segunda-feira, outubro 14, 2019

A minha experiência na urgência de um hospital




Infelizmente, nos últimos anos, já tive que ir muitas vezes a hospitais, muitas vezes às urgências, outras vezes ao SO, outras vezes a enfermarias. Muitos sustos. Se em alguns casos, os meus familiares recorreram a hospitais privados (e felizmente têm seguros que lhes permitem fazer face a essas despesas), noutros a experiência é a dos hospitais públicos.

Durante a semana que passou, o meu pai esteve, uma vez mais, no hospital. Foi chamado o INEM e foi levado paar o hospital público da cidade.

A urgência estava apinhada. Os corredores estavam pejados de macas com doentes que gemiam, gritavam, arfavam. A chamada sala aberta -- que não percebi se era apenas a sala onde estava o meu pai ou se também uma outra sala -- estava identicamente cheia de doentes em estado complicado. Lá fora, várias ambulâncias não podiam ir-se embora pois não havia macas suficientes no hospital e os doentes que tinham levado continuavam nas macas das ambulâncias. 

Ao fim de duas horas do meu pai ter entrado, consegui ir ao pé dele e a enfermeira disse-me que ele aguardava o resultado de exames mas que, da forma como aquilo estava, ainda deveria demorar talvez mais uma hora ou hora e meia. Não consegui falar com o médico que lá vi pois, enquanto lá estive, ele esteve ocupado. Aliás, coitado, não sei como aguentava aquilo.

Ao fim de cerca de mais duas horas cá fora e sem nada conseguir saber, a informação que, a muito custo, consegui obter é que afinal ainda não tinha ido fazer os exames pelo que continuaria em observação e em manobras de mitigação dos sintomas. Esperámos. Até que acabaram por nos dizer que podíamos ir para casa e voltar de manhã para tentar obter notícias. 

Ao fim da manhã do dia seguinte o meu pai teve alta e na nota de alta pode ler-se que ainda aguarda RX ao tórax. A urgência estava ainda mais caótica. Aparentemente desistiram de esperar que ele fizesse o exame e mandaram-no para casa.

E a minha dúvida é a seguinte: ainda não começaram as gripes e durante as longas horas que lá estive não vi que chegassem tantos doentes que justificassem tal lástima na urgência. Aliás, hoje vi na televisão que as ambulâncias tiveram que ser desviadas de lá pois a urgência não conseguia receber mais doentes.

Portanto, inclino-me para que aquela situação desastrosa terá origem não em afluxo anómalo de doentes mas, sim, num estrangulamento interno na própria urgência: ou faltam médicos, ou enfermeiros ou pessoal auxiliar ou, então, pessoal ou equipamento no laboratório ou nos aparelhos de diagnóstico como o RX. E deve ser por isso que os doentes se acumulam nos corredores sem que lhes consigam dar 'vazão'. Diria eu que uma averiguação básica deveria ser capaz de identificar as razões do estrangulamento e, sem grande acréscimo de custos, resolvê-la.

Contudo, aqui entra uma outra dúvida que tenho. Por todo o lado se vêem hospitais privados em construção ou hospitais privados já existentes em obras para duplicar a sua capacidade. E não apenas novos grandes hospitais mas também clínicas. E eu interrogo-me: de onde vêm tantos médicos, tantos enfermeiros, tantos técnicos de meios de diagnóstico? Não percebo. Não pode haver tanto pessoal. em especial médicos. Que eu saiba não abriram mais faculdades de medicina nem alargaram o número de vagas. Portanto, ou muito me engano ou é na escassez física de recursos humanos que reside a raiz do problema.

E, se assim é, que se inventariem os técnicos de saúde necessários no país (médicos, enfermeiros, técnicos - e não junto aqui o pessoal auxiliar pois admito que seja mais fácil recrutá-lo do que aos que exercem funções mais especializadas). E que, por uma vez, se tirem as análises partidárias da equação -- porque são estúpidas e tendenciosas -- e se faça uma análise algébrica simples. E se há um défice efectivo de profissionais pois que, com urgência, se estabeleçam protocolos com as escolas e institutos para aumentar rapidamente o número de vagas (e se mande a Ordem dos Médicos à fava caso não queiram alargar o número de vagas). Mas, até lá, que se recrutem do estrangeiro todos os que hoje e nos próximos anos faltam. Urgentemente.

E não falei noutros técnicos que provavelmente são também deficitários: os técnicos de manutenção de equipamentos médicos, nomeadamente os de electromedicina e outros mais sofisticados. Se esses equipamentos avariam e não houver quem os repare, os doentes esperarão horas a fio por um resultado que pode não vir.

Acredito que não está em causa um aumento significativo no orçamento da Saúde pública pois o que hoje se paga em trabalho suplementar, em folgas compensatórias, em pagamento de reparações de equipamentos seja a que custo for a empresas externas poderia ser compensado por ter mais técnicos residentes a praticarem horários normais.

Este tema tem que ser visto desapaixonadamente mas tem que ser visto já. É que não estou a falar apenas do desconforto de doentes e acompanhantes que esperam horas a fio: falo da saúde das pessoas. Falo de experiências que podem ser traumáticas ou fatais na vida das pessoas.

Diria que António Costa deveria conseguir um acordo de regime para conseguir pegar o tema da Saúde pelos colarinhos. Se não há pessoal que chegue, e estou convencida que não chega mesmo, o lençol não esticará e rasgará pelo lado mais frágil: o Serviço Nacional de Saúde. E isso não pode acontecer. É a saúde de todos que tem que ser defendida.

E Marcelo Rebelo de Sousa que tanto fala da Saúde deveria assegurar isto mesmo: o tema não é de esquerda nem de direita nem de chicana nem de bandeira nem arma de arremesso nem de ricos nem de pobres -- o tema é sério, é urgente e é de todos.

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As pinturas podem não parecer mas são de Rothko,  «Une berceuse de la mort...» é de Fauré

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Uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

7 comentários:

  1. Mais uma vez, muito bem. É bom ver sempre os seus escritos. Bem haja.

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  2. É uma experiência horrível. Passei recentemente a noite nas urgências do Santa Maria com a minha irmã. A forma como nos trataram foi simplesmente abjeta. Direi apenas que se não me tivesse zangado com a médica - já que os enfermeiros e os técnicos auxiliares são ainda mais (muito mais) inacessíveis - a minha irmã nem sequer tinha chegado a fazer os exames de diagnóstico quanto mais a receber o tratamento para a infeção renal que, conforme viemos a descobrir, ela tinha (e que a médica, palavras do médico que fez a ecografia, devia ter logo percebido o que era pelos sintomas relatados...) Foram horas até eu estrilhar, com a senhora da segurança em cima de mim. Disse eu então que a minha irmã estava a definhar e que se era para isso, ia-me embora com ela, porque para definhar, definhava em casa. Só então um enfermeiro dignou-se a ver-lhe a febre e apercebendo-se do estado dela, perguntar aos outros como foi possível não lhe terem dado sequer um benuron, independentemente de ter feito ou não exames porque é o que se faz SEMPRE (palavras dele). No final, aquela coisa engraçada em que não querem explicar exatamente à paciente o que é que ela tem, recusando-se dizer a designação correta do problema, dizendo que "fica em sistema" e a médica de família poderá consultar. É mentira, a médica de família não tem acesso a nada que se passa nas urgências do hospital. Quando o problema voltou, nova ronda portanto. Mal ou bem pagos, aquilo que aquela gente faz às pessoas é desumano e não tem justificação. Não estou a brincar se disser que estive quase a esmurrar um dos enfermeiros ordinários que espetou o soro na minha irmã com uma brutalidade explicada pelo visível estado amuado com que ficou por eu ter ousado reclamar e ter levado com o ralhete do outro enfermeiro. Um tipo maquilhado de mulher da noite, cores festivas nos olhos, brinco comprido pendurado, com as trombas mais sisudas que já vi: um contraste que seria engraçado se estivéssemos numa comédia e não num hospital. Pela minha vontade, nunca mais lá volto. E se por acaso alguém me mandar para lá contra a minha vontade e aquela besta de maus modos se aproximar de mim, juro que o mordo - antes morrer na prisão que receber os "tratamentos" daquele bruto.
    JV

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  3. Boa tarde UJM
    A minha experiência pessoal não é diferente da sua dado que o doente fui eu. Resumidamente o tema foi o seguinte: No inicio da tarde dodia 23/12/2017 chegou ao fim a resistência que vinha oferecendo ao imensos sinais que o meu corpo dava (tosse, febre, dores musculares, mau estar geral). Vi-me obrigado a chamar o meu filho para me conduzir ás urgências dos HUC (Coimbra). Aí chegados, depois do registo, fiquei a aguardar pela triagem. Esperei cerca de 30 minutos para, tenho que dizer de uma forma muito profissional e humanizada, falarem comigo na sequência foi-me atribuída a pulseira amarela. cerca de 45 minutos depois sou chamado para analises e exames, logo de seguida, (1/2 hora?) passo para uma marquesa para a fazer oxigénio (vim a saber mais tarde que estava apenas a oxigenar o sangue em 36%) e colocação de um cateter para receber medicação.
    Nesta altura, mais tranquilo, a aguardar os exames deitado ma marquesa, tenho tempo para apreciar toda a envolvência.
    a) Jamais irei esquecer o profissionalismo, a disponibilidade, o humanismo e o querer fazer depressa e bem do pessoal em serviço nas urgência (médicos, enfermeiros e auxiliares). Pareceram-me serem necessários mais! Estávamos em época da gripe!!!!
    b) Não consegui perceber ninguém, daquelas pessoas, preocupado com a origem ou estatuto social do povo deitado nas marquesas quando era necessário dar cuidados ou responder a um chamamento.
    c) os doentes (marquesas) excediam a capacidade das instalações. Em termos de segurança é muito critico porque em emergência dificilmente se saberá para onde e como fugir. Não sei se todos os presentes tinham razões de saúde ou eram elegíveis para aquelas urgências - pareceu-me que não.

    Resta dizer que me foi diagnosticada uma pneumonia que me obrigou a internamento durante uma semana na pneumologia onde a excelência do nosso SNS uma vez mais ficou, para mim, comprovada.

    Em jeito de conclusão sublinhar que cada caso é um caso e tomar a árvore pela floresta não será o mais acertado.

    Abç

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  4. A minha experiência com o SNS (e nos últimos tempos tem sido bem frequente) é de um serviço, surpreendentemente, bom face às condições absolutamente precárias em que opera!

    A "nova gestão pública" (entenda-se, a aplicação de lógicas mercantilistas na provisão de serviços públicos) entrou em força no sector da saúde, tendo nos últimos anos destruído, mais ou menos deliberadamente, o reduto do SNS mais distante dessa lógica mercantilista: os cuidados de saúde hospitalares. Em nome da verdade, a componente hospitalar do SNS nunca chegou a ser universal numa lógica de serviço público. Na "fé" de se poupar uns trocos (que está por provar que foram realmente poupados)(e terá sido "fé"? ou terão sido interesses particulares?), optou-se, a certa altura, pelo paradigma da "terceira via". Como? As parcerias público privadas na construção e na gestão de unidades hospitalares, a concessão de serviços a empresas privadas (desde a alimentação de doentes e pessoal, até à limpeza e segurança, ao transporte de doentes e culminando com os "cheques-cirurgia"). E que mais nos trouxe a "terceira via"? A absoluta precarização das relações laborais, a destruição de carreiras, a peregrina ideia da "avaliação de desempenho" individual e, cereja no topo do bolo, a própria subcontratação dos recursos humanos basilares - médicos e enfermeiros (hoje, em muitos serviços de urgência de unidades públicas, os serviços são assegurados por médicos e enfermeiros "tarefeiros" e não dos quadros de pessoal!).
    Não estou com isto armado em saudosista de um suposto antigo SNS, cheio de virtudes e eficiências. Bem pelo contrário. O SNS universal e gratuito foi, em Portugal, tão só uma promessa, cheio de bons princípios e boas ideias, mas onde a construção do edifício recorreu a técnicas desadequadas e até contrárias a esse projeto arquitetónico! Ainda assim, muitos princípios originais foram absorvidos por muitos dos seus profissionais e, mesmo em condições hostis, têm feito um trabalho extraordinário (podia relatar mil e uma experiências fantásticas que tive!).

    (continua)

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  5. (continuação)

    Não faltam estudos. Não faltam "livros brancos". Um exemplo, aqui da casa: https://www.publico.pt/2018/11/20/sociedade/noticia/ate-2040-racio-enfermeiros-medico-devera-aumentar-31-1851658

    Não faltam sequer recursos humanos formados e qualificados: um país que tem uma das mais baixas taxas da OCDE de enfermeiros por habitante a exercer nos serviços de saúde, dá-se ao luxo de ter milhares de profissionais formados nessa área desempregados, noutras áreas profissionais e muitos emigrados - só eu conheço uns 4 emigrados no meu círculo de conhecidos!). Mais, a conversa da falta de médicos também é muito interessante porque até estamos mais ou menos na média de número de médicos por habitante (independentemente se estão no público ou no privado!) - note-se ainda que estamos perante um cenário de declínio demográfico, onde a questão da mudança estrutural / população envelhecida já foi atingida, sendo daqui para a frente um processo simples de redução de pessoas e não tanto das duas "proporções" por grupo etário).

    Ninguém acha estranho que ao mesmo tempo que se nota a degradação dos serviços integrante do SNS e seja notória a falta de profissionais pululem, que nem cogumelos, as clínicas e hospitais privados? Se o SNS fosse efetivamente público, universal e tendencialmente gratuito, como podem ser estas unidades "privadas" lucrativas? Como e porque atraem tantos profissionais?

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  6. (para finalizar)

    Vejamos um pequeno episódio, real, pessoal, que talvez nos dê uma ideia do tipo de respostas que poderíamos encontrar: faz uns anos, era eu estudante universitário, estando com uma dor aguda e persistente num ouvido, aproveitei o protocolo da instituição universitária com um hospital privado da cidade, e marquei uma consulta de especialidade - tomei tal iniciativa pela comodidade do procedimento; hospital que parecia um hotel e tal, pouca gente nas salas de espera, tudo malta que obviamente tinha um poder de compra superior ao português médio - pois conhecia bem o centro de saúde e o público é bem diferente; sou atendido por um senhor que me observa o ouvido e diz que pode ser grave e que me ia prescrever uma bateria de exames para avaliar o caso; saio da consulta e encaminham-me para os serviços administrativos onde, ao irem fazer as marcações dos exames se deparam que eu afinal não era beneficiário da ADSE mas apenas de um protocolo específico que permitia aos alunos aceder apenas à consulta por um valor mais reduzido que a tabela (20€ e não os 50€ - valores da altura); desta forma, os diversos exames seriam cobrados ao valor de tabela, o que corresponderia a mais de 1000€! Eu, estando preocupado com a tal dor, perguntei que poderia eu fazer, sendo que a senhora sugeriu-me falar com o médico expondo a minha situação; ora, percebendo então que eu não usufruía do seguro de saúde público, sugeriu-me fazer um simples exame auditivo no valor de cerca de 50€ (vim a descobrir mais tarde que era uma mera audiometria...), que poderia fazer logo ali e já teria uma primeira ideia da situação. Fiz o tal exame que, perante os seus resultados, o médico sugeriu fazer uma mera limpeza / aspiração do cerúmen. Fiquei com o problema resolvido. A nota interessante aqui: a prescrição de exames de valor astronómico, que seriam pagos pela ADSE (o seguro de saude, direta e indiretamente pago pelo estado), para um problema que não era mais do que um simples "rolhão de cerúmen" que estava a pressionar o nervo auditivo causando dor, como medida inicial não parece motivada por critérios clínicos mas sim financeiros! Na melhor das hipóteses, a intervenção médica foi adequada à minha disponibilidade / capacidade para pagar. Na pior das hipóteses foi mesmo uma tentativa de sacar dinheiro selvaticamente a um sistema de saúde semi-público (assegurado em grande parte pelo estado).

    Conto esta história porque a ADSE tem servido de modelo para o SNS. Não só porque são cada vez mais as vozes que reclamam a "universalidade" da ADSE, funcionando as unidades de saúde públicas como qualquer outra unidade privada, "concorrendo" pelos "consumidores" detentores de um seguro público, universal; Mas, sobretudo, porque os princípios de reforma do SNS têm seguido este modelo, com o seu esquema de parcerias público - privadas, crescente concessão e privatização de muitos dos serviços que, pelo contrário, deveriam ter sido sim cada vez mais internalizados no SNS (por exemplo, os meios complementares de diagnóstico, a distribuição de produtos farmacêuticos, etc!).
    Nem sempre concordando com a sua visão, este investigador tem trabalhos interessantes sobre o tema: https://www.wook.pt/livro/pela-sua-saude-pedro-pita-barros/14761810

    Boa semana. E muita saúde para si e para os seus.
    Eu, esta semana, irei ter mais duas experiências no SNS - até porque não tenho alternativa. Desejo que corram tão bem como até aqui. Porque têm sido - as pessoas - extraordinárias. Dos médicos aos auxiliares.

    Perdoem-me a extensão do comentário (e os mais que prováveis erros!)

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  7. Mais uma nota a propósito(ainda que publicada num Pasquim): https://ionline.sapo.pt/artigo/674144/alexandre-lourenco-os-hospitais-nao-podem-ser-confundidos-com-reparticoes-de-financas-?seccao=Portugal

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