O meu dia foi cheio de complexidades. Por vezes impeço-me de pensar pois parece-me que já não consigo processar mais. Forço-me à pausa. De manhã, por mais do que uma vez disse: 'Não eu'. Não quero que pensem que quero alijar responsabilidade mas chega a um ponto que sinto que já chega. Que alguém faça mas que não eu. Sempre fui de ir acomodando mais e mais trabalho e sempre sem pedir nada em troca. Não gosto de transaccionar a responsabilidade que assumo. Mas o mundo muda, as complexidades aumentam, e sinto que não consigo encaixar mais e mais e mais.
Saí de lá cheia de telefonemas não atendidos, mensagens não respondidas. No carro, a caminho de almoço, telefonemas. Crise noutro lugar. Pedido de apoio. Cheguei lá e ouvi o relato do que se tinha passado e, enquanto falava, foram chegando mais mails e mais mensagens.
Fui para outra reunião. Correu bem mas eu a perceber que vai sobrar para mim. No fim, a confirmação: sabe que isto vai exigir mais de si, mais disponibilidade? Sabe isso, certo? E eu, com franqueza: 'Ainda não pensei nisso. Logo penso. Acho sempre que consigo conciliar mas já não sei. Mas não consigo pensar já nisso. Logo se vê.'. Do outro lado, uma certa apreensão. E eu sem conseguir adiantar mais nada.
Há quem planeie, quem seja calculista. Eu não. Penso que, na hora, logo vejo.
Mas agora acho que a equação começa a ser impossível. Não sei. Não tenho descanso e isso, por vezes, pesa-me.
Mal saí de lá mais uma mensagem, mais um desabafo e um pedido de ajuda. Fui à procura do animal que tinha molestado aquele pobre indefeso que me pediu ajuda. Ia nos cascos, capaz de o virar do avesso. Mas não o encontrei. Saí. No carro, ao telefone com o que me pediu ajuda. Agora, aqui em casa, desforrei-me: um mail que deve deixar aos urros o estupor, deixá-lo a sentir pimenta no rabo, orelhas de burro, cara de palhaço. Amanhã sempre quero ver como será quando me tiver pela frente. Não suporto -- mas não suporto mesmo -- os todo-poderosos que exercem a sua prepotência junto dos mais indefesos. Não suporto. Não admito. Levo às últimas consequências. Vou encostá-lo à parede e só tenho pena de não poder obrigá-lo a sujeitar-se a um toque rectal com um dedão de meter medo. Que fúria sinto quando vejo os mais indefesos até com medo de se queixarem não vá ainda serem alvo de retaliações. Há gente muito estúpida.
Enfim.
Já chega de pensar nisso. Estou saturada, como acredito que dê para perceber.
Volta e meia, à hora de almoço, a correr, vou ver os livros esperando não ver nada que me agrade. Mas agrada sempre. No outro dia vi alguns que devem ser mesmo bons. Estão aqui. Não consigo tempo para eles. Um tem uma capa espantosa, graficamente falando. Chama-se 'Já então a raposa era o caçador'. As raposas são seres cativantes. Deitar-lhe o laço. Mas quando?
No outro dia, a meio da manhã, vinda de outra guerra, vou a chegar e vejo alguém que conheço. Parei o carro de longe. Vi de longe. Observei. Pensei, vou levar o carro até lá, parar o carro, falar. Mas não consegui. Depois enchi-me de coragem e andei com o carro. Pensei, se me vir, páro o carro. Mas não viu e eu segui. Fiquei a pensar 'que disparate, porque não parei o carro, porque não falei?'. Segui, sem me perceber.
Se calhar é isto de já não conseguir acomodar mais, de já não conseguir assimilar mais, de recear complicações a que não consiga acudir.
Só quero silêncio, palavras límpidas, flores de mil cores, gestos simples, afectos de verdade, livros bons, conversas transparentes.
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E por aqui me fico.
Pinturas de Tawaraya Sōtatsu ao som de finais de grandiosas pianadas
Desejo-lhe um dia muito bom
Um mimo para espairecer a cabeça: https://www.wook.pt/livro/poesias-desenhos-e-correspondencia-eduardo-liborio/10402450
ResponderEliminarDeixo uma das preciosidades que aí se encontram:
"Os macacos não são homens/ Porque não sabem falar.../ Mas quando estão distraídos/ Parecem homens a pensar...
Quando estão distraídos, repare-se...! Uma delícia.
Pena não poder colocar aqui o desenho do autor que acompanha os versos inscritos na sua bonita letra.
Se já conhecer... melhor!
Um abraço,
JV
Conheço essa sensação de absorção completa, pelas tarefas múltiplas para que somos solicitadas. É muito difícil aceitar que não temos tempo para nós,quando há tantas coisas boas para fazer. Para não cair em depressão, até porque sou uma pessoa optimista, penso sempre "é temporário", mesmo que o temporário ainda sejam anos. E vou roubando um bocadinho de tempo para mim aqui e ali!
ResponderEliminarHavemos de sobreviver!
Tenho alguns livros do Peter Handke. Não sei se ainda estão disponíveis em português, pois tenho-os há muitos anos "A tarde de um escritor" e "O chinês da dor". Não sei se tenho mais algum. A outra premiada, não conheço.
Gostei das pinturas deste post e do último que colocou.
Bom fim-de-semana com as crianças:))
Olá Isabel,
ResponderEliminarÉ isso mesmo. Ainda agora estive a ver uma apresentação que me pediram para eu ver. Só me apeteceu dizer que o fim de semana deve ser respeitado, que não chateiem. Mas sei que também não conseguiram fazer antes e sei que é importante uma revisão. Portanto, sem qualquer vontade, lá o fiz. Mas o pior é quando é consecutivo. Uma pessoa a querer ter paz e só a chatearem. E o tempo vai passando...
Por isso, tal e qual como diz, ir roubando uns bocadinhos na esperança de irmos sobrevivendo sem nos desapossarmos da nossa identidade.
Dias felizes para si, Chabeli.
Olá JV,
ResponderEliminarNão conhecia, não senhora. E fiquei curiosa, pois claro.
E acho essa deliciosa. Acho que vou ocupar a minha mente com essa quando vir algum dos meus conhecidos a pensarem...
Thanks. Vou ter que procurar esse livro.
Abraço.
E uma boa semana.