sábado, janeiro 11, 2020

Instinto maternal




No lugar onde trabalho uma percentagem razoável de mulheres não tem filhos. Provavelmente, umas ainda não têm mas talvez venham a ter, outras não levam qualquer jeito de que tal venha a acontecer, outras não me parece que tenham qualquer apetência por tal e outras não tiveram porque não calhou ou não conseguiram. Nunca lhes falo nisso. Há que respeitar. Não sabemos o que está por trás: se é incapacidade, se é falta de vontade, se é falta de oportunidade. São assuntos muito pessoais.

Sei que uma tentou durante anos e não conseguiu. Entretanto, já se habituou e já várias vezes, ao falar da vida livre que leva, viajando, fazendo o que quer, quando quer, com quem quer, diz que é o lado positivo de não ter tido filhos. E há outra, que o tempo veio a revelar ser uma mente perturbada, que durante muito tempo disse que andava a fazer tratamentos que sempre corriam mal, e contava histórias pungentes, e que agora toda a gente acredita que aquilo era inventado de ponta a ponta. Nunca faltava, nunca chegava atrasada, nunca saía mais cedo e, no entanto, contava que tinha andado a fazer tratamentos exigentes que exigiam repouso. Era sempre tudo tão estranho e pouco credível que ninguém tinha coragem de lhe dizer que tudo o que ela dizia parecia manifestamente impossível. Contudo, contava isso com voz martirizada, como se fosse verdade. Quando alguém leva lá os filhos, ela desdobra-se em gentilezas, tem lápis de cores, imprime folhas com bonecos, tem coisas nas gavetas. Mas aquele excesso de simpatia quase parece forçado e doentio. Se a conversa vai no sentido dos filhos, toda a gente desvia a conversa, como se não houvesse já muitas dúvidas de que há ali pancada da grossa.


Mas há outras que têm filhos e duas das jovens até já vão no terceiro. A uma que agora está de baixa de parto surpreendi eu um dia quando lhe perguntei se estava grávida, tendo ela, num sobressalto, dado uma resposta curiosa: 'Ainda não...'. Depois questionou-me: 'Mas porque pergunta?'. Expliquei-lhe que tinha olhado para ela e me tinha parecido. Estava então de poucas semanas e apenas uns dois meses depois, ou mais, divulgou o seu estado. Contou-me, então, que naquela altura, tinha acabado de saber e que não tinha percebido como tinha eu adivinhado. Pois bem. Hoje, uma das jovens, outra, ia à minha frente e, ao sentir os meus passos, voltou-se para trás, sorriu para me cumprimentar e depois continuou. Nesse relance em que a cumprimentei, pensei: 'Está grávida'. Depois pensei: 'Se calhar ainda não sabe'. E, no entanto, não vejo nela qualquer jeito maternal. Mas nunca se sabe. Há instintos que nascem quando se tem a cria nos braços. 

Outras vezes nunca acontece. Já contei aqui daquela minha amiga que de instinto maternal tinha zero. Nem sabia pegar na criança ao colo. Uma vez salvei a bebé de quase morrer asfixiada. Tinha dias. Era verão. Tinham ido para a casa de praia dos pais dela. Estava a dar banho à bebé no lavatório da casa de banho. Tinha a bebé sobre o braço, de bruços, e segura pelo pescoço. Quando entrei na casa de banho, estava a criança já meio roxa. Tirei-lhe a menina do braço e mostrei-lhe como era. Mesmo para dar de mamar, fazia-o sem contacto físico com a filha: em vez de a aconchegar junto ao peito, não, deitava-a sobre as suas pernas, em sentido oposto, tendo a criança que torcer a cabeça para alcançar um mamilo. Quando a menina começou a falar, chamava-me mãe e fazia birras quando se iam embora de minha casa ou eu de casa dela, tendo a mãe que a arrancar à força do meu colo. Muito estranho. Impressionava-me mesmo, imaginava como ela deveria ficar entristecida (embora nunca percebesse se ficava, mais me parecia que não, que não ligava). Por mais que eu tentasse ensiná-la a lidar com a filha, ela fazia tudo ao contrário. Quando se separou do marido, a filha ficou com o pai. Mais tarde, sei que teve outra filha mas, nessa altura, já nos tínhamos afastado. 

São assuntos complexos e não devem ser feitos juízos de valor por quem está de fora pois, nestes casos, cá para mim, a realidade geralmente é oculta ou inexplicável.

Mas, quando existe o instinto maternal, ele é bom, compensador, e, de certa forma, completa a mulher. Ou melhor: a fêmea. E não é nada que se aprenda: o que há vem de dentro, é espontâneo, é visceral, é incontornável.


Estava aqui a ver as notícias do dia e o que me atraíu foi, justamente, a prova provada da relação orgânica, animal, que há entre uma mãe e a sua cria (tenha a cria a idade que tiver e sejam quais forem as circunstâncias).

E se há lugares do mundo sobrelotados, outros há que estão num caminho oposto, em que a população está em decréscimo, a envelhecer. País com fraca natalidade é país velho, tendente para o empobrecimento. Num país como Portugal, nada há de mais relevante a nível político do que conseguir inverter a queda demográfica. Creches gratuitas com horário alargado, redução de horário para pais com filhos pequenos, flexibilidade de horário para pais com filhos em idade escolar, escolas com espaços de tempos livres também gratuitos e também em horário alargado. Coisas assim. Coisas que ajudem as mães a ser mães, a terem vontade e gosto em serem mães.

(E esta derivação para a demografia apareceu aqui a modos que fora do contexto, especialmente se atentarmos às duas fotografias; mas pronto, a minha cabeça é mesmo assim, dada a caminhos diferenciais)

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A primeira imagem é uma ilustração da autoria de Delphine Desane para a Vogue italiana, integrada num trabalho que intitulou como Madre Natura para a Dior. A segunda é uma fotografia feita na síria da autoria de Esra Hacioglu. Mostra Anud Suleiman, 25, com os filhos num campo de refugiados. A fotografia da mãe leoa e da sua cria foi feita em West Midlands Safari Park por Jacob King. Vi as duas no The Guardian.

Lá em cima, A Bailarina de Rodrigo Leão conta com a participação da filha, Sofia, e faz parte de um novo álbum que lançará em Fevereiro.

E o vídeo, no final, mostra imagens de uma tocante ternura. São animais como nós e o carinho e a graça como aquele bebé é cuidado, são uma maravilha.

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E talvez até já.

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