Estávamos varados de fome e o meu marido tinha lido que o McDonalds estava aberto 24 horas por dia. Dirigimo-nos para lá. Dá, pois, para perceber o tamanho da fome. Eu hamburger não me estava a ver a comer àquelas lindas horas mas, em contrapartida, já só pensava numa coisa frita com puré de maçã por dentro que eles lá tinham e que eu só pensava que tomara que ainda tivessem. Afinal, estava fechado, já passava da meia noite. O que estava aberto as tais 24 horas por dia era o McDrive. Mas ir para uma fila, que estava de bom tamanho, e trazer um saco para casa ou ficar a comer ali no carro, isso não. Portanto, desandámos.
Vínhamos no carro e só falávamos no que haveríamos de comer. Eu disse: noutros tempos eu pensaria numa tosta com queijo a derreter lá dentro, fiozinhos de queijo cheiroso a derreter-se-me na boca. Mas, então, ao entrar em casa, ocorreu-me: temos ainda um bocado de pão de espelta, temos um resto do frango que assei no domingo, temos alface. Oh pá, que belo pitéu em perspectiva. E assim foi. Deliciosa. Uma sandes para cada um. Depois uvas brancas fresquinhas e, a rematar, um quadrado de chocolate preto e dois cubos de gengibre cristalizado (passados por água para tirar o açúcar). Um jantar e pêras. Agora passa da uma e meia e estou bem, confortada.
À vinda do trabalho, vinha a pensar que tinha que falar aqui da múmia que saíu da marquise para vir louvar a Marilú dos Swaps, aquela que falhou todos os orçamentos, que corporizou a austeridade para além da troika. Saíu da marquise para mostrar que não aprendeu nada, a múmia, o marido da cavaca. E pensei também que tinha que falar naquele da IL, o liberal que também gagueja e que tem cara de maluco, mais ainda que o emplastro com quem tem perigosas parecenças.
E tinha ainda um tema privado para dele aqui desfiar uns fiozinhos e vinha a pensar como haveria de disfarçá-lo para que dele não sobrasse aparência reconhecível.
Mas, isto, a gente nunca sabe. Aparecem imprevistos e nem sempre agradáveis.
Acontece. Portanto, lá fomos.
Acontece. Portanto, lá fomos.
E o que tenho a dizer, porque só gosto de falar do que não me faz mossa, é que há lugares que são não-lugares. Lugares de não-permanência. Lugares de despojamento. Por vezes de solidão.
E em lugares assim a gente percebe que há momentos em que somos todos iguais: novos e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres. Olha-se à volta e nada no comportamento os distingue.
Por exemplo, poderia falar da mulher que não percebi se era nova ou assim-assim e que talvez fosse drogada ou alcoólica e a quem faltavam dentes, a pele escurecida, muito magra. Estava com alguém que talvez fosse amiga. Mandavam sms uma para a outra, olhavam para o que tinha chegado, teclavam com rapidez, quase de olhos fechados. Ou podia falar do homem bonito, alto, bem constituído, de calções de ganga, blusa de algodão com decote em bico, cabelo grisalho curto, e que tossia como se lhe doessem as costas, como se quisesse conter a tosse para evitar a dor, que mal conseguia abrir os olhos, como se estivesse cheio de febre ou sedado e que, de vez em quando, com muito esforço, se levantava e ia lá fora fumar. Estava sozinho e eu pensei que, naquele estado, deveria sentir-se triste por não ter ninguém ali consigo. Ou a senhora que falava muito, contava coisas, revelava grande auto-estima, relatava a forma assertiva como tinha resolvido situações, mas eu olhava e via e pensava que aquilo não era assertividade, era exibicionismo. Em frente, duas outras, muito atentas e deslumbradas. E então disse que tinha 66 anos e as outras não queriam acreditar, quiseram que ela repetisse, e ela repetia e as outras quase se derretiam a gabá-la 'está óptima!' e ela sorria, superior, jovem forever. E não percebi se alguma delas estava doente ou se estavam a acompanhar doentes por quem não se importassem nem um bocadinho. Podia, talvez, falar da jovem esbelta, altíssima, de quem a minha mãe disse que podia ser modelo. E eu olhei e pensei que sim, que tinha uma altura e uma elegância incomuns. E também não percebi se estava doente. Em contrapartida, numa fiada de cadeiras, um rapaz gordo dormia ferradamente. Tinha uma fita amarela. Também estava sozinho. Um segurança foi tentar acordá-lo, levantou-o, tentou perguntar-lhe qualquer coisa mas o rapaz nem abriu os olhos, voltou a deitar-se. Ou poderia falar das ciganas gordas, do casal de namorados, do casal que não abriu a boca, como se não se conhecessem. E outros.
Podia um dia pedir autorização para fotografar estas pessoas, estas ou as que se vão sucedendo, todas parecidas. Gostava mesmo.
Mas não tirei. E agora já são quase três da manhã. Pelo meio disto tenho parado sem querer, estou cansada, com sono.
Fico-me, pois, por aqui.
E em lugares assim a gente percebe que há momentos em que somos todos iguais: novos e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres. Olha-se à volta e nada no comportamento os distingue.
Por exemplo, poderia falar da mulher que não percebi se era nova ou assim-assim e que talvez fosse drogada ou alcoólica e a quem faltavam dentes, a pele escurecida, muito magra. Estava com alguém que talvez fosse amiga. Mandavam sms uma para a outra, olhavam para o que tinha chegado, teclavam com rapidez, quase de olhos fechados. Ou podia falar do homem bonito, alto, bem constituído, de calções de ganga, blusa de algodão com decote em bico, cabelo grisalho curto, e que tossia como se lhe doessem as costas, como se quisesse conter a tosse para evitar a dor, que mal conseguia abrir os olhos, como se estivesse cheio de febre ou sedado e que, de vez em quando, com muito esforço, se levantava e ia lá fora fumar. Estava sozinho e eu pensei que, naquele estado, deveria sentir-se triste por não ter ninguém ali consigo. Ou a senhora que falava muito, contava coisas, revelava grande auto-estima, relatava a forma assertiva como tinha resolvido situações, mas eu olhava e via e pensava que aquilo não era assertividade, era exibicionismo. Em frente, duas outras, muito atentas e deslumbradas. E então disse que tinha 66 anos e as outras não queriam acreditar, quiseram que ela repetisse, e ela repetia e as outras quase se derretiam a gabá-la 'está óptima!' e ela sorria, superior, jovem forever. E não percebi se alguma delas estava doente ou se estavam a acompanhar doentes por quem não se importassem nem um bocadinho. Podia, talvez, falar da jovem esbelta, altíssima, de quem a minha mãe disse que podia ser modelo. E eu olhei e pensei que sim, que tinha uma altura e uma elegância incomuns. E também não percebi se estava doente. Em contrapartida, numa fiada de cadeiras, um rapaz gordo dormia ferradamente. Tinha uma fita amarela. Também estava sozinho. Um segurança foi tentar acordá-lo, levantou-o, tentou perguntar-lhe qualquer coisa mas o rapaz nem abriu os olhos, voltou a deitar-se. Ou poderia falar das ciganas gordas, do casal de namorados, do casal que não abriu a boca, como se não se conhecessem. E outros.
Podia um dia pedir autorização para fotografar estas pessoas, estas ou as que se vão sucedendo, todas parecidas. Gostava mesmo.
Mas não tirei. E agora já são quase três da manhã. Pelo meio disto tenho parado sem querer, estou cansada, com sono.
Fico-me, pois, por aqui.
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Sade canta Kiss of Live e a Paula Rêgo faz-me companhia.
Não consigo responder a comentários os mails. As minhas desculpas, A ver se consigo durante o dia.
E sorte, saúde e felicidade para todos.
Texto que descreve muito bem esses “lugares de despojamento” que nos nivelam e em que percebemos que há alturas em que somos todos iguais na nossa condição humana.
ResponderEliminarPois é, AV, lugares em que tomáramos nunca estar e onde, ainda assim, deveremos sentir-nos agradecidos por sairmos de lá melhor do que entrámos, ou nós ou ou nossos familiares. Mas, AV, é tudo tão mau. Aqueles corredores, aquelas salas de observação nas urgências, total falta de privacidade (embora, estando tão mal, nem os doentes se importam com isso).
ResponderEliminarEnfim, é a vida. Mesmo nos momentos em que a vida parece em suspenso.
Um Jeito Manso, é mesmo assim - é tudo tão mau. E no entanto, nesses ‘lugares de despojamento’, agarramos-nos a isso mesmo, porque a alternativa é pior. Às vezes é também aí que encontramos gestos de bondade que já não esperávamos e que nos trazem fé na humanidade.
ResponderEliminarBoa sexta-feira e melhor fim-de-semana.
Discordo. Esses são os verdadeiros lugares. Aqueles onde somos confrontados não só com a nossa condição mas com a dos nossos semelhantes.
ResponderEliminarOs não lugares são, nas palavras de Marc Auge (ou na interpretação de Rem Koolas - a cidade genérica), os centros comerciais, os aeroportos, ... , todos esses locais em que somos mercadorias em movimento.
É almejando uma fuga dos lugares - ou seja, dando são a um desejo de superação perante a condição precária e temporária dos seus semelhantes - que cada vez mais vemos adeptos da destruição a natureza universal e gratuito desses lugares. Não nos sendo possível superar a finitude da nossa existência, optamos por encurtar a dos que nos rodeiam, na esperança de que num não-lugar sejamos algo, que não somos, num lugar.
Tenho frequentado um destes lugares, com um familiar a aproximar-se da sua finitude. E talvez nunca tenha tido contacto com tanta humanidade.
Que ao menos não nos tirem isto.
Já esteve melhor.
Bom fim de semana!
Ao ler o comentário de Paulo B lembrei-me da descrição que um homem fez das últimas horas de vida da sua mulher numa unidade de cuidados paliativos. Estava sentado num canto do quarto, um pouco na escuridão, quando entrou uma enfermeira, que acarinhou a mulher e ficou a falar-lhe docemente por uns tempos, talvez alheia a que ele estivesse lá. Ele escreveu: “A minha mulher morreu rodeada de amor”. Nunca me esqueci daquele texto, escrito em defesa de um serviço nacional de saúde, que achei muito comovente.
ResponderEliminarBom Domingo.
Olá Paulo,
ResponderEliminarNem todos os hospitais são iguais nem mesmo são iguais ao longo do tempo. Neste caso em concreto, que este domingo até foi notícia nas televisões, a urgência tem estado saturada, macas com pessoas pelos corredores, uma falta de privacidade absoluta. Quando consegui que me levassem até ao meu pai fui passando por aquele cenário de guerra, tentando descobri-lo e senti-me a devassar a dor e o constrangimento alheio. Muito horrível. E não há quem acuda a todos os que gemem e gritam e tossem e choram. Muito mas mesmo muito impressionante. E a sala de espera cheia, doentes e acompanhantes ali todos a respirarem em cima uns dos outros.
Acredito que em cidades ou vilas mais pequenas, em hospitais que não sejam distritais, o cenário seja outro, mais humano.
Tenho andado com vontade de escrever sobre isto mas a verdade é que nem sei o que diga. Quando ali estamos, queremos é não estar, é que tudo aquilo se resolva. A minha mãe demorou a chamar o INEM porque já temia o horror que é o hospital em dias de grande enchente.
Desejo as melhoras do seu familiar ou, pelo menos, que não sofra.
Abraço, Paulo.
Apesar de tudo, a realidade que refiro é exatamente de um desses hospitais. Um dos maiores do país, o maior da região centro (que recebe não só pessoas do distrito como de muitos outros).
EliminarFaz uns 2 anos, naquele surto de um vírus da gripe mais grave, eu próprio tive de passar uma noite numa dessas salas polivalentes da urgência. Já tinha passado o pico da gripe, mas o cenário era dantesco. Eu nem tive uma maca. Passei a noite numa cadeira de madeira nada confortável.
Apesar de tudo, não estava muito mal. Estava com febre persistente muito alta que não baixava com os medicamentos habituais da farmácia fiquei lá toda a noite medicado com algo um pouco mais forte. Passei a noite a observar. Fiquei impressionado como, apesar do aparente caos, havia organização. E espaço para alguns momentos de simples conforto aos doentes em situação mais grave.
Definitivamente uma área que está, como diz o presidente da associação dos administradores hospitalares (numa partilha que deixei algures aqui noutro post), perto de um ponto de não retorno.
Abraço!
AV,
ResponderEliminarComo escrevi acima, há circunstâncias em que a humanidade não chega a todos e em dias em que a urgência está mais do que superlotada bem podem os doentes gritar que ninguém deles se aproxima ou, se o faz, é com rapidez, tentando acudir a todos.
Há uns dois anos e tal, estava o meu pai muito mal, com uma pneumonia e os órgãos a entrarem em falência quando me ligaram a dizer que se eu queria despedir-me dele talvez fosse melhor ir logo pois talvez não chegasse à visita da tarde.
Fui logo, num estado de nervos terrível. Lá estava, inconsciente. E entre outros que pareciam defuntos, alguns esqueléticos, de boca aberta, amarelos. E eu vi-me ali junto ao meu pai que não me ouvia e entre outros que nem sei me ouviriam ou não. Custou-me imenso e o que me aliviou foi pensar que ele não estava para morrer coisa nenhuma. E, de facto, à tarde, para espanto geral, estava um pouco melhor. Mas são situações em que é muito difícil haver humanidade pois é tudo muito pouco privado, muito no limite de tudo.
Quando sei que alguém cai para o lado e morre só penso: 'que sorte'.
São temas difíceis.
Abraço, AV.