Acordei com uma dor numa perna. Tantos esforços tenho feito, tantos pesos tenho carregado, tão abaixo e acima tenho andado, debruçando-me nas caixas, esticando-me para arrumar os livros, alguns em prateleiras bem altas, livros e o demais, que algum músculo se esticou para além da conta. Em simultâneo o trabalho, as reuniões, os telefonemas, e sempre a correr, sempre a pensar no que falta fazer. E, portanto, o corpo deu de si. Em mim, volta e meia, o muito esforço manifesta-se assim. Posso carregar caixas como um estivador que até eu fico espantada com a minha força, posso trabalhar dias a fio, horas a fio, e toda a gente acha de mais e me pede que abrande e eu só percebo que estou cansada quando aqui, à noite, caio instantaneamente a dormir. A energia e a resistência física não me faltam. Mas a ligação dos músculos aos ossos não deve ser das mais famosas. Acho que é aí, em cima, na zona de uma das virilhas, que me dói. Já tomei um ben-u-ron pois fomos ver se comprávamos candeeiros (e uma broca e buchas e extensões) e fiz mais uma máquina e tive uma reunião complicada e fomos ao supermercado. E, como estava com aquela dor e toda coxa, não tive outro remédio senão tomar um comprimido. Mas não arrumei livros nem deu para me esforçar muito, seria impossível.
De manhã, o meu filho veio com os meninos buscar as bicicletas para irem pedalar. Depois vieram largá-las e foram à vida deles. Mas estava em reunião nem consegui estar com eles. Ao fim da tarde vieram para fazer o favor de colocar as portas nas sacanas das estantes cor de rato quando foge. Desisti de me meter em trabalhos. Não era isto que eu queria mas a verdade é que, vendo bem as coisas, sendo benevolente e ceguinha, a coisa até é capaz de ficar com uma certa pinta. Uma parede toda em clarinho e outra, em perpendicular, toda em platinado foncé. Quando lá tiver os livros dentro logo faço a minha avaliação final. Como não gosto de me martirizar, quando acho que não vale a pena o desgosto, marimbo-me para as reticências e faço por descobrir vantagens. Na volta é a isto que se chama optimismo.
A minha menininha mais linda queria ir trabalhar, ajudar-me, queria arrumar livros. Como eu estava impossibilitada, tal a dor, fomos sentar-nos na chaise longue que fica entalada entre a dita estante e a janela. Os parapeitos aqui são baixos e, por isso, ficamos a ver a rua, o jardim. Ela encostada à parede, entre a estante e a janela, eu reclinada no encosto. Ali estivemos a conversar. Adora estar cá. Disse-me que já escolheu a cama. Diz que o irmão a seguir fica na outra. A mãe perguntou onde fica o bebé. Ela disse que fica ou com ela e com o mano. Depois acrescentou: tu e o pai dormem no outro quarto. A mãe riu: ah, nós também dormimos cá? Ela sorriu, fez que sim. A mãe respondeu-lhe: 'Não... eu e o pai vamos mas é passar a noite a um hotel...'. Ela disse: 'Está bem'. E sorriu, toda contente.
O mais pequeno queria ir à viva força para a cave, queria que eu fosse abrir-lhe a porta. Não fui. Expliquei que não havia ninguém para ir com ele. Disse que não fazia mal. Depois disse que podia ir o avô. Expliquei que o avô estava a acabar uma coisa, que tinha mesmo que acabar, não podia falhar. Depois perguntei-lhe: Mas queres ir lá para baixo fazer o quê? Respondeu: Para ir descobrir coisas. De facto, esta casa é uma verdadeira arcazinha do tesouro. Entre os recantos (e o que eu gosto de recantos...) e o que os anteriores donos cá deixaram, há sempre, de facto, coisas para descobrir. De vez em quando, a senhora, quando andava nas suas mudanças, perguntava-me se podia deixar algumas coisas. Eram coisas difíceis de retirar ou transportar, que não lhe serviam na casa nova. Tenho ideia que disse que sim a tudo. Vasos muito grandes, alguns candeeiros, prateleiras, arcas de madeira, uma mesa metálica que pesa toneladas e que, aproveitando os possantes homens das mudanças, veio para debaixo do telheiro. Portanto, de vez em quando, em especial na cave e garagem, vejo coisas que não sei bem para que servem. Por exemplo, uns módulos de gavetinhas. O meu marido perguntava no outro dia: 'Para que é que os gajos quereriam isto?'. Não faço ideia. 'Para guardar facturas, coisas assi...'. O meu marido achou que não: 'Só tu é que ias pensar numa coisa dessas'. Pois bem. Ontem, para minha surpresa, vi que já ocupou um módulo. Buchas, pregos, parafusos. Só o vi usar uma gaveta mas, na volta, vai organizar as suas ferramentas e afins por gavetinhas.
Mas o bebé não sabe disso. Se soubesse, então, ficaria curiosíssimo. Gosta de montar coisas. O pai até lhe ofereceu um martelo a sério. Quando o vejo de martelo em punho fico em pânico, a temer que me destrua a casa. Mas, até ver, ainda não.
O mano do meio é de outro calibre. Estava a ver televisão e, de repente, deixei de vê-lo. Chamei, chamei. Nada. Fui em busca, de divisão em divisão, e nada. Depois vi a luz da casa de banho acesa e pensei, ora, coitado, já não pode ir à casa de banho em paz. Passado um bocado a irmã veio dizer-me: o mano não está na casa de banho: ele é muito esperto, acendeu a luz e fechou a porta para nos enganar. Chamei por ele e ouvi a voz a vir da sala. Perguntei-lhe: 'Onde estavas?' Respondeu-me, com ar lampeiro: 'Estava aqui...'. e eu: 'Não estavas nada. Diz lá.' Detectei-lhe um arzinho de quem queria disfarçar a matreirice. E aí tive um lampejo: 'Não me digas que foste outra vez a procura daquele livro...'. Desmanchou-se: 'Descobri outro também com mulheres nuas...' e fez um ar malandro. Só me ocorreu dizer: 'Não posso crer. És maluco'. Não disse mas pensei: sai ao pai que, era quase bebé e já todo ele se entusiasmava com maminhas. Tudo o entusiasmava: fotografias, estátuas, manequins em montras. Pois quem sai aos seus não degenera e cá está o mano do meio, oito anos acabados de fazer, sempre empolgado com seios femininos.
E depois, uma vez montadas as portas das estantes, lá foi o casal fazer uma corrida e, uma vez regressados, lá se foram os cinco.
E eu fui trabalhar e o meu marido lá continuou. Depois fiz os meus telefonemas. Depois fui fazer o jantar. Jantámos às dez e meia da noite.
Uma vez aqui chegada ao sofá, ainda circulei pelos jornais a ver se alguma coisa puxava por mim. Pode andar por aí meio mundo às turras, os médicos e o Costa, o Rio e o Albuquerque armados em não sei o quê ou pode o Marcelo andar feito nadador-salvador, pode a imprensa e as redes sociais andarem com o André Populista ao colo ou pode o Chiquinho-bebé andar a brincar aos partidos... que eu, Caro Anónimo, não sei se é das canseiras, se é da falta de pachorra para coisas assim, a verdade é que nada disto me dá pica para escrever sobre.
O que me interessa é seguir o conselho do Amofinado sobre o reencaminhamento do correio, o da Gata Aurélio sobre a forma de fixar quadros sem furar paredes (já cá cantam, já os trouxe do Leroy), a solidariedade do Francisco quanto à corzinha arratada da estante, a empatia da querida Sol Nascente e a todos que, em comentário ou mail, me deixam palavras sempre tão simpáticas e a quem aqui deixo os meus agradecimentos.
O que me interessa é seguir o conselho do Amofinado sobre o reencaminhamento do correio, o da Gata Aurélio sobre a forma de fixar quadros sem furar paredes (já cá cantam, já os trouxe do Leroy), a solidariedade do Francisco quanto à corzinha arratada da estante, a empatia da querida Sol Nascente e a todos que, em comentário ou mail, me deixam palavras sempre tão simpáticas e a quem aqui deixo os meus agradecimentos.
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E usei aqui pinturas de Wassily Kandinsky ao som de Max Richter: Never Goodbye.
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Entretanto, adivinhando que ando à volta das minhas estantes, o meu amigo algoritmo tinha estes vídeos aqui abaixo para me sugerir. Não é a primeira vez mas é o género de vídeo que posso ver várias vezes pois descubro sempre alguma palavra nova.
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A estante do Pedro Mexia
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A estante de Clara Ferreira Alves
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A estante de Rui Cardoso Martins
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A estante de Teolinda Gersão
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E uma bela e feliz sexta-feira
...a gato aurélio fica feliz por ter ajudado nesse doce tormento que é mudar para o canto que nos encanta :-)
ResponderEliminarvotos de melhoras!