segunda-feira, abril 27, 2020

Às vezes sou o tempo que tarda em passar e aquilo em que ninguém quer acreditar





O meu filho, no outro dia, perguntou-me como estava isto a correr e se me via a viver aqui. Disse-lhe que sim, mas não confinada. Em condições normais já eles teriam vindo cá várias vezes, já eu teria enchido os miúdos de beijocas e abraços melados, já eu teria ido ver o mar e passear à beira rio, já teria ido algumas vezes jantar fora, já andaria a ver que filmes por aí há para ir ao cinema, já teria cirandado pelas livrarias. Mas as circunstâncias, muitas vezes, não somos nós que as escolhemos e esta que todos vivemos é daquelas que a mim nunca me teria passado pela cabeça. Portanto, sendo as coisas o que são, do mal o menos, a ter que estar confinada, antes aqui.

Aqui, pelo menos, estou in heaven. E estar no paraíso é a ambição de qualquer crente. E crente é o que eu sou, tão crente que quero cá estar ainda em vida.


Nunca na vida fui de livros ou filmes de ficção dita científica ou de terror. Cenas de epidemias a tomarem conta do mundo é daqueles guiões de que sempre fugi a sete pés. Acharia improvável, absurdo. Se me tivessem perguntado se uma coisa destas seria minimamente provável teria respondido que não, sem pensar antes duas vezes. Pensaria que a ciência já dispõe de armas de defesa mais do que suficientes para que uma qualquer ameaça deste género fosse rapidamente debelada e, portanto, o risco de ficarmos como hoje estou seria nulo. Zero probabilidade. Next question...?

Não conhecia os receios de Bill Gates ou de outros, bem informados, que temiam que isto acontecesse. Se conhecesse, talvez tivesse tocado em mim alguma campainha. Mas não tocou. Por isso, estava a milhas.


Amigo bem informado tinha-me enviado os top risks identificados no World Economic Forum para 2020: guerras comerciais entre os super-poderes, aquecimento global, ciberataques, destruição de eco-sistemas, desastres naturais, incêndios descontrolados. Coisas nesta base. Pela cabeça dos inquiridos, supostamente os eleitos de entre os bem pensantes do mundo, também não passou que meses depois o mundo ajoelharia, sem reacção, sem defesas, vencido por um merdinhas invisível.

Vou espreitando as notícias sempre tentando descobrir indícios de boas novas. Mas elas tardam a aparecer. E sei que quando uso o verbo tardar estou a ser fútil porque numa luta destas o tempo não se mede na mesma escala que se mede a nossa impaciência. Mas também aqui, as coisas são o que são e eu penso com a impaciência que me toma, não com a bagagem científica de quem pode reverter o jogo.


E, por isso, enquanto a nível profissional participo nas discussões onde se avaliam as condições para o regresso à normalidade, sem que ninguém saiba bem o que isso é, a nível pessoal ando com a cabeça às voltas, tentando adaptar-me, tentando encontrar um ritmo que me seja quase natural, tentando manter a cabeça fresca para acorrer aos que trabalham comigo e começam a dar sinais de ruptura psicológica ou a outros que, de forma voluntarista, teimam em ignorar os riscos de saúde pois estão a entrar em estado de alarme com os riscos económicos e financeiros ou, ainda, a outros que parece que querem resolver em dois ou três meses assuntos que andam há anos a empatar.


Bem.

O sábado é sempre dia de muito trabalho, limpezas, arrumações. Mas o domingo é dia de descanso, dia de calmaria, de caminhar, de fotografar em silêncio e com vagar. E de tratar de outras coisas. Junta-se muita coisa para fazer num único dia. Mas deu para ler, para passear. E deu-me para fazer outras limpezas, desta vez atirei-me às juntas de azulejos das casas de banho. A minha vida agora é assim, nada mais que isto. Pelo meio, ligo duas vezes por dia à minha mãe e falo com os meus filhos, vejo os meninos. Durante a semana é outra conversa, é reunião e telefonemas em contínuo, uma correria insana sem sair de casa. 

Por isso, sim, podia viver aqui mas, se for enquanto trabalho, tenho que aprender a trabalhar menos para ter mais tempo para mim. Penso que o teletrabalho é uma grande solução para todas as funções compatíveis. Mas não pode ser este abuso de mais de dez ou doze horas diárias. Estamos todos a aprender e estamos a aprender debaixo de uma convulsão de circunstâncias, sem tempo para nos ajustarmos, é um ajustamento forçado, imediato, sem tempo para reflexão. E no meio de um mar e incertezas.


Amanhã de manhã, arranjar-me-ei com a preocupação de manter o look profissional. Talvez me aconteça como noutros dias, pensar que deveria pôr perfume. Numa outra era, eu não saía de casa sem me perfumar. Agora acho que não faz sentido. E custa-me isso. Perfurmar-me era um ritual tão meu. Agora parece-me inútil.

E troco a minha vida por um dia de ilusão

E penso aquilo em que já pensei tantas vezes: um dia que deixe de trabalhar, manterei o gosto em arranjar-me, em maquilhar-me, em perfumar-me? Conseguirei manter alguma disciplina? Ou deixar-me-ei entregue a rotinas simples como cozinhar, arrumar a casa, pôr a roupa a lavar, descansar, fazer umas caminhadas, tomar as refeições, ver televisão? Será essa a vida que me espera? Quando me sinto saturada por achar que trabalho demais, que outra vida gostaria eu de ter? 

Sinceramente não faço ideia. Melhor: neste momento, não faço ideia.

[Tamanho é o confinamento deste Abril acuado que até os cogumelos voltaram a nascer]

Está a começar uma nova semana. As semanas avançam inexoravelmente. Mal dou por elas. O tempo, para mim, acelerou. Talvez não apenas para mim, talvez para toda a gente que não estava habituada a viver fechada em casa. Talvez para toda a gente para quem o referencial que nos orientava tenha desaparecido.

Não sei bem o que nos espera. Não sei onde estão os top riscos que toda a gente temia. Estarão ainda por aí, à espreita? Será que a nossa vida vai ser isto, vivermos encurralados, enquanto o perigo nos cerca?

Não sei. Só sei que, se é isso, então não pode ser. Não pode ser.

Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou é um grito
De um amor por acontecer




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Olhe, Desconhecido, veja como escolhi para o meu post de hoje uma banda sonora em português. Ia dizer que condiz com o meu estado de espírito mas não sou estulta a esse ponto. Não gosto de me pôr em bicos de pés. Esta canção está muito acima não apenas deste meu pobre post mas de quase tudo o que não passa da mediania, é uma grande canção, uma grande interpretação. Pelo menos, é o que eu penso. 

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Desejo-lhe, a si que está aí desse lado, uma boa semana. 
Saúde.

4 comentários:

  1. Já não me lembrava da «Silêncio e Tanta Gente».
    Há medida que envelhecemos, pelo menos no meu caso, damos valor redobrado a coisas que deixamos passar despercebidamente, como foi o caso desta música, sobretudo pelo seu contexto, o Festival que então já não atraía.
    E como não se nega um pedido a quem gosta dela, aqui vai um faduncho para concluir a vestimenta:
    Trelim-tim-tim, trelim-tim-tim., trelim-tim-tiiiiiiiim
    Trelim-tim-tim, trelim-tim-tim., trelim-tim-tim
    Com uma blusa a preceito
    P’ra celebrar a saia preta
    Nada de salto alto estreito
    Ou sapato que comprometa
    Trelim-tim-tim….
    O Onofre está fechado
    Há lay off em todo o lado
    Vamos como na valsa
    Deslizar só e descalça
    Trelim-tim-tim….
    Assim colados ao chão
    Num conforto de acordeão
    São enormes brilharetes
    Esses pés sem joanetes
    Trelim-tim-tim….
    (O confinado amofinado e fadista)

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  2. Unknown, menino, conte-me tudo.

    Temos, então, poeta? Fadista? E levanta o joelho, assenta a guitarra e solta um trinado bem repicado? Ou fica-se pela letra? Seja como for, está aprovado.

    Muito bom.

    E gostei também da ideia. Até porque, não sei se sabe, sou muito de andar descalça. E a toilette está aprovada. E o cabelo? Solto? Ou uma flor prendendo o cabelo no alto? Uma rosa? Um cravo?

    Sai mais um Trelim-tim-tim….?

    Mas olhe vou já avisando, não me habitue mal senão não vou parar com a pedinchice, ouviu...?

    E muito obrigada. Faz-me sorrir. Quase ouço a guitarra, sabe?

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  3. … « e o cabelo preso por uma fita (Maria Rita, Maria Rita … ) com um recado atrás dela a dizer assim «ai querido, tenho um pecado novo e quero pecar contigo …
    Um bom dia com alegria, simpatia!
    ( o confinado amofinado )

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  4. Olá Confinado animado,

    Gosto dessa fita no meu cabelo despenteado, sempre pronto para se despentear um pouco mais, especialmente quando é por um bom motivo.

    Mesmo sem o trelim-tim-tim consigo ouvi-lo a esperar pelo momento de entrar no verso.

    Bom dia alegria, simpatia!

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