Àquela pergunta maçadora sobre que livro levaria para uma ilha deserta caso apenas pudesse levar um, eu responderia: não respondo. Apenas respondo a perguntas que fazem sentido ou que falam de situações prováveis.
Mas agora, estava aqui a preguiçar, ocorreu-me uma ainda mais absurda: se fosse deixar de falar e só tivesse mais uma palavra para dizer, qual diria?
E isto não é improvável. Não me vou repetir contando detalhadamente o que aconteceu a uma tia do meu marido que um dia deixou de falar, conto apenas por alto. A irmã e o marido começaram por pensar que se tinha assustado por o gato ir ficando entalado na porta da cozinha. Mas não ultrapassava o susto, se é que era susto. Depois contaram à família. Era improvável, ninguém levou a sério. Partidas do sistema nervoso, dizíamos. Até que já começava a parecer estranho demais e chamaram um médico. E o médico mandou fazer exames e os exames revelaram o que ninguém podia alguma vez suspeitar. Quando a fui visitar ao hospital, ainda todos incrédulos, ela, que sempre tinha simpatizado comigo, quis sorrir, quis dizer alguma coisa. Mas não conseguiu. E, então, as lágrimas começaram-lhe a correr. Fiz-lhe festas na cabeça, no cabelo. Uma situação muito triste. Deixe, vai passar, disse eu. Ela não acreditou, vi-lhe no olhar. E tinha razão. Não voltou a falar.
O meu pai também quer falar e quase não consegue. Esforça-se bastante mas as palavras não saem ou, se saem, não se percebem. E ele fica desesperado, triste. Desiste. Deixa-se ficar naquele isolamento de quem não consegue comunicar.
Por isso, se eu soubesse que me iria acontecer uma desgraça qualquer desse género, que última palavra diria? E, agora, ao escrever 'última palavra' também me ocorreu outra situação. Mas nesse caso tanto daria porque não ficaria a guardar memória dessa última palavra. Mas, permanecendo viva, que palavra diria, consciente de que estava a dizer a última?
Não sei. Tenho que pensar nisso.
Quando o carro onde ia numa descida em direcção a uma rotunda cheia de carros perdeu os travões e galguei o lancil e fui espetar-me contra uma coisa de chapa, pensei que podia estar a viver os meus últimos instantes e o que me ocorreu foi: nem tempo tenho para pensar nos meus filhos.
Por isso, talvez que a última palavra fosse: filhos. Mas se a generosidade fosse maior e pudessem ser três, talvez fossem também vida e luz. Mas bom, bom, era se pudessem ser quatro. Aí já podia ser também amor. Ou cinco. Juntava: palavra. Já agora seis. Mar. E porque não sete? Juntava o nome do meu amor. E agora que escrevo penso que não disse netos. Pois não. Mas é que quando tive o acidente ainda não tinha netos e quando pensei que não tinha tempo para pensar nos meus filhos, era mesmo só neles que estava a pensar. Mas agora, quando penso em filhos, penso nos meus filhos e nos filhos dos meus filhos. Por isso, estão todos incluídos, no princípio. No princípio e no fim. E se viver até conhecer os filhos dos filhos dos filhos então melhor -- filhos, uma palavra matrioska.
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Só sei que a última imagem é uma pintura de Van Gogh, as outras desconheço.
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Felicidade a todos.
[Felicidade também podia ser uma das últimas. Mas a última das últimas talvez fosse silêncio]
Só sei que a última imagem é uma pintura de Van Gogh, as outras desconheço.
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Felicidade a todos.
[Felicidade também podia ser uma das últimas. Mas a última das últimas talvez fosse silêncio]
Poesia e Propaganda
ResponderEliminarHei-de mandar arrastar com muito orgulho,
Pelo pequeno avião da propaganda
E no céu inocente de Lisboa,
Um dos meus versos, um dos meus
Mais sonoros e compridos versos:
E será um verso de amor...
Alexandre O'Neill, in No reino da Dinamarca, 1958
No último alento soltar profunda e sonora gargalhada - então talvez a vida tenha valido a pena.
............
O we are wearied of this sense of guilt,
Wearied of pleasure's paramour despair,
Wearied of every temple we have built,
Wearied of every right, unanswered prayer,
For man is weak; God sleeps; and heaven is high:
One fiery-coloured moment: one great love; and lo! We die.
............
Oscar Wilde, Panthea (excerpt)
Já disse isto no Sr.Impontual. Reforço aqui - somos muito incompletos para nos definirmos ou definirmos a nossa vida numa só (ultima) palavra. Por isso estou como a Um Jeito Manso, nem seis palavras seriam o epítome dos nossos dias.
ResponderEliminarAdoro o seu blogue, o seu jeito de comunicar e estender pensamentos.
O Sr.Impontual só indica bons caminhos. :))
UJM, era a que tivesse que acontecer naquele momento.
ResponderEliminarAté neste adverso hipotético, gosto do acontecer da vida
Ninguém escolhe perder uma faculdade e, a ser previsível perdê-la, não sabe qual o momento exacto em que tal acontece. Daí não poder tratar-se de uma escolha.
Se controlássemos isso, o que era bem pior, e pudéssemos saber que em tal segundo aconteceriam as infelicidades (e as alegrias também? não teria graça), não escolheria nenhuma.
Não atribuo significado especial a este tipo de coisas pelo facto de as considerar muito redutoras, pouco ou nada expressivas do que a pessoa é.
Olá ujm
ResponderEliminarpois eu que já estive por 2 vezes a ver a tal luzinha branca a sugar-nos posso dizer-lhe que da primeira não me lembro da última palavara mas da segunda lembro perfeitamente
- fodasssssssssss ainda não
Sei que quando voltei a mim estva com os tornozelhos e pulsos todos vermelhos pois tiveram que me amarrar para me conseguirem reanimar e pelo que depois me contaram dei um valente de um pontapé na cara de um enfermeiro
:D
Aqui há tempos fiz esse trabalho de tentar lembrar-me de qual teria sido a última palavra da primeira vez mas nada. Deduzo que por estar sob o efeito de uma anestesia. O que sei é que quando acordei muito zangada perguntei o que me fizeram que tinha a boca a saber a sangue e se me tinham arrancada algum dente
Lembro perfeitamente de me terem respondido que me fizeram muita coisa mas que arrancar um dente não,
Voltei a apagar pois a equipa médica tinha que acabar o que tinha começado e todos os minutos contavam.
Passado umas horas vem uma médica ter comigo e diz-me
- Fodasssse nós não te deixamos mas tu também não querias. olha o que me fizeste à mão?
Tinha os nós de todos os dedos da mão completamente roxos porque eu na aflição agarrei-me à mão dela e não mais a larguei
Pela expressão dela de um grande fodassss só posso deduzir que da primeira vez também o terei dito
:D
Um beijo, GG
Nota: Sim já tinha filhos e claro que a médica era amiga para poder falar daqueles modos.
Só no dia seguinte me contaram o que aconteceu mas o engraçado é que o cagaço que a equipa apanhou foi tão grande que um interno do primeiro ano dessa especialidade pensou em desistir e a minha amiga a quem dei cabo da mão teve que meter baixa pois cirurgiã só com uma mão útil não serve de nada.
:D
Olá ninghem,
ResponderEliminarSabe como me agrada começar o dia e ler coisas assim, tão bonitas, tão bem escolhidas? Sabe a surpresa que sinto ao descobrir o que não espero e de que sempre tanto gosto?
E os presentinhos sempre escondidos como ovinhos na caça ao tesouro...? Tão simpático. Nunca conheço e gosto sempre.
Como retribuir tamanha gentileza?
Não sei.
Daqui lhe envio um sorriso agradecido.
Uma noite inspirada e um dia feliz, ninghem.
Olá Nut, Nuts in autumn,
ResponderEliminarUma bela visita, cheia de simpatia. Gostei. E é isso. Sabemos lá nós alguma coisa de nós próprios e da nossa vida para conseguirmos a sistematização da nossa vida, a síntese e a hierarquização do que mais nos marcou...?
Portanto, como o que não tem solução, solucionado está, passemos adiante e deixemos o tema para trás.
Abraço, Nut, e um dia feliz.
Olá Isabel Pires,
ResponderEliminarPois. Há quem saiba tudo porque tem sempre tudo bem organizado. Os livros da vida, as músicas da vida, os filmes da vida. Eu gostava de ser mais organizada do que sou para poder ter as ideias mais arrumadas. Assim é tudo de improviso. Por isso, percebo-a bem.
Mas, para quem fica vivo e lúcido, e não consegue falar mais, acredito que fique, vincada, a lembrança da última ou das últimas palavras. Quando se morre, isso é relevante para quem ouve e fica cá para a debater.
Abraço, Isabel
Oi GG, tudo bom?
ResponderEliminarEssa sua descrição até me fez lembrar a minha cunhada a ter filhos. A veia beirã da família desceu nela e gritou e praguejou de tal modo que deixou todo o pessoal do hospital chocado, tiveram que fechar portas à volta para que as outras parturientes ou família não pensassem que o Bolhão se tinha deslocado até a uma clínica em plena Lisboa.
Mas pensou ou sentiu que estava quase a ir desta para melhor? Sentiu essa coisa de parecer que estava a caminho da luz...?
Gostei de ler, claro, lê-se e parece que se vê.
Agradeço a partilha!
Beijo, GG!
Estive mesmo a ir-me: um choque anafilático numa intervenção corriqueira, no primeiro caso e no segundo uma anemia gravíssima em que fui internada de urgência. Só me lembro dos coletes dos pessoal do inem e de ouvir assim umas vozes lá muito ao longe cada vez mais fracas e de uma luz lá ao fundo e eu numa grande agitação por ter mesmo a sensação de que estava a ir-me depois que recuperei ainda pensei que fosse a luz da ambulância e os médicos riram-se a dizer-me: era bem bom que fosse.
ResponderEliminarEm ambas as situações os médicos dizem que foi um milagre eu ter escapado.
Pedi na altura, quando já estava fina, para ler os meus processos, aliás faço sempre isso e peço para me explicarem tudo tim-tim por tim-tim e não estava lá escrito a palavra milagre mas sim "caso de sucesso." O que vai dar ao mesmo segundo eles. :)
Antes de mais, gosto do nome com que baptizaste o teu espaço:), e vim aqui ter conduzida pela ultima palavra do Impotual.
ResponderEliminarGostei muito do pensamento, questão, que colocaste. Sabes? Enquanto mulher e mãe acolho as tuas palavras no meu profundo sentir, embora não alimente muito essa inquietação por não saber lidar com ela.
E por esse motivo concentro as minhas energias no momento atual. Advim de outra vida que não a minha, criei duas vidas, que não são as minhas. O importante é deixar fluir a vida adentro, sem prejuízo de orientar as vidas que criei, mas não em regime de substituição.
A palavra nunca é a última, é sempre transmitida de geração em geração, e daí reside a imortalidade da nossa memória.
Portanto a minha palavra do dia é sempre a vida.
Beijinho e um bem haja:)
Olá GG,
ResponderEliminarBolas. Caneco. Que susto. Ressuscitou, isso sim. Uma sortuda: nascida e duas vezes renascida.
Caso para lhe dar os parabéns, certo? Certo. E viva, viva, viva!
Beijinho, GG.
Sandra, olá,
ResponderEliminarBelas palavras. E tem graça: concordo com tudo: recebemos mesmo uma vida que tomámos nas mãos, gerámos outras que pegaram na vida que receberam e foram à deles. E é isto a vida.
E também não sou de inquietações mas, volta e meia, quando estou aqui sossegada no meu sofazinho, ocorrem-me coisas e, como gosto de escrever, pego no que me vem à cabeça e escrevo.
Se só agora me conheceu, não saberá que antes do blog, à noite, eu fazia tapetes de arraiolos como se não houvesse amanhã. Ou pintava. Já houve alturas em que bordei. Ou seja, acho que escrever é uma forma de ocupar as mãos. E de descansar a cabeça ao fim do dia.
E agora vou espreitar o seu blog. Não conhecia.
Obrigada pela gentileza das palavras.
Beijinho!