Voltei aos dias em que a literatura não me acompanha. Desde que me levanto até sair para fazer uma caminhada, agora já bem de noite, não tenho um minuto de sossego. Por vezes penso que talvez consiga descansar um pouco a seguir ao almoço, ler umas páginas. Mas não tem sido possível. Olho o calendário e todos os dias constato que está a passar a correr.
No outro dia tive uma reunião -- remota, claro -- com pessoas de duas outras empresas. Uma das empresas era aquela para a qual trabalhei até há poucos meses. Revimo-nos, perguntámos uns pelos outros, sorrimos, e um deles, o que me era mais próximo, ao referir-se a mim a um dos da outra empresa, disse que eu tinha saído de lá há cerca de um ano. Não quis interrompê-lo. A ele parece-lhe que já foi há tanto tempo? Como pode ele ter-se enganado assim? Foi no verão, há poucos meses.
Mas não posso admirar-me: no outro dia recebi a visita de um ex-colega. Contou-me coisas de lá, de outros meus ex-colegas, contou-me como se fossem coisas empolgantes com as quais eu iria vibrar. Esforcei-me por mostrar alguma coisa mas a verdade é que ouvi com absoluto desinteresse. Foi como se fossem personagens de um tempo tão remoto que eu mal recordava.
No outro dia, experimentei fazer um teste idêntico ao que várias pessoas da empresa tinham feito. À pergunta: 'Sobre o que conheceu no passado, reconhece mais facilmente números e acontecimentos ou rostos e nomes?'. Hesitei. Acho que não ligo muito a coisas que perdem relevância com o tempo como é o caso de números e acontecimentos. Mas depois lembrei-me que passo a vida a encontrar pessoas que vêm cumprimentar-me, dizendo-me que me conhecem muito bem e eu zero, nem ideia. Assinalei como correcta 'Números e acontecimentos'. É estranho. Mas é verdade.
O tempo passa, dizia.
Não sei o que fica do tempo que passa. Vestígios, sedimentos. De uma pessoa ficar-me-á o sorriso, a esperança, a gentileza, as palavras tão cheias de azul e de luz. De outra ficar-me-ão umas palavras ditas numa tarde enquanto olhava pela janela: falava do voo de um pássaro, fazia um movimento ondulante com a mão como se fosse um esvoaçar lento. De outra talvez um poema dito, inesperadamente, na língua de origem. De outra, os livros que me recomendou. De uma outra, num dia em que fui encontrá-lo numa sala mergulhada na penumbra, ficar-me-á o que me disse: 'Agradeço o abraço que sinto que, com as suas palavras, está a dar-me'. De um outro, um que se portava muito mal, as palavras com que se despediu, ao abraçar-me: 'Não lhe digo que se porte bem, porque se porta sempre bem'. Apontamentos soltos. De algumas pessoas guardarei a imagem do rosto, o nome, algumas palavras, o momento em que foram ditas. Poucas essas. De outras, a maioria, não guardarei nada.
[Agora que falo nisto, lembro-me: comprarei algum dia «Sobre as Falésias de Mármore» de Ernst Jünger que um dia me recomendaram? Agora que não frequento livrarias, arriscarei comprar um livro sem o ter antes nas mãos, sem lhe espreitar os interiores? Não será uma desilusão? Se ao menos pudesse ainda sentar-me ao sol do fim da tarde, a sentir o calor dourado e bom sobre a pele, para o poder ler com o coração quente. Foi há quanto tempo que me falaram neste livro? Há uns meses? Há uns anos? Nunca? Sonhei? Como o saberei?]
De algumas pessoas é isso mesmo: nada. No outro dia tive uma reunião com um conjunto de pessoas. Tudo ali me pareceu sem nexo: o tema, o ar convencido dos meus interlocutores. Uns dias depois, perguntaram-me quando é que eu poderia dar feedback. Tive que me esforçar: não apenas não recordo o nome de nenhum deles, nem a imagem do rosto e, pior, nem me lembro de que raio de feedback estão à espera. Mesmo que de forma involuntária, varro para debaixo do tapete do meu esquecimento tudo o que não me interessa. Esqueço-me imediatamente. Se sou forçada a voltar a conviver com quem não me interessa é com indisfarçável sacrifício que me sujeito a isso.
Nas conversas com a pessoa que me convidou para a presente empresa, quero traçar uma linha vermelha. Quanto sinto que ele quer mais de mim do que o que estou disposta a dar, relembro a linha vermelha. Ele fica desconfortável, muda de conversa. A linha vermelha não é nada de mais, é apenas um horizonte temporal. E eu, que vejo o tempo a passar, interrogo-me sobre como vou conseguir manter-me, firme, do lado de cá da linha que não quero transpor. E, no entanto, para o conseguir, abdico de ler, de fotografar, de me deslumbrar com as flores que, por aqui, são escandalosamente belas, de passear na praia, de ver o mar.
Já estamos no fim da semana, no fim do mês, qualquer dia no fim de um ano que se revelou miserável, um ano prenhe de más notícias, de desgostos, de problemas sem precedente. O que me ficará deste ano? Não sei. Acho que nem vou querer saber. Tomara que zero. Mas não, nem isso. Infelizmente, muito menos que isso.
Um ano de perdas, certamente.
Estou cansada e com sono, desculpem. É isso.
Fotografias de Ana Zibelnik ao som de Prélude No 4 en mi mineur, Chopin, na interpretação de Khatia Buniatishvili
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Uma sexta-feira feliz.
Já viu que está sempre a queixar-se de não ter tempo ? E por que não mudar de vida ?
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ResponderEliminarTento não olhar para trás... mas o que é certo é que dou comigo a pensar que os dias, há uns tempos, tinham 24 horas. Agora,se são as mesmas, tenho a sensação que algumas se perderam
e andam por aí, desnorteadas quanto eu...
Abraço, amiga flor. Cuide-se e tudo de bom.
Olá Anónimo/A,
ResponderEliminarJá vi, sim senhor/a. Mas cada um carrega a cruz que lhe calhou em sorte e a falta de tempo é a minha cruz. Depois tenho uma coisa: parece que só consigo viver assim. Se me sobra tempo, fico ociosa e aborrecida. Então, arranjo logo o que fazer. E parece que não sei dosear, fico logo a rebentar pelas costuras. Por isso, queixo-me da falta de tempo e queixo-me mesmo, mas o que eu gostava mesmo é que os dias tivessem mais umas seis horas. Tenho esperança que isso ainda aconteça. Está a acontecer tanta coisa que um dia, quem sabe, os dias dilatam-se e eu fico nas minhas sete quintas.
Capisce?
Um bom fds.
Olá Maripa, Menina Bonita,
ResponderEliminarComo tenho estado maioritariamente em teletrabalho, pouco saio de casa. E não tenho aqueles momentos de intervalo e pausa que dividiam os dias em fatias, fazendo parecê-los maiores. Agora os dias são quase uma continuidade. Mal dou por mim já são quase horas de almoço, depois recomeço, depois vejo o dia a escurecer e logo escurece mesmo, passado um bocado começo a pensar que são quase horas de jantar, depois... já é de noite e o dia está quase a acabar. Uma coisa estranha. Num dia estou na segunda-feira e, mal olho oo calendário, já a semana acabou.
Não sei que é isto. Será coisa da idade? A gente, com a idade, começa a não saber agarrar o tempo? Como é que a gente há-de fazer render os minutos...?
Se descobrir um truque, venha aqui dizer-me, está bem...?
Abraço com sorrisos, Maripa Menina Bonita!