Tenho que assumir: a infantil eu adorei. Toda eu era alegria, só descobertas, uma animação. Tanta animação que nunca consegui dormir a sesta. Depois de almoço, fechavam-se as janelas, estendiam-se os colchões, vinham as mantinhas. E toda a gente dormia. Menos eu. Mandavam-me deitar-me mil vezes porque levantava a cabeça a ver se descobria alguém acordado. Não tinha sono. Queria era que a hora da sesta chegasse ao fim. Vibrava com tudo aquilo. Tinha amigos e amigas, tinha meninos perdidos de amor e tinha a despontar em mim aquele gostinho de disfarçar que gostava de quem gostava e fazer de conta que me interessava por quem não gostava, just for the fun of fazer pirraça aos apaixonados.
Depois a escola primária: uma graça. Aprender, aprender. Havia outras classes na mesma sala. Ouvia tudo, aprendia tudo sem me dar conta que não tinha a ver comigo. Só gostava de andar com os mal comportados. Pregávamos partidas, tramávamos outras, brincávamos muito e, a esta distância, sinto que namoriscava muito. Uma alegria permanente, uma festa de inocência e leveza absoluta.
O liceu foi sobretudo uma descoberta dos sentimentos e daquilo que eu viria a ser. Aliás, acho que ainda hoje sou aquilo que já era nessa altura. Aliás, desde sempre. Gostava muito de aprender. Não tudo mas quase tudo. Literatura, sim. Gramática, não. Ciências, muito. Mas Botânica ou Mineralogia não. Tanto que hoje gosto da natureza e na altura as matérias da botânica e da mineralogia enclausuravam de tal forma o conhecimento em taxonomias que eu não consegui libertar-me de tão férreo espartilho. Línguas, muito. História ou Geografia, se tivesse que decorar, nem pensar. Física o mais possível. Química não. Matemática, tudo. Bem, tudo, tudo não. Na altura, Geometria Analítica nem por isso. Mas, de resto, quanto mais abstracto e incompreensível mais eu gostava. Educação Visual nem por isso pois tudo me apelava à liberdade e liberdade era coisa que ali não era permitida. Mas muitos amigos e amigas, muitos pretendentes, muita sessão dançante, muito namoro, muito amor, muito cinema, muita praia, muita descoberta, muita vontade de maior liberdade.
Depois a universidade. Uma seca, aquela gente marrona. Ninguém parecia estar ali para curtir a vida, só para marrar. Gente mais maçadora. Professores e colegas, os maiores chatos. Tive que diversificar: conhecer gente de outras universidades e institutos, tive que ir em busca de quem tivesse da vida o mesmo entendimento que eu.
Mas as aulas, senhores. Que sofrimento. Matérias que eram de arrasar qualquer um, cadeiras que eram cadeirões. Muitas vezes pensava: que é que estou aqui a fazer? Uma vez fui ter com a minha mãe a meio da semana: chorei. Não gostava daquilo. Tudo excessivamente académico e inútil. Impossível extrair de tudo aquilo algum préstimo. E não havia um único colega que parecesse achar o mesmo que eu. Mais valia desistir. A minha mãe nunca me tinha visto assim. Não me lembro do que ela me disse, só me lembro do seu ar apreensivo.
Aguentei-me até à primeira ronda de avaliações, no fim do primeiro semestre. Para meu espanto, as pautas mostravam chumbos a encarnado de alto a baixo. Os marrões, aqueles que pareciam saber tudo, os puxa-sacos dos professores, afinal também não pescavam nada. E eu, embora tivesse notas que não tinham nada a ver com as minhas notas habituais (até um 12 eu tive), para minha surpresa, até tirei uns 14's e, pasme-se, um 19, que me levou até à primeira prova oral da minha vida, para defesa de nota.
E toda a gente me disse que eu estava enganada, que estupidez dizer que não percebia nada, que era normal haver um choque, que me habituaria. E a verdade é que mil outras coisas começaram a acontecer, todas mil vezes mais importantes do que o curso. Pensei: se largasse isto, qual seria a alternativa? E nenhuma me pareceu perfeita. Pensei: para fazer o que quero fazer na vida, isto é capaz de ser uma boa muleta. E que se lixe. Que a vida andasse leve, feliz e que, cadeira após cadeira, o curso se fosse cumprindo. E algum tempo depois estava a trabalhar, depois a casar, sempre estudando. Sem dramas. Às vezes chegava a casa e ficava aterrada com o pesadelo que me esperava: sebentas intragáveis, livros gigantes, matérias estarrecedoras. Pensava muitas vezes que não conseguiria tragar tal bisonte. Nessas alturas, pouco dada que sou a altas filosofias, agarrava-me àquela velha máxima de que a forma de comer um boi é cortá-lo primeiro em bifes. Claro que, com o tempo, aprendi que, antes disso é preciso agarrá-lo e, em boa verdade, antes é preciso querer agarrá-lo. Mas, posta a posta, consegui despachar tudo e ver-me livre de tudo o que tinha para fazer até obter o diploma que quis à maneira antiga, verdadeiramente dentro de um canudo. Uma preciosidade, sobretudo com valor simbólico.
E com o curso despachado, respondi a um anúncio, fui escolhida, larguei a docência e fui prosseguindo o meu caminho. De tudo o que aprendi, aproveitei, ao longo de todos estes anos, os básicos, os fundamentais. O resto, o conteúdo daquelas infernais sebentas e tinhosos livros, esqueci. De tudo, o que aproveitei foi, sobretudo, a capacidade para resistir à vontade de desistir. Aprendi a, mesmo não gostando, seguir em frente. Aprendi que, mais importante que tudo, a capacidade para lidar com o que não nos interessa, com o que nos maça até à medula, com o que nos parece uma perda de tempo, um atraso de vida é fundamental. Grande parte da nossa vida profissional é feita disso: de vontade de desistir e, ao mesmo tempo, vontade de chegar ao fim, de alturas em que damos tudo para ver como melhor nos livramos de desalentos, de empecilhos, de desmotivações, de malas pesadas e atrasos de vida.
E, isso não tenho dúvida, foi na escola, sobretudo na universidade, que melhor o aprendi.
Agora, confesso uma outra coisa que, a mim, me custa a perceber: como é que há gente que faz de andar, durante anos e anos, a papar cursos um modo de vida?
Ou será que há cursos em que é tudo filet mignon, bifinho do lombo, tudo do bom e do melhor, tudo da máxima utilidade e, ainda por cima, tudo piece of cake? Só se for isso. Escola é boa para a gente passar por lá, conseguir passar por entre os pingos da chuva, fazer desse processo uma aprendizagem, perceber o que é que, dali, faz sentido e pode ser útil, reter essas bases, aprender a aprender, e pronto, já está, bye bye, seguir em frente.
Escola para mim, para ser útil e boa, tinha que ser outra coisa. Exemplifico: vamos supor um curso daqueles que o comum dos mortais teme, digamos que, por exemplo, Física. Um curso carregadinho de Matemática, que vai das vulgares termodinâmicas até às mais puras abstrações, um cocktail de leis e funções e teoremas e calculatórias e o escambau. O que lhe faria eu? Pois bem: cinquenta por cento seria disso mesmo, teria mesmo que ser, talvez temperando com ainda maior dose de abstracção, tanta que quase se comparasse à poesia, e os outros cinquenta por cento seriam Literatura, Filosofia, Psicologia, Economia Política, Línguas, Arte, Saúde, Ambiente. E uma parte das aulas seria dada ao ar livre. E seria obrigatório que os estudantes vissem cinema, lessem livros e, em conjunto, nas aulas, os discutissem. As escolas deveriam ensinar as pessoas a serem completas, inteiras, íntegras, boas pessoas, generosas, tolerantes, curiosas, dignas, pessoas que gostem de viver e de apreciar o que a vida tem de bom.
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Fotografei estas flores este domingo aqui no meu jardim. Ainda não as tinha descoberto. Graças a um precioso conselho que o Corvo Negro em boa hora aqui deixou e que muito agradeço, instalei a app Plant-net que me acompanha nas minhas descobertas. Esta é a Passiflora 'Amethyst' e é tão linda e perfeita que me deixou encantada. E agora apeteceu-me ver como resistia a diferentes banhos de cor. E acho que resiste bem: a beleza resiste a tudo.
Enquanto isso, Roberta Mameli interpreta "Apri le luci, e mira" de Vivaldi
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E agora, com vossa licença, o vídeo da Voz da Razão que me fez escrever este post
(ie, das Avós da Razão, justamente sobre a escola -- ou melhor, sobre como ter vontade de ir à escola)
Imitando o se diz a propósito do Direito,
ResponderEliminarquem só sabe de Física nem de Física sabe ..
Bem UJM, mas à velocidade que o mundo muda e dadas as baixas qualificações que temos em PT nas áreas emergentes, era bom que a malta papasse uns cursos. Isto a aprendizagem na vida era muito bonita à uns anos atrás. De resto o tecido económico português, em muitos casos a definhar, não valoriza propriamente a formação contínua dos trabalhadores (resume-se aos estágios... Que são mais para poupar salários e dinamizar o recrutamento). Se queremos mudar a estrutura económica precisamos de atrair empresas estrangeiras dessas novas áreas e para isso precisamos de fornecer mão de obra qualificada nessas áreas (o que ainda escasseia e, sobretudo, não temos em estratos populacionais mais velhos).
ResponderEliminarPor fim, diga-se que o que o ensino superior mudou imenso. Se eu notei isso na mudança profunda que foi o designado processo de Bolonha (que veio fomentar esse colecionar de cursos ao longo da vida), agora irá dar mais uma valente volta.
A questão é? Estará o ensino superior português efetivamente adaptado a este e futuro paradigma de formação contínua? Eu digo que não. Mas é inútil o que temos? Também diria que não.
Ps: atividades económicas que circulam nas fronteiras do conhecimento (biotecnologia, farmacêutica, química "sustentável", electrónica, etc) são altamente dependentes do sistema de ensino superior e dos escravos - alunos que por lá passam, de preferência assim já com experiência. E vai acentuar-se isto! O próximo quadro comunitário de apoio vai aprofundar os € para as empresas recorrerem as estes.mecamismos de "inovação".