A semana foi de tal ordem que ainda nem me parece que a semana esteja a acabar. De tarde caí em mim e pensei que uma sexta-feira tem que ser festejada e que talvez uma boa maneira fosse ir ao cinema. Falei ao meu marido. Vita & Virginia. Que não, que devia ser chato. Sugeri-lhe que podia ir para outra sala, ver outro filme. Perante essa perspectiva, que ele sabia ser impossível pois eu não lhe perdoaria se aceitasse a minha sugestão, acabou por aceder. Mas teríamos que sair a horas decentes para dar tempo a jantar antes. Mas os deuses protegem os corta-baratos pois vimo-nos ambos, cada um em seu lado da cidade, ensarilhados no trânsito. Portanto, ao telefone um com o outro, percebemos que cinema já era. Salvou-se de ver em filme a história que conhecemos dos livros. No entanto, acho que iria gostar. Eu iria. A ver se para a semana. Nisto, manda-me o meu filho uma sms a perguntar se não queríamos ir jantar com eles. Não sabíamos se conseguiríamos chegar a tempo, que avançassem que logo veríamos. Quando lá chegámos já lá estavam e já o bebé tinha virado meio prato de sopa com bocados de pão à mistura.
E eu e o meu marido dissemos que, ao fim de muitos dias de cansaço, é natural que a uma pessoa lhe salte a tampa ao ver-se acusado de uma mentira. Nada de mais. Alguém quer ter governantes que sejam máquinas, indiferentes a calúnias e a acusações injustas e maledicentes? Eu não quero. E também me parece que uma sociedade de censores em que não se admite uma reacção humana aos políticos não será uma sociedade saudável.
No carro já tinha ouvido 'o caso', mais um 'caso', bem como as reacções do Rio e da Cristas e de vários comentadores que de imediato tinham sido convocados para opinar. Já vinha saturada. Um homem chateia-se por ser acusado de uma coisa grave que não aconteceu -- e cai o carmo e a trindade. Não indignados com a mentira mas com a reacção. Não se aprende nada nestas alturas. Estas gentinhas que vivem de comentar o que os outros fazem e dizem só me parecem vizinhas coscuvilheiras, só acusações, só parvoíces polvilhadas por polígrafos e papagaiadas. Não há pachorra.
E eu, a esta hora, aqui chegada ao meu sofá acolhedor e silencioso, já não estou nem aí.
Estou aqui a pensar é noutra coisa. Tenho um colega que é muito culto. Cultíssimo. Culto de uma forma invulgar. Junta a isso o ter uma memória como nunca vi. A meio de uma frase minha pode lembrar-se de um verso de um poema e di-lo na língua original. E se eu, desconfiada, à socapa, depois, for googlar, constato, espantada, que aquele verso existe mesmo, que o autor é mesmo aquele. Uma coisa que descrita parece mentira mas que é estranhamente verdadeira. Tenho alguns livros que ele me tem oferecido e são sempre invulgares e surpreendentes. Pois bem. No melhor pano cai a nódoa. Hoje, num mail que me enviou, mail que, como sempre estava muito bem escrito quer na forma quer no conteúdo, as ideias sempre muito bem sistematizadas e apresentadas, quase no fim, um erro ortográfico. Onde deveria estar 'podemos' estava 'pudemos'. Fiquei ali parada a olhar para aquela letra trocada. Doeu-me como uma nódoa. Pensei devolver-lhe o mail e pedir que o revisse e mo enviasse de novo sem o erro. Por pura ironia e por saber que ele perceberia o meu desconforto. Mas depois pensei. Temi que ficasse a sentir-se mal. Se fosse comigo, eu ficaria doente se enviasse um mail com um erro daqueles. Depois pensei em responder-lhe ao tema em questão e, no fim, como uma notinha insignificante, um alerta para o typing mistake. Mas depois não fiz nada disso. Para quê? Para quê ir aborrecê-lo? Quantas vezes já eu troquei letras, deixei restos de frases alteradas no meio das frases novas, quantas vezes mudei de ideia a meio da frase deixando a vírgula onde antes fazia sentido e depois deixou de fazer? Quantas vezes, ao reler o que escrevi, fico perplexa com os erros que encontro? Quantas vezes me auto-recrimino por publicar coisas sem antes as reler, sem antes as editar? E isto já para não falar no corrector automático que, às vezes, de sua lavra, escreve palavras que não queremos e que, se não damos por elas, seguem viagem mesmo assim.
Tanta preocupação que tenho de pôr as vírgulas no sítio em que a conversa inflecte ou que a respiração precisa de pausa e, afinal, na volta, a conversa pode fluir, refluir, estacar, voltar atrás, dar uma volta, abrir um parêntesis, gargalhar, chorar, tudo, sem precisão alguma de vírgulas.
E não estou a falar de cor, não. Estou a falar porque constatei. Não foi a primeira vez, claro. Mas desta vez eu estava a ler o livro, a ler, a ler, e não dei por isso. Eu lia fazendo as pausas todas sem dar pela falta das vírgulas. Quando dei, voltei atrás para verificar se a ausência vinha desde a primeira página. E vinha. E não me tinham feito falta nenhuma.
Exemplifico.
Exemplifico.
38. Tenho desde há muito o hábito de em algumas noites acender uma vela dentro de um pequeno castiçal junto à janela. Penso que se verá da rua. Creio que os anjos de grandes asas pesadas se háo-de abeirar ainda que por pouco tempo do lugar onde eu moro. Sei que nada é mais terrível do que a perfeição de um anjo e por isso os espero assim. Perdidos nas rotas da chuva e com um cansaço quase humano no rasto que deixam.
214. A tristeza tem mil e uma formas de ser dita mas a alegria não tem história. Claro que isto já foi escrito e com mais eficácia mas hoje voltei a comprová-lo. Encontrei uma pessoa que me convidou para um café e pensei oh diabo tenho para umas duas horas. Mas não. Disse-me logo não vou maçá-la está tudo a correr bem não tenho nada para contar. Com efeito em meia hora bebemos um café e conversámos sobre platitudes. E eu pensei nos caprichos do acaso mas nada disse.
Não concordam comigo? Percebem a minha dúvida? Para quê incomodar as vírgulas, andar com elas em preparos, com rodeios e mesuras, em bolandas? Porque não deixá-las em paz? Não viveremos, afinal, bem sem elas?
Tenho que tentar. Mas não me vai ser fácil, ainda estou muito apegada às maganas.
Os excertos em itálico pertencem ao belo diário de Ivone Mendes da Silva, 'A mulher do meio'.
A bela mulher retratada podia ser a Ivone mas não, é Ida Rubinstein
Abaixo, Alessandra Ferri dança enquanto Sting interpreta Bach, suite 1 para cello
Desejo-lhe um belo sábado. Tudo de bom para si.
Como diz Cormac McCarthy, o parcimonioso: «James Joyce is a good model for punctuation. He keeps it to an absolute minimum. There’s no reason to blot the page up with weird little marks. I mean, if you write properly you shouldn’t have to punctuate.»
ResponderEliminarNem sonha a demagogia que anda a circular pelas redes por conta da mais que justificada zanga de António Costa, claro que até com direito a achaques racistas.
ResponderEliminarEnfim, amanhã é um belo dia, dia de ir votar.
Um fim-de-semana fantástico.
Olá Dear Mr.X,
ResponderEliminarPara quem é ponderado e sabe modelar e destilar e depois deixar que as palavras se ajeitem na frase em total harmonia bem cerzidas sem costuras à vista sem pontas soltas dispensar a pontuação pode ser fácil.
Mas para quem não sabe medir a torrente nem dosear a coloração nem calibrar a intensidade é muito difícil. Parece que a todo o momento as palavras vão romper os diques vão invadir as margens vão exceder-se irromper em abraços irromper em sorrisos irromper em lágrimas fugir das mãos que lhes mostram o mundo esconder-se acolher-se em corações alheios.
A contenção a ponderação a quietude não são para todos são apenas para quem conhece da música os prévios acordes e adivinha as palavras antes de o serem.
Será arte ao seu alcance tal como ao alcance da Ivone e isto já para não falar em James Joyce. Não ao meu.
E notará que estive a conter-me a tentar não usar uma vírgula um sinal de distração nada senão o ponto final mas não imagina o esforço parece que os dedos hesitam inseguros sentindo a falta de um amparo.
E sabe que mais Mr. X? Tudo isto foi só para lhe dizer que fiquei muito contente por ter aqui prova da sua presença.
Venha mais vezes.
Olá Francisco, por vezes Chico,
ResponderEliminarPois felizmente poupo-me aos desmandos das redes sociais. Pode ser que tenham coisas boas mas o tempo que consomem, a manipulação oculta, a força da propagação exponencial são tudo aspectos que não consigo tolerar.
Portanto, ainda bem que não sei da maledicência vírica (e, pelos vistos, até racista) que por aí grassa.
E bora mas é todos votar neste domingo. A abstenção é uma doença da democracia e isso parece que ainda não aprendemos a curar.
Bom voto e bom domingo.
E um dia feliz, Francisco.
Olá UJM, desde que as vírgulas não nos façam engasgar são sempre bem vindas! Ana
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