sábado, fevereiro 08, 2020

No elevador





Todos os dias úteis, no elevador, acontece-me encontrar desconhecidos ou conhecidos apenas do elevador. Se calha encontrar alguém mesmo conhecido é aquela coisa de quem encontra um velho conhecido na rua. Mostramos surpresa, rimo-nos, cumprimentamo-nos. Mas não nada é frequente. No outro dia, estava eu alone no elevador -- felicidade -- aproveitei logo a ocasião para me virar para o espelho, diluindo melhor a sombra das pálpebras superiores, na maior intimidade. Nisto entra um, enfim, não propriamente colega mas, como direi?, uma pessoa que trabalha no mesmo sítio que eu. Tão distraída eu ia pois tão raramente tenho a possibilidade do espelho só para mim, que, quando ele entrou, toda eu me sobressaltei. Ele riu do meu sobressalto mas logo disfarçou, falando comigo como se não tivesse acabado de surpreender uma cena privada. E eu, que estava na dúvida se as duas pálpebras estariam smoky por igual, não tive coragem para me virar para o espelho e confirmar, dizendo um simples: ''Pere lá aí que tenho que ver aqui uma coisa'. Estas coisas deixam-me atrapalhada.

Muitas vezes, no zero, entram mulheres que cheiram a tabaco. Vêm de fumar na porta do edifício. Fazem-no, certamente, para terem uma sensação que vai para além da de fumarem, talvez para conviverem com outras pessoas que não os colegas próximos, já que, em cada piso, existe um terraço para viciados. Mas algumas preferem ir para o passeio. São já quase apenas mulheres que fumam. Os homens dedicam-se antes ao desporto. Volta e meia subo com alguns que vêm de saco ao ombro, corados, cheirando a gel de banho, ainda com o cabelo molhado. É uma companhia agradável, essa. Quando vou com mulheres que cheiram a tabaco penso que, se tivesse mais vinte anos que os que tenho, cabelo ralo e branco, apanhado atrás, e as costas um pouco curvadas, lhes daria uma lição anti-tabágica, na base nas emissões de carbono e na sustentabilidade do planeta, da carteira e dos pulmões delas. Assim não me arrisco, acho que ainda não tenho um ar suficientemente respeitável. Vou calada, a pensar nisto.


O pior é quando vou com executivos, muito decisores, muitos cheios de empowerment. Entram e saem do elevador com ar apressado, de quem vai a deitar contas à vida. É com homens assim que lido a toda a hora mas uma coisa é lidar com isso indoor, outra é ter que ter por perto seres dessa espécie quando não sou obrigada a isso. E digo isto com isenção de espírito pois, a bem dizer, é a espécie a que talvez outras pessoas pensem que eu também pertenço. No outro dia aconteceu uma coisa um bocado surpreendente. Vi, numa sala de reuniões, daquelas que têm paredes de vidro, um colega meu com dois aperaltados. À hora de almoço, quando saí, estava o meu colega junto aos elevadores a despedir-se deles. Passei por trás e, discretamente, entrei no elevador que, entretanto, tinha chegado. Eles, que não me tinham visto, também entraram mas devem ter pensado que eu vinha de outro andar. Então falaram entre si, sem cerimónias, sem se importarem comigo. Um disse: 'Surreal'. O outro respondeu: 'Do além'.  Entretanto, no zero, saíram e ainda ouvi um a perguntar ao outro: 'Conseguiste perceber alguma coisa...?' E lá foram. Fiquei a pensar que a reunião não devia ter corrido bem. De tarde poderia ter comentado com o meu colega mas estive-me nas tintas.

Do que menos gosto, no elevador, é quando entra alguma mulher elegante, muito bem vestida, bem mais alta que eu. Fico a sentir-me inferior. Não gosto. Pelo canto do olho tento encontrar defeito. Reparo como, disfarçadamente, tenta ver-se ao espelho. Por vezes, se é mais ousada, marimba-se para quem está à sua volta e olha-se mesmo, passa os dedos pelo cabelo ou limpa um canto do lábio no qual o baton fugiu dos limites. Ficaria obviamente um bocado irritada se fosse verdade que mulher que é mulher fareja a milhas a competição mas nem isso é verdade, acho eu, nem o meu espírito é competitivo nem, muito menos, estou em jogo*.

Esta semana, uma das vezes em que entrei no elevador, estavam uns quatro funcionários da manutenção do edifício. Falavam e riam alto, animadamente, mas calaram-se à minha chegada. Passado um bocado, um deles perguntou baixinho a um dos outros: 'Mas o que é que a gaja respondeu...?''. O outro baixou ainda mais o tom de voz e disse qualquer coisa que não percebi. O que fez a pergunta explodiu a rir, o que respondeu também e um dos outros disse: 'Não ouvi...' O colega, perdido de riso, abanou a cabeça como se quisesse dizer que não dava. Isto, claro, porque eu estava ali. Mas eu também já estava cheia de vontade de rir e só me apetecia dizer: 'Vá lá, conte lá'


Há também um homem gigante, muito bonito, com um ar simpático, um daqueles que poderia ser um bombeiro nu num calendário de beneficiência. Não imagino o que faça pois veste-se de uma forma pouco formal. Quando o vejo penso que poderá ser arquitecto ou agrónomo, coisa assim. Mas ali...? Não. Não percebo. Tem o carro no mesmo piso que eu mas num outro extremo. Trabalha num outro andar pois, quando entro, já ele lá está. Digo um bom dia como se não o reconhecesse e ele responde como se nunca me tivesse visto. Depois ele deixa-me sair primeiro e segura a porta que dá acesso ao estacionamento. Agradeço e desejo bom dia ou boa tarde e ele retribui. E cada um segue o seu caminho. Mas isto é assim porque é agora pois se tivesse sido numa outra minha vida e me tivesse aparecido pela frente antes de eu me ter cruzado com o cristo de olhos cor de mel, a ver se a conversa não seria outra.

Uma coisa eu tenho como cada vez mais certa: devemos estar disponíveis para os acasos da vida. Ter medo de arriscar e deixar fugir uma oportunidade é daquelas coisas estúpidas que, muitas vezes, são fatais e levam a vida numa outra direcção.

Veja-se o vídeo abaixo que tão bem ilustra isto. De que serve conjecturar, pensar, divagar, falar para dentro? De nada. Se há vontade de conhecer, de falar, se há desejo de aproximação, então é ir em frente. E, se der, deu; se não der, não deu. E bola para a frente. Em qualquer circunstância, bola para a frente. Para a frente é que é caminho.

O elevador



E outra coisa curiosa deste vídeo é que isto é um anúncio a uma marca de sapatos.
Ele há coisas.

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* E o asterisco deve-se a um comentário que recebi e que não lembra ao diabo (e que acho que, por delicadeza para com a sua autora, nem vou publicar). Há pessoas que teimam em fazer leituras absolutamente literais de tudo o que escrevo. Se eu um dia escrever que tenho pescoço de girafa vêm dizer que em mil novecentos e troca o passo disse que tenho o queixo enterrado no peito ou se um dia digo que bati o recorde do salto em altura quando saí do secundário, no dealbar do século vinte um, logo aparecem a chamar-me a atenção para que não pode ser porque num outro post disse que era paleolítica. Aqui a mesma coisa, se resolvo ironizar e dizer que olho de lado para uma beldade de metro e oitenta, logo aparecem a dizer que isso diz muito do meu carácter -- como se tudo o que escrevo fosse desprovido de ironia e como se, caso a cena se desse com uma feiona, mal entrapada e de metro e dez, eu olhasse para ela à descarada, quiçá com um simpático sorriso de deixe lá isso. Fico beige. Pensarão alguns leitores que este blogue é uma coisa absolutamente confessional, um auto big brother do tipo Keeping up with the Kardashians mas por escrito? Não sei que mais faça ou diga para explicar que não é.

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As fotografias são de Francis Giacobetti.
Fazem-se acompanhar por Nina Simone. You'll never walk alone.
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E a todos desejo um bom sábado.

7 comentários:

  1. Francisco de Sousa Rodriguesfevereiro 08, 2020

    Agora esse pessoal a quem se dirige no * vai ficar a pensar que a UJM se passa com calendários erótico-solidários 😆😆

    A sua dica de aproveitar os acasos é muito oportuna, conseguirmos isso é sinal de estarmos atentos e disponíveis.

    Um bom fim-de-semana.

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  2. UJM, qualquer que seja a idade que se tenha e sobretudo com desconhecidos, não se deve fazer observações sobre o cheiro que as pessoas emanam ou outros aspectos que têm que ver com os seus hábitos, etc. (Isto a propósito do que vem escrito sobre aquelas mulheres que estavam fora do edifício.)
    Até já contei no blogue situações verídicas que se passaram há pouco tempo.
    Duas delas.
    Uma foi uma mulher interpelar um homem, no autocarro, pelo facto de cheirar a tabaco.
    A outra foi perguntarem-me, em tom de crítica, se sabia a pegada ecológica do bife que estava a comer num espaço público.

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  3. Olá Francisco,

    E ficarão a pensar muito bem. Tenho as paredes do meu gabinete decoradas com calendários de bombeiros em poses escaldantes... 😉

    Ai Francisco, como é que uma pessoa deve reagir perante pessoas que parece que apenas aqui vêm para ver por onde pegar, para dizer mal, para chatear...?

    Há gente complicada, sabe, Doutor...?

    Abraço, Francisco. E um bom domingo!

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  4. Olá Isabel,

    Parece que, uma vez mais, a ironia com que escrevi não passou... Mas, repare, não apenas não disse nunca nada, nem direi, a nenhuma dessas mulheres como, a ter vontade de dizer, teria a ver com o mal que faz e não com o cheiro que se impregna em quem fuma. Já fumei, e durante muito tempo. Não sou fundamentalista com nada (ou com quase nada), muito menos em relação a hábitos que já tive. Mas hoje reconheço que fumar era uma estupidez e, se há sensações boas, esta de me ver como uma ex-fumadora é seguramente uma delas.

    Mas obrigada pela dica, pode ser útil a alguém que por aqui passe e tenha por costume protestar contra o cheiro dos outros.

    Um bom domingo!

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  5. Car Leitora cujo apelido é Almeida e cujo comentário não vou publicar,

    Por causa do que escrevi até mudei um pouco o post, acrescentando-lhe um asterisco e uma nota. Se já o leu, saberá o que penso.

    Acho absurdo que venha aqui não apenas para evidenciar que regista quase compulsivamente tudo o que escrevo como que faz leituras literais de tudo (mesmo quando notoriamente estou a ironizar, dizendo o contrário do que penso) como, ainda, para tentar traçar a minha biografia a partir das informações, umas reais, outras deturpadas ou aproximadas e outras obviamente paródicas, que, ao longo dos anos, venho divulgando. Não percebo onde se pretende chegar quando se escreve um comentário daquele tamanho para vir demonstrar que conhece dados biográficos meus ou para apontar contradições entre o que escrevo ou, inclusivamente, para dizer que sabe coisas dos meus filhos apesar de eu não as revelar. Acho absurdo e, até, doentio.

    Se este blog é anónimo e se eu não sou burra de todo, achará a Leitora Almeida que eu daria indicações precisas que não as que deliberadamente quero dar? Achará que faz sentido vir aqui escrever que descobriu coisas que eu não quero revelar? Não percebo. O que pretende com isso?

    E não percebe como é absurdo que, de leituras enviesadas e distorcidas que faz em relação a uma coisa que escrevi notoriamente no gozo, venha concluir que finalmente descobriu o meu verdadeiro carácter?

    A única coisa que eu tenho a dizer em relação a isso é que, se gosta de se armar em detective ou sentenciadora, não será de se preparar melhor antes de aqui vir expor as suas absurdas tentativas?

    Tem também uma outra alternativa: não voltar a vir aqui perder tempo. Isto não é o Keeping up with UJM.

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  6. UJM, apesar de não ter lido como ironia, tal não fez diferença ao que disse no comentário (emiti uma opinião perante uma possibilidade e sobre casos que acontecem).
    Contudo, não era suposto ter interpretado como ironia um pedaço de texto marcado apenas com vírgulas e pontos finais. Quando falamos presencialmente, há o tom, as expressões várias, que remetem para o tipo de discurso que se pretende. Na linguagem escrita não. Por isso, se não existirem outros marcadores, o destinatário pode não adivinhar, sobretudo quando o estilo presente na maioria das publicações não aponta para esse registo.

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  7. Olá Isabel,

    De facto, a escrita com ironia é um desafio. Na realidade, uso-a a torto e a direito, quer ao vivo e a cores quer aqui, quando escrevo. É um registo que me é intrínseco. Mas, ao vivo, há as nuances de voz, o sorriso, a expressão facial ou corporal. Aqui há a arte para o saber exprimir... ou não há essa arte e é uma chatice. Volta e meia penso que tenho que ceder à facilidade e inserir um emoji com um piscar de olhos ou coisa assim.

    ;)

    Uma boa semana, Isabel.

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