No domingo, fizeram directos para mostrar um avião num aeroporto em Marselha. Depois fizeram directos para mostrar o avião a aterrar em Lisboa. Se isto tem interesse para alguém eu não sei. A mim só me faz pensar que está tudo maluco. Mesmo que o avião estivesse cheio de macacos aos saltos ou de freiras a espirrarem e a assoarem-se às saias umas das outras não era caso que justificasse filmar um avião num aeroporto antes de levantar voo ou a aterrar. Nem mesmo se as freiras saíssem do avião todas nuas e às cavalitas dos macacos era caso para fazer directos do Figo-Maduro ou do Ameixa-Amarela. Não há pachorra.
À hora de almoço, depois de longas conversas sobre os pobres portugueses que vieram da China e que, apesar de estarem sãos como pêros e os exames negativos, estão no isolamento, ouço um senhor com voz de chinês e que, afinal de contas, era mesmo chinês, a dizer que entre eles, comerciantes chineses, se tinham organizado e havia casas para quem viesse da China constipado. E eu, que volta e meia, me sinto não apenas beige como completamente burra, pensei cá para mim: mas espera lá, então andam a filmar aviões que trazem vinte portugueses saudáveis mais o corpo diplomático em peso e mais uma brigada de médicos e enfermeiros e caguam para os chineses que chegam da China? (E não, não disse cagam, disse caguam que, como é bom de ver, não é a mesma coisa). E, quem diz chineses, diz todo o resto da malta que chega, directa ou indirectamente, vinda da China? Para esses não há corpo diplomático ou isolamento? Pelos vistos, não. E a jornalista, que têm orgasmos sucessivos com o frisson das notícias sobre os não-infectados, não estabelece a liaison entre os cuidados intensivos com uns e os descuidados desintensivos com outros? Não, não estabelece.
E eu, face a isto e face à histeria desta gente que me parece mentecapta, desligo-me das notícias e sigo para a música. Abençoada música. Abençoada, abençoada.
De tarde, vinda do trabalho, no carro, ponho na TSF a ver que guerra é que se desencadeou enquanto eu estava a ter uma tarde agradável rodeada de juventude, ouço um comandante a explicar como é que um avião haveria de se portar para não se despenhar. Pensei: caraças, anda para aí um avião prestes a abrir um buraco no chão. Afinal não. A coisa já se tinha dado e nada tinha acontecido de mal. Mas isso não demoveu a TSF: não aconteceu mas podia ter acontecido. Caraças para este jornalismo que adora cadáveres, cheiro a decomposição, anúncios de tragédias. Nem imagino o festim que terá sido nas televisões.
Não suporto. Caraças, não suporto mesmo. Não há notícias boas? Nada acontece de bom neste mundo?
Agora chego aqui e vejo que morreu Steiner. E fico sem reacção. Pena em primeiro lugar. Mas, logo a seguir, intimamente penso que as pessoas que vivem das palavras, de escrever, de ler, de opinar, devem chegar a um ponto em que só lhes apetece o silêncio, a ausência de palavras. Como a Agustina. Se eu fosse como eles, haveria de chegar a um ponto em que haveria de me apetecer não me pronunciar ou ler ou escrever palavra que fosse. Só música, música com muitos silêncios dentro que é como deve ser a boa música, de preferência a dos pássaros quando estão lá muito em cima, distraídos da vida, e degustar chá quentinho, e olhar, e semicerrar os olhos devagar, e sentir o perfume das flores, e passar a mão pela macieza de uma capa de veludo, e sentar-me em frente a um muro branco e ver as sombras e a cor da luz a mudar ao longo do dia, de todos os dias do ano. Steiner devia ter, imagino eu, vontade de descansar a cabeça, dar-lhe tréguas da luta com as palavras. E, de resto, pode alguém ficar cá eternamente? Para quê prolongar a existência quando a qualidade de vida já é apenas uma triste sombra do que foi? Portanto, Steiner morreu, viva Steiner. A sua obra fica, independente dele.
E siga o andor.
E siga o andor.
E, tirando isso, o que posso dizer é que vinha no carro e vinha também a pensar que tempos houve em que a esta hora, aqui sossegada na sala, estava a bordar grandes carpetes de arraiolos, com desenhos que me punham a cabeça em água, desenhos miudinhos, réplicas de grandes tapetes do século dezasseis e dezassete que estão em museus. Gostava tanto. Os desenhos iam nascendo. Depois os desenhos iam aparecendo cheios de cor. Bordava horas a fio, a juta enchendo-se de lã colorida sobre as minhas pernas. Outras vezes estava a pintar, pintava até de madrugada, incapaz de parar, um frémito de emoção e liberdade a percorrer-me o corpo. Ou a ler, a ler pela noite adentro. Porque me dá agora para aqui estar em vez de estar a fazer qualquer dessas coisas? Não sei. Tenho vontade de pintar. Tenho a tela ali atrás, tenho ideia das cores que quero usar, tenho uma vaga ideia das formas. Recuso-me a pensar para não aprofundar a ideia pois gosto é de me deixar surpreender pelo que nasce na tela, independente da minha vontade. E tenho também ali atrás uma carpete incompleta e a vontade que, por vezes, tenho de me voltar pôr a bordar não sei explicar. As saudades, as saudades que tenho.
Saudades de não estar aqui a escrever.
Saudades de não estar aqui a escrever.
E, no entanto, quando vinha a pensar nisto, ocorreu-me começar a escrever uma história e, logo ali, começou a forjar-se o que ela seria mas, quando me meto nisso, é tão absorvente, deixa-me tão pouco espaço para o resto, parece que a gente que ali nasce ganha vida própria e eu mal posso esperar todos os dias para aqui chegar e deixar que vivam como gente de verdade. Por isso, evito. Mas faço bem evitar? Ou é irrelevante? Acho que sim, acho que é irrelevante, na verdade o mundo está cheio de ruído e lixo e mais vale é que estejamos sossegados, que eu esteja sossegada: zero waste.
E agora vou mesmo sossegar. Hoje estou em dia de silêncio.
Tremem-me as mãos para ir fazer aquele tom de azul que não me sai da cabeça, um azul a meio tom, meio violeta, meio secreto, meio indefinido e, depois, matizá-lo com fios dourados. Tremem-me as mãos para deixar a mão voar na tela sem que eu saiba o que ela vai fazer. Depois, quando a mão tiver praticado a liberdade, deixá-la escrever sobre mistérios, enigmas, longos espaços abstractos e silenciosos, deixar que seres sem nome e sem rosto habitem esses perigosos lugares sem geografia. Mas não vou fazer nada disso.Vou simplesmente suspender as palavras. Vou descansar. Vou deixar que o silêncio percorra o seu caminho dentro de mim.
Vou deixar que, na escuridão da noite, novos mundos me visitem na imensidão do deslumbre.
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As fotografias são da autoria de Uldus Bakhtiozin
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A todos desejo um dia bom
Bom post, úbere em sugerências.
ResponderEliminar(Sugerência: [neologia] sugestão contendo insinuante urgência; e.g., reclamar o silêncio ou juntar chocolate preto e gengibre cristalizado, a match made in Heaven.)
PLÁGIO?
ResponderEliminarAcabei de ouvir "Sinais" de Fernando Alves onde aborda com boa dose de poesia o tema dos aviões...
https://www.tsf.pt/programa/sinais/emissao/ha-mais-misterios-entre-o-ceu-e-a-terra-11782278.html
Cumprimentos!
UJM, não me diga nada, tanta coisa espúria que depois ainda é explicada por batalhões de "experts".
ResponderEliminarO pior é que acho mesmo que em algumas redações só se lamenta o "horror, a tragédia e o drama" (Albaran dixit) não acontecer cá no burgo ou arredores.
Um rico fim de tarde.
A Pandemia Endógena
ResponderEliminar"Eis as minhas convicções; se não gostarem, tenho outras."
Marx, tendência Groucho
É possível que as opiniões de outros constituam parte integrante da Verdade; as minhas não passam disso mesmo: meras conjecturas. A única directriz é aquela que me diz que só valem a pena as conversas em que pelo menos dois dos interlecutores têm a firme vontade de pôr em causa tudo aquilo em que acreditam. Senão, mais vale a guerra sem trégua, a pandemia que extermina, a erupção que arrasa. Ciclos, quiçá perenes e inescrutáveis: tempestade, bonança; festa, ressaca; morte, vida*.
Eis-me, então:
- sútil singularidade;
- proto-holofrástico;
- estereótipo (tipo que usa a estereofonia);
- barroco despojado;
- attaché cultural do Hades;
- sapador do caos sincrético;
- muçulmano (aquele que se submete sem rebuço aos desígnios do Divino);
- soldado da fortuna;
- prisco teológico;
- peão de Deus.
- Tabula rasa no coração de Finisterra.
Tão pouco tempo, tanta palavra para demolir.
* Sim, nós** sabemos que existe vida após a morte. Outras formas de vida morrem e são consumidas para nos mantermos vivos; a nossa morte proporcionará nova vida.
** Nós, os que arriscamos amofinar os tecnosbirros, acendendo/içando a vela.
Olá Anónimo sem Nome,
ResponderEliminarJá experimentou o dito match perfeito entre o chocolate negro e o gengibre cristalizado? Não é mesmo bom? Não sei que deus abençoaria tão precioso manjar mas talvez nem seja preciso vir um deus abençoar porque já nasceu abençoado.
A segunda música é muito bonita. Não conhecia. Aliás não conheço praticamente nada do que escolhe. Devemos viver em planetas distintos, em eras distintas.
E uma boa noite.
Olá Anónimo dos Sinais,
ResponderEliminarFui ouvir porque de manhã e à hora de almoço não consegui ouvir. Coincidências, certamente. Não acredito que o Fernando Alves, o Senhor Rádio, frequente estes meus humildes aposentos. e gostei de ouvir. Ele estabelece umas ligações sempre muito oportunas, inteligentes e poéticas, E depois há a forma como as diz. é um prazer ouvi-lo. Muito obrigada pela dica. Se não fosse por si, não o teria ouvido.
Um dia feliz para si.
Olá Francisco,
ResponderEliminarE a seguir ao noticiário da noite? Escandalos, desgraças, mortes, tragédias. A gente foge, de canal em canal, à procura de alguma normalidade. No outro dia comentava isto com a minha mãe e ela disse: 'Então e de manhã e à tarde? Do pior...'. Diz que também tem que fugir.
Não sei que efeito tem isto na atitude normal dos portugueses. Presumo que lhes corroa a auto-estima, que crie aquele ambiente nocivo de que isto é tudo mau, que toda a gente é má, corrupta, fraca, doente, perversa, que ninguém se aproveita, que só podemos esperar desgraças.
Alguém devia explicar à comunicação social que já não se suporta uma coisa destas.
Abraço Francisco!
Olá Doido varrido pelo vento no alto da montanha,
ResponderEliminarMas que misturada... Muito ruído, muita poeira, não é? Poluição deliberada, parece-me.
Mas gostei da frase pouco leninista do Marx e do parágrafo seguinte, também abundante em sugerências. E, depois de ter lido o desfiar do 'eis-me', gostei da ideia de que há por aí muitas palavras para demolir.
Há-de tentar repetir o exercício mas tendo já levado a cabo a demolição, e acrescentando o que lhe parecer não supérfluo. No entanto, de tudo o que consta da lista eu aproveitaria um item (adivinhe qual) bem como recomendaria que mantivesse o propósito que refere no fim.
Uma noite descansada e um dia feliz.
"Devemos viver em planetas distintos, em eras distintas."
ResponderEliminar"E pur si muove!"
E, no entanto, comunicamos! E sem custos emocionais, sem riscos e com um módico de cortesia; o que há para não gostar no admirável mundo novo do placebo sentimental?
A Recepção Calorosa
À minha volta, norte e sul, trasborda a nascente,
Dia após dia, gaivotas são a única companhia...
As pétalas escondem o caminho - nunca nenhum hóspede por que limpar.
Para o nobre visitante se abre por fim o tosco portal.
Longe fica o mercado, sabe a pouco o conduto,
Mofo e turvo é o vinho que esta simples casa tem.
Consente que o meu velho vizinho se junte a este brinde,
Chamarei por entre a cerca - e beberemos até que acabe.
Du Fu (712-770)
(A partir da tradução inglesa por Witter Bynner.)
Olá Anónimo sem Nome,
ResponderEliminarSobre placebos emocionais não me pronuncio, não consumo. Mas posso dizer que os seus comentários são, frequentemente, um estímulo intelectual.
E o poema que traduziu é lindo. Tocante. Estive a lê-lo em inglês e gostei de ver como o traduziu. Não o seguiu tal e qual e, no entanto, gostei das leves inflexões que lhe deu, em ínfimas nuances que lhe ajeitam o sentido, tornando-o mais bonito ainda.
Agradeço-lhe.
Uma noite boa. E um dia feliz também.