domingo, julho 26, 2020

Em dia de grandes arrumações, eis que aparecem mulheres sem cabeça, peças que, com o tempo, se desintegraram, fotos que mostram gente que já não existe, moedas, pilhas e canetas tresmalhadas como se não houvesse amanhã, testes de orientação vocacional e sei lá que mais







Dia de arrumações, de limpezas. Desde manhã até ao fim do dia. Estou, naturalmente, cansada. E ainda a procissão vai no adro. Aqui há algum tempo, uma arrumação destas aconteceu com os roupeiros. Sobre as sacadas de roupa que dei, tenho ideia de que aqui deixei registo. E agora ainda hei-de lá voltar de novo. Mas, por enquanto, tenho estado com gavetas com papelada, prateleiras de estantes fechadas onde reside muito bibelot, caixas e caixinhas, algumas das quais com coisas insólitas lá guardadas. Moedas soltas aparecem no fundo das gavetas, dentro de caixas e tacinhas, por todo o lado. Pilhas não têm conta. Não percebo. Presumo que sejam como os coelhos, que se multipliquem desenfreadamente. Canetas que já não escrevem são mais do que as mães. E, no meio disto, algumas descobertas surpreendentes.

Muito papel foi jogado fora, facturas, receitas, coisas assim. Flores secas também, pot-pourries, espigas cor de laranja, coisas de que vou gostanto e mantendo. Mas estou numa de me desfazer de tudo o que não me cause dor e, portanto, os sacos foram-se enchendo. Objectos não identificados ficaram expostos na sua estranheza indo alguns também porta fora. Aparecem peças que não sei a que pertencem ou se existem por si, assim. E um diploma em meu nome como sendo a mulher que melhor se veste na empresa. Foi numa festa de natal. Houve votação para várias categorias, todas assim nesta base. Já não me lembrava de tal e, muito menos, que aquilo tinha dado direito a um diploma.

Descobri também uma peça de louça que parecia inteira e que, afinal, tinha duas partes cuidadosamente encostadas, parecendo que estava inteira. Pergunto-me quem terá feito tal estrago e, pela calada, fez de conta que nada tinha acontecido? O meu marido desvaloriza, disse qualquer coisa tão bizarra que nem sei transcrever, qualquer coisa como ser natural dado ser peça antiga, como se as peças de cerâmica se desintegrassem ao fim de alguns anos. Claro que desconfiei logo que tivesse sido ele. Achou que eu não estava boa da cabeça, a que propósito iria ele mexer naquelas mariquices? Não deve ter dito mariquices, costuma usar um sinónimo menos meigo. Mas não me lembro exactamente do que mais disse pois, vendo que dali não levava nada, desliguei, tanto que fazer que não vale a pena perder tempo com coisa assim. Mas não foi a única coisa partida. Numa outra estante, tenho duas peças de cerâmica, duas bonecas artesanais muito bonitas. Eu, pelo menos, acho-as muito bonitas. Uma delas estava sem cabeça. Fico perplexa com isto. Penso que pode ter sido outra pessoa. O meu marido zanga-se com a minha desconfiança, que obviamente não, se tivesse sido, ela teria informado, e insiste que as coisas se partem sem intervenção humana. Também admito que não deve ter sido essa pessoa: uma vez que houve um acidente assim, ligou-me, em lágrimas, até me assustei, pensei que tinha acontecido alguma desgraça. Mas, com isto, estava ainda mais intrigada pois não descobria a cabeça. Afinal, lá estava, atrás da outra mulher. Mistérios.


Às tantas, o meu marido chamou-me: tinha descoberto umas fotografias que, de ponta a ponta, eram surpreendentes. Para começar, eu era outra. Tinha havido uma festa grande cá em casa, a casa estava cheia. Havia gente por todo o lado. Eu estava com um vestido de noite, justo, de alças fininhas. O meu marido, vendo-me nas fotografias, estava espantado, diz que não se lembrava de eu ter sido tão magra. Não estava magra, estava, simplesmente, como fui até a menopausa me ter deixado mais a gosto de Rubens. Quem estava assim, nessa altura, era a minha mãe. Hoje, ao telefone, falei-lhe nisso. Disse ela, podes crer, a seguir à menopausa, alarguei de costas, aumentei de peito, acabei por dar os blasers todos, nenhum me servia, nada abotoava no peito. Agora não, agora voltou ao que era antes, esguia, elegante. Tenho esperança de, daqui por uns anos, também eu volte a adelgaçar. Numa outra festa, creio que seria uma festa de anos, a casa também cheia, eu estava de calças brancas e tshirt justinha, e o meu corpo estava metade do que hoje parece. O meu marido pergunta: estarias doente? não tenho ideia nenhuma de seres tão magra. Volto a dizer-lhe que não estava nada magra, nunca fui magra, nem doente, qual doente, simplesmente mantinha um corpo de adolescente. Ele olhava espantado, não reparando que, com ele, foi o contrário: hoje está metade do que era naquela altura. Mas o principal ponto de interesse daquelas fotografias está longe de ser a outra que era eu. Éramos todos outros. Os meus filhos eram adolescentes, em início de adolescência. Tão bonitos, tão queridos, ainda a despontarem. Contudo, numa das festas já estava o namorado da altura da minha filha, o primeiro, um rapazito. Os meus sobrinhos eram, ainda, umas crianças. Mas impressionante, impressionante, é a quantidade de pessoas que já não estão por cá. Até a minha avó materna ali estava com ar desempoeirado, bonita. Era, na altura, mais nova do que a minha mãe é agora. Teve a minha mãe aos dezassete e a minha mãe teve-me aos vinte e três. Por isso, naquela altura, ali estava a minha mãe toda giraça e a minha avó toda inteiraça. Mas estavam também os meus sogros, a mãe de uma prima por afinidade, o primo do primo, jovem desportista e dos mais divertidos do grupo e que, há um par de anos, do nada, se foi para desgosto de todos nós que não queríamos acreditar em tal maldade. E estava, claro, o meu pai. Sempre com aquele ar jovem e arejado, embora geralmente com ar mais circunspecto. O meu marido geralmente também não aparece a rir nem liga patavina a fotografias. Fica sempre bem mas com ar de quem não está nem aí. Julgo que nunca se deve ter rido para uma fotografia. Presumo que o meu pai também não. 


Olha-se para aquelas fotografias, grande parte dos que ali aparecem já desaparecidos, os outros todos mais velhos, a caminho de um dia serem também uma memória e, necessariamente, uma pessoa sente-se melancólica. Mas depois logo se percebe que nada disso, que ideia, tristezas não pagam dívidas, para quê ver as coisas só pela metade? Então e os que, nessa altura, ainda nem em projecto estavam? Tantas pessoas que naquela altura não existiam e que hoje já estão por aí, traçando o seu percurso, construindo o seu futuro, trazendo o calorzinho bom do seu afecto às nossas vidas.

De vez em quando, o meu marido que esteve também envolvido nesta empreitada, perguntava-me: onde é que ponho isto? Fui dizendo: fotografias com fotografias, recordações com recordações. É que, por exemplo, encontrei um postal ilustrado que lhe enviei quando namorávamos. Quanta inocência a daquela minha paixão. Não me lembrava nem um bocadinho de lhe ter escrito aquilo. Curiosamente guardou-o e não sei que voltas já terá dado aquele postal para ali estar. Parece que não liga a nada a estas 'mariquices' mas, na volta, se calhar até liga. (Mas, se ligar, é só um bocadinho. Um bocadinho pequenino. E eu acho graça a ele ser assim. Não sou muito de ligar a homens lamechas).

Numa terrina do serviço da Vista Alegre que pouco uso e que está dentro do louceiro, fui dar não apenas com um documento contendo a linhagem da nossa cãzinha, com o seu registo e com outros seus documentos, como com os testes de orientação profissional que o meu filho que, quando andava no 9º ano, por sua iniciativa e sem dizer nada em casa, foi fazer com a psicóloga da escola. Impressionante como, desde miúdo, desde sempre, foi aquilo que ainda é hoje: decidido, pragmático, focado. Gostava de saber onde pára os que a minha filha fez também no 9º e que a mostraram com um nível de inteligência excepcional, com capacidade para muita coisa mas com mais forte pendor para as áreas que, de facto, profissionalmente tem vindo a seguir. Pode ser que, nas coisas que ainda estão por passar a pente fino, isso também apareça. Devia guardar os dois no mesmo sítio.


Em dias assim, fico sempre com vontade de chegar àquela fase da vida em que terei tempo para fazer reorganizações a sério, tudo bem sistematizado, classificado, nada a pairar por partes incertas. É que agora, como é tudo na base dos shots, tudo em doses maciças e condensadas, muito trabalho em períodos muito curtos, parece que fica sempre tudo a modos que pela metade.

Ao fim da tarde, fomos até à praia. Mas a maré estava cheia e o areal igualmente cheio. Por isso, fizemos a nossa caminhada à beira de água, que bem boa estava, e, no fim, desamparámos sem que nos tivéssemos sequer sentado. E, dali, viemos comer um big gelado. Viemos, não. Vim eu. Um belo gelado de três bolas, bom que só visto. De comer e chorar por mais. (E depois, com esta cara de pau que tão bem me caracteriza, digo que é a menopausa... É, é; está bem, abelha. )


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As mulheres que aqui hoje vieram espreitar a prosa nasceram, como é bom de ver, das mãos de Rubens e, como deu para ver, fizeram-se acompanhar de uma das belas composições de John Barry

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Quando fui à procura da música de que estava afim, aquela ali em cima, o YouTube propôs-me o vídeo abaixo. Sou pouco amiga de enlatados, confesso. Mas, na volta também efeitos da querida menopausa, ando mais dada a coisas em jeito de assim. Portanto, sem delongas, aqui fica o dito vídeo onde se podem ouvir e ler coisas que não são mal pensadas, não senhor.


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E a si que, pacientemente aí está desse lado, desejo um belo dia de domingo

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