sábado, março 21, 2020

No fim, quando o verão chegar, o que diremos desta primavera?




Talvez seja porque os números subiram um pouco mais e eu, optimista, queria ver na pequena descida de ontem uma promessa de inflexão e afinal hoje vi que ainda não, talvez seja porque esteve frio, escuro, e choveu todo o dia, impedindo-me de sair de casa, talvez porque os problemas desabaram, como uma torrente, sobre mim, mails e telefonemas e videoconferências sem parar, talvez porque, nem todos os que foram para casa têm muito que fazer e se entretêm a fazer prova de vida, atentando a paciência aos outros, talvez porque não consegui descansar um segundo nem arejar as ideias, talvez porque me preocupo com o abastecimento aos meus pais já que a minha mãe, habituada a ir às compras quase todos os dias, não tem grande apetência pelo planeamento insistindo em dizer que ainda não precisa de nada e não quer que eu encomende nada  - ou talvez por tudo isso junto.


E talvez porque não percebo o que está a passar-se em Itália, em isolamento há tanto tempo e ainda naquele trágico descalabro, e talvez porque me deixe impressionar muito com o que está a passar-se aqui ao lado, em Espanha, e talvez porque, como me avisa o meu marido, eu leia demais, pesquise demais, consuma informação a mais e, depois, assoberbada por mil solicitações e, sobretudo, esmagada pela minha ignorância, não consiga processar um milésimo do que me atola.

E talvez seja porque ouvi o que temia e no que não queria acreditar, que esta hibernação vai durar até ao verão, e nem é a hibernação em si que me perturba, embora perturbe, nem é tanto o distanciamento daqueles que gosto de sentir perto de mim, mas é, e é também o medo antecipado por saber que vou ouvir voltar a notícias más e que vou sentir medo, e é o medo também por saber que a economia se vai ressentir, e muito, e porque receio muito o day after porque o mundo vai ser outro e não sei se, desnorteados que todos devemos estar, saberemos interpretar o que aconteceu e saberemos enveredar pelas melhores opções.


Mas talvez também seja porque, no fim de um noticiário, não me lembro de qual, mostraram o Porto deserto e iluminado, belo e triste, e depois Lisboa, minha amada Lisboa, deserta e tão triste e eu, sem palavras perante tamanha tristeza, tive vontade de chorar.

E nem trago mais razões porque acho que as que aqui aventei já são suficientes. Suficientes para explicar a minha falta de inspiração e o meu desânimo e a minha apreensão e tristeza.

Este sábado, os telefonemas e os mails de trabalho não devem chover, videoconferências não devem acontecer, talvez o tempo abra, talvez eu consiga caminhar por entre as árvores -- e a caruma deve estar molhada e macia --, talvez cheire a terra fértil e talvez o rosmaninho esteja mais perfumado e florido, talvez a maruca que vou cozer com batata, feijão verde e cenoura fique uma delícia, em especial depois de regada por um fio de azeite e sumo de limão, talvez eu consiga pegar no livro que está aqui ao meu lado e cujo autor eu nunca me vou cansar de ler, seja em livro seja onde for, talvez amanhã os números sejam animadores, talvez eu volte a saber sobre o que escrever e fique animada enquanto escrevo. 

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Enquanto escrevia, vi o Governo Sombra. Confirma-se: está melhor, deixou um pouco o modelo apalhaçado, já acrescenta alguma coisa. Mas o João Miguel Tavares está gasto. Pouco tinha para dar e o pouco que tinha já deu. Ricardo Araújo Pereira por vezes tem um ou outro laivo de graça mas, na maioria das vezes, é uma tentativa de clone do 'boneco' que, em temos, criou. 

Agora estou a ver Original é a Cultura. Gosto imenso deste programa. Sempre a horas tardias como se programas destes apenas interessem a uma minoria. E, no entanto, se este programa fosse transmitido a horas normais, a seguir ao telejornal, por exemplo, certamente teria um lugar de destaque. 

Se a minha vida tivesse seguido outro rumo e, por exemplo, pudesse ter um programa de televisão ou de rádio à minha escolha, teria conversas com pessoas assim. Talvez juntasse o Pedro Mexia e o Rui Vieira Nery, devia ser sempre interessante, deixava-os conversar, talvez lançasse algumas provocações para os ver, tão ponderados e comedidos que são, a tentar manter a compostura, e talvez também juntasse o Carlos Fiolhais com a Hélia Correia, talvez o Pedro Paixão e o Manuel João Vieira, talvez tentasse o Rogério Casanova (encoberto, em silhueta e voz distorcida) e Miguel Esteves Cardoso, talvez a Paula Moura Pinheiro e o Souto de Moura. E etc. Seria feliz ouvindo pessoas inteligentes, pessoas que respeitam a verdade possível e as palavras. Pessoas diferentes entre si, talvez não consensuais, mas com visões distintas sobre o mundo e com um olhar que sabe valorizar a estética das coisas. 


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As fotografias foram feitas esta sexta-feira triste que não me pareceu o primeiro dia de uma primavera que não chegou envolta em luz. Foram feitas de dentro de casa. E a canção, lá em cima, foi-me sugerida pela minha filha. Diz que há anos que não via telenovelas e que ontem começou a ver o 'Amor de mãe' que tem esta música e que eu podia pô-la aqui porque, segundo ela, nesta fase dificil...é colo, é esperança e mimo. Aqui está. 

Não poderia ter feito melhor sugestão. E nem me parece que sejam palavras de esperança e mimo. Parecem-me palavras tão tristes, tão sem esperança, palavras que nem parecem conhecer a doçura da saudade, apenas tristeza.

Como esta noite findará
E o Sol então rebrilhará
Estou pensando em você
Onde estará o meu amor?
Será que vela como eu?
Será que chama como eu?
Será que pergunta por mim?
Onde estará o meu amor?
Se a voz da noite responder
Onde estou eu, onde está você
Estamos cá dentro de nós sós
Onde estará o meu amor?

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Enquanto agora escrevo, vejo uma cena de África Minha. Denys diz uma frase olhando Karen nos olhos e ela, apaixonada, olhando-o também a ele nos olhos, tenta iniciar uma história; mas a força do amor e do desejo impede-a de usar mais palavras. Gostava um dia de experimentar. Se o exercício fosse com um homem neutro talvez eu pudesse inventar uma história e estar ali, em voz baixa, desfiando palavras. Mas perante um homem especial talvez também me faltassem as palavras, talvez não quisesse arriscar dizer mentiras.

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Desejo-vos um bom sábado

2 comentários:

  1. "sem palavras perante tamanha tristeza, tive vontade de chorar"

    Precisamente o que me está a acontecer, por estes dias. Quando ainda ia para Faro, no início da semana passada, e agora com o que vejo na televisão.

    Precisamos de nos animar, mas não vai ser fácil.

    Bom fim de semana UJM.

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  2. Olá Luísa,

    Precisamos mesmo de nos animar mas não está fácil. Lidar com a incerteza, as sucessivas más notícias, a inquietação, a mudança abrupta, o distanciamento... não é nada fácil.

    Valha-nos a beleza da natureza, não é?

    A orquídea é linda, de qualquer maneira.

    Um abraço, Luísa, e um bom domingo para si.

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