quinta-feira, abril 30, 2020

O enigma





Não sei se é a simetria se o requinte do recorte. Olho a pequena flor e parece-me de uma beleza extraordinária. Outras vezes são as palavras. A ligação entre ideias. O inesperado do significado, o inesperado do som. A harmonia. A palavra certa na frase certa, no raciocínio certo. E isto de dizer que é certo é absurdo. Mas certo no sentido de me soar bem, de me surpreender e me agradar. A ligação de formas, a elegância das linhas. A subtileza das cores. A toada. Aquela melodia que nasce de lugar nenhum. A beleza que nos leva, que nos enleva.

Referem-me os clássicos. Sem os clássicos tudo é nada, sugerem-me. Percebo. Como se, sem ter passado por aí, qualquer juízo meu fosse juízo feito em campo aberto, sem escala, inválido. O certo, segundo percebo os conselhos, seria começar pela linha de terra. Depois, então, aventurar-me em busca da linha de água. Só depois ousar a linha de horizonte.  E eu até aceito que possa fazer sentido. Há quem acredite que a b chega-se depois de passar pelo a, a c depois de passar pelo b. As bases, a sequência certa. É o que se ensina na escola, a percorrer o carreirinho.

E, no entanto, há outras cartografias. Não há como negá-las. Situam-se no ar, em terra de ninguém. Cartografias insolentes, não mapeáveis. Não se deixam decifrar. Referências voláteis, inexplicáveis. Topologias que se deslocam, variáveis no tempo, no espaço, lugares apátridas, sem fronteiras, imateriais. Território talvez de uma pessoa só. E de quem queira lá entrar e partilhar esse indecifrável espaço de afinidade, de afecto, esse lugar onde não há explicações possíveis. 

Não sei de certezas nem posso dizer que só sabe alguma coisa quem teve a paciência de começar pelo princípio, quem soube colher o que de melhor alguma vez se fez. Não sei de nada disso, não sei o que é melhor. Mas isso é talvez porque eu sou outra, viro as costas ao saber e aos consensos, não sigo lição moral, não sigo nada, sou bicho de trilhos não percorridos, sou de me aventurar, sou de me deslumbrar com o último fiapo de luz a escorrer pela montanha ao longe, sou de ficar meia hora a olhar para uma frase, sou de ficar com lágrimas nos olhos a olhar um céu imenso e nele apenas uma lua a crescer e uma estrelinha brilhante. Sou de outros vocabulários, sou de outras contas, sou de outras bibliotecas, de outros caminhos. Não sou de me deixar agarrar. Não sou de soletrar, não sou de alfabetos, não sou de tabelas periódicas, não sou de tabuadas. Prefiro a variabilidade das bases, das escalas, prefiro o enigma.

É isso.

Sou capaz de percorrer mil labirintos, de me arriscar por mil abismos, sou capaz de negar os clássicos e as leis mais básicas da física, sou capaz de ignorar a gramática e as mais sábias recomendações de quem sabe mil vezes do que eu. Sou mesmo -- e tudo só para continuar, em total inocência, a procurar a intangível e inexplicável beleza. O que quero mesmo é permanecer na ignorância, não desvendar, nunca, o enigma. Viver no limiar do eterno mistério. 


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Vermeer e Nick Knight ao som de Fields of Gold na voz de Katie Melua

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