terça-feira, maio 19, 2020

Tempos de pré-pós-confinamento




Restaurantes. Será que vou facilmente ultrapassar a impressão que me fará não saber se toda a gente na cozinha teve cuidado? Não sei. Nem sei se devo voltar aos meus anteriores hábitos.

No outro dia o meu marido encontrou no supermercado a empregada de um dos bons restaurantes deste país. Situa-se numa aldeia vizinha daquela em que vivemos. Quando o meu marido lhe perguntou pela situação do restaurante face a tudo isto, ela disse-lhe que o restaurante tinha fechado. O meu marido percebeu que fechou para sempre. Quero crer que percebeu mal e que, como é típico dele, não contra-perguntou. Toda a família a trabalhar no restaurante, um restaurante tão bom. O meu marido disse-me que, se calhar, aconteceu algum desentendimento na  família. Às vezes acontece. Nem sempre a família é um grupo homogéneo. Seja como for, fico com muita pena. Íamos lá às vezes, pedíamos mais do que conseguíamos comer e trazíamos o resto para o jantar. Outros tempos. Tudo mudou de um dia para o outro.


Ou o restaurantezinho dos petiscos na praia. Tanto que gostava de ir passear para a praia na sexta à noite e, a seguir, ir comer uns belos petiscos. Restaurante pequeno, mesas muito próximas, no verão cheio de gente das mais variadas paragens, as mesas tão próximas que, se quiséssemos, nos ouvíamos uns aos outros. Impossível ali espaçar as mesas. Também uma família. Todos tão simpáticos, tão afáveis. Mal ligava, logo me reconheciam, nem precisava de dizer o nome. Se também fecha, fico cheia de pena.
Isto de reconhecerem sempre a minha voz, voltou a acontecer no outro dia. Naquele dia tão triste. Quando liguei da segunda vez, a senhora perguntou: 'Não ligou de manhã? Estou a reconhecer a sua voz'. Fiquei muito admirada pois supostamente recebe muitas chamadas. 
Mas, enfim, não vem ao caso.

Ou os cinemas. Tenho saudades de ir ao cinema. Odeio aquele barulho mandibular e aquele cheiro das pipocas, mas adoro o grande ecrã, adoro o escurinho do cinema, aquela magia partilhada. Mas serei capaz de voltar a meter-me numa sala fechada, com um ar condicionado que não sei se é ar novo, puxado da rua? Duvido. Ainda por cima são salas alcatifadas, sabe-se lá se impregnadas de vírus trazidos da rua. Tornei-me dependente de chão lavado, de viver em ambientes arejados, em espaços limpos.

Nunca fui de medos, nunca fui paranóica. E convivo mal (muito mal) com máscaras, desinfecções de mãos, cuidados mil. Mas estes meses de recolhimento tornaram-me dependente de ar puro.


Hoje voltou a estar bom tempo. Fiz uma reunião na rua, numa mesinha à sombra. Era para fazer uma segunda mas os meninos tinham, entretanto, acabado as aulas e estavam a correr atrás um do outro, depois, em fato de banho, a molhar-se, a brincar. Muita alegria ruidosa como pano de fundo a uma reunião séria não joga bem. Eu, o fundo, desfoco. Acho que não faz grande sentido estar a ver-se a casa de cada um. Mas o ruído não consigo desfocar. É certo que se desliga o microfone quando não estamos a falar mas, estando a falar, estariam todos os outros a ouvir aquela folia. Pode ser preconceito meu -- certamente é -- mas parece que inocência e liberdade não jogam bem com reuniões de gestão.

Só uma coisa não estou a conseguir fazer nestes dias: pegar num livro. Não consigo perceber como não me sobra tempo para ler. Sinto muita falta disso. E não é só o tempo, é também a concentração. Tenho sempre tanta coisa para fazer que não consigo desligar o tempo suficiente para me entregar ao prazer que a leitura me pede. 

Tirando isso, são as saudades. Tantas. Ainda no sábado vi o resto do pessoalzinho. Mas tenho saudades de abraçar, de beijar, de pegar os meninos e tê-los nos meus braços. Mas vamo-nos vendo, vamos falando, vamos aprendendo a ultrapassar as quebras emocionais. 


E, tirando também isso, há ainda aquela novidade de que, às tantas, aquilo do bicho se propagar através das superfícies também não ser exactamente assim. Pelo menos, com a facilidade que se temia. Ainda não há assertividade nisso mas apenas suspeição. E, se assim for, aquela cegada de chegar a casa e deitar fora embalagens, mudar as coisas de saco, de já não saber onde é que se mexeu, tudo isso será escusado. E isso, sim, a ser verdade, será uma grande notícia porque se há coisa que me atrofia é todo esse protocolo estuporado. Quando me chamam a atenção para as minhas distrações, digo sempre que nenhum covide me tossiu para cima. Digo também que se o bicho fosse tão peganhento e tinhoso assim, já haveria os tais milhões de infectados com que o Buescu delirou. E, na volta, tenho razão. E essa razão eu quero tanto ter. Não tenho pachorra para o merdinhas. Custa-me que um coronazeco da treta, invisível, coisa de nada, me obrigue a descalçar-me e tirar a roupa quando venho da rua, me faça ter que ter uma disciplina que não nasceu comigo.

Tirando isso, nada. Só que agora tento sempre fazer janta a sobrar para o almoço e que hoje foi cozido à portuguesa. Como jantamos cedo, menos mal, não pesa.

E agora vou pregar para outra freguesia.


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Pinturas de Charles Meere que, na volta, não vêm nada a propósito. 

O José Afonso é sempre bem vindo aqui, seja qual for o rumo da conversa

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A todos desejo uma boa terça-feira.
Saúde e alegria

2 comentários:

  1. Francisco de Sousa Rodriguesmaio 19, 2020

    A minha relação com isto tudo foi sempre de cumprir o eixo central de prevenção, mas sem absolutismos que me são impossíveis de praticar, principalmente esses etc e tal com as compras do supermercado (apesar de alguns cuidados extra), por isso estou com a UJM - "nenhum "covidis" me tossiu para cima".

    Hoje estou de pinturas.

    Um belo dia, rica UJM

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  2. ... a propósito de reconhecermos as pessoas pela voz, eu acabo por ser tão sensível a certos timbres, mais que aos decibéis, que me apaixono por falar com alguns colegas e detesto outros, isto sem nunca os ter visto. É uma espécie de paranoia que me leva a marcar as pessoas pela voz, logo que as ouço a primeira vez, independentemente do esforço mental que faço para contrariar este facto.
    Provavelmente, essa pessoa que reconheceu a UJM logo no segundo telefonema é minha sósia de tímpanos. E provavelmente, ou gosta muito, ou muito detesta ouvi-la ..
    Santas tardes!

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