhas dores que acabei mesmo por me tornar a modos que estoica em relação a mim própria.
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E vinha para escrever sobre outra coisa e, afinal, distraí-me e acabei por me perder. Não era de nada disto que eu vinha para falar. Ia contar que, à ida para o campo, íamos a ouvir o Jaime Nogueira Pinto e o Pedro Tadeu a falarem da pandemia e das pestes ao longo da história, tema do último livro do Jaime Nogueira Pinto. E falavam de como isto vai mudar a vida e o mundo e do medo com que aprenderemos a viver porque primeiro que esta se extinga muito tempo decorrerá e, a seguir a esta, outra pandemia virá. Aprenderemos a viver com medo do invisível, do mal que nos pode chegar através de um filho, de um neto, de um amigo. E falou de como é desolador o estado da baixa de Lisboa, muitas lojas fechadas, provavelmente definitivamente fechadas. E eu pensei como deve ser frustrante e triste para as pessoas mais velhas que poderiam viver os seus últimos anos mais tranquilamente e agora a terem que andar de máscara, sem a ternura de um beijo ou abraço, longe da companhia dos seus.
À tarde, ao receber o telefonema de um amigo, soube que uns outros tinham tido covid e, mais estranho, soube que uma delas, que teve covid há quatro meses, semanas de sintomas e testes positivos, agora, num teste serológico, soube que não está imune. Foi a outro lugar fazer o mesmo teste, convencida que o primeiro estava errado, e obteve a confirmação: está como se não tivesse tido covid. E fiquei a pensar que esta porcaria desta doença, de facto, tira o tapete a toda a gente. Parece não seguir um padrão e isso mais difícil se torna de gerir. Uma roleta russa.
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Mas isto das pandemias e dos medos até era para ser de passagem pois a minha ideia era mesmo falar da maravilha dos verdes in heaven. Do perfume do campo. Dos passarinhos e dos seus alegres e inocentes cânticos. Dos cogumelos. E da gata.
Num blog, a escrita deve ser contida, parca. E eu, sabendo disso, esqueço-me e escrevo desabaladamente, esquecendo-me de que pouca gente deverá ter paciência para estes longos testamentos. Por isso, agora que vejo o comprimento do que já escrevi, não vou poder alongar-me a descrever o encantamento em que por ali andei. Apanhei laranjas e tangerinas, comi algumas, fotografei tudo o que vi, vagueei, maravilhei-me.
A quantidade e variedade de cogumelos continua a deixar-me espantada. Hoje até com uns redondos e peludos, coisa nunca vista, me deparei. Outros, umas bolinhas acastanhadas, compactas, superfície também a querer dar-se ares de felpuda. Outros cor de laranja, ondulados e como se de borracha, outros translúcidos, outro grande, quase azul. Uns grandes, outros minúsculos. Outros aos folhos verdes, como se de bordado inglês às palas. Não sei que terra mágica virou o meu querido e abençoado heaven para dele saírem seres tão extraordinários. Nem sei o significado disto, se é que tem significado. Mas será que, nas grutas, também vivem animais assim, às cores, seres nunca sequer imaginados? Teria graça.
E, de novo, eu a levitar por ali, silenciosa, em estado de êxtase, e ela, esfíngica, a observar-me.
Aproximei-me, quase emocionada por ela estar ali, parada, a ver-me. Deixou-se estar. Fui-me aproximando, falando com ela. E ela a ver-me. Até que, sem querer desliguei a máquina e, ao voltar a ligar, o som de arranque a fez ir-se embora. É esquiva. Mas sinto-a como um ser superior.
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Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heaven e acompanham The Lullaby Project pelas mãos de Catrin Finch & Seckou Keita
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Desejo-vos um belo dia de domingo, sem medos.
Saúde.
"Mas sinto-a como um ser superior"
ResponderEliminarEvidentemente. Acabou de entreabrir a porta da sabedoria.
Fotos lindas! A gata é tão bonita!
ResponderEliminarNão tenho medo da morte, mas tenho muito medo de perder as pessoas que amo... mas é inevitável. Claro que mais aceitável quando já são mais velhas e nunca na flor da idade como a Sara Carreira, ou uma criança.
Este ano perdi dois tios e gostava muito de ambos. Um deles muito ligado a boas recordações de infância, na quinta dos meus avós paternos. Temos que aceitar.
100% !
Beijinhos e uma boa semana:))
Passei por aqui vinda de outro blogue
ResponderEliminargostei do texto, muito intimista e muito bem escrito :)
o medo tornou-se negócio, mas o pior ainda é que existe,
e nós somos conscientes da dor e da perda daqueles que amamos,
e isso é muito difícil de aceitar
boa semana
Angela
Olá João,
ResponderEliminarTive uma cadela boxer que foi uma presença amiga durante quase treze anos. Era meiga e inteligente e era um membro de pleno direito da nossa família. Todos os dias me surpreendia com a sua inteligência e sensibilidade.
Em relação a gatos sempre tive uma relação distinta. Ou melhor: distante. Não sei o que pensam. Tenho receio de fazer uma festa com receio que não gostem e se assanhem. Olho-os sempre com admiração e respeito mas sem ser capaz de pensar em 'amizade' como pensava com a minha doce amiga boxer. Os gatos parecem-me animais misteriosos, estranhamente sábios. Não têm aquela transparência e afectuosidade dos cães.
Mas, se calhar, é impressão minha. Penso sempre que deveria ser capaz de romper a barreira que me separa deles... mas nunca tive coragem...
Olá Isabel,
ResponderEliminarSim, a morte é inevitável e, por vezes, um merecido descanso. Temos que aceitar, sim, é verdade. Até não há muito eu tinha grande parte da minha família próxima viva. Era tudo gente de grande longevidade. No outro dia o meu filho pegou num álbum de fotografias e ficámos espantados com a quantidade de gente que convidávamos para as festas de anos deles, desde miúdos a graúdos. E os graúdos eram muitos. Um friso de gente da qual a minha mãe é agora a única sobrevivente. O último a partir foi o meu pai. Antes tinham sido um tio e uma tia, muito queridos, meus padrinhos de casamento. Vamos aprendendo a aceitar mas é penoso de qualquer maneira: ou porque partem inesperadamente ou porque sofrem, vendo a morte a rondar.
Mas, enfim, é o que diz: temos que aceitar.
No post de hoje, ao escolher o filme dos presentes feitos em casa pensei em si. Não é também o género de coisa que a Isabel faria de gosto?
Beijinho, Chabeli, e dias felizes.
Olá Angela,
ResponderEliminarFiquei contente que tenha vindo ter até este meu espaço. Escrevo como se conversasse com quem me lê e fico contente quando quem me lê sente que escrevo para si.
Obrigada pelas suas palavras. Volte sempre.
Dias felizes, Angela.