terça-feira, agosto 20, 2019

Sobre algumas musas. Sobre glaciares que se vão. E sobre outras coisas.





Há uma palavra em francês para uma musa distante, aquela que inspira mesmo estando longe, sendo imaterial, intangível. E já a usei aqui. Gostava muito dessa ideia, de musa distante.

Já fui musa ao perto. Poemas, canções. Eu, a deusa imarcescível, o meu corpo, as minhas mãos, o meu perfil, a minha boca, o meu cabelo, os meus olhos, o meu sorriso, o meu riso, a minha indiferença cruel -- tudo transformado em palavras. Gostava dessas palavras mas apenas quando conseguia desligá-las de mim. Se pensava que eu era aquela, não gostava.

Não gostava da responsabilidade de ser a fonte das palavras ou das notas de música sabendo que, ao mesmo tempo, na realidade, eu era outra, brava, caprichosa, rebelde, carnal, silenciosa, mulher de verdade.


Mas ser musa distante isso acho uma ideia atraente. Não ser eu mas uma longínqua imagem de mim, um reflexo, uma memória, uma miragem, isso sim, isso não traz responsabilidades, isso não impede de ser totalmente real, perecível, inconstante e imperfeita. E há uma palavra em francês para isso e eu não consigo lembrar-me de qual é. Já estive a ver sinónimos e não é nenhum deles. Sou assim, sei que há a palavra exacta e não me lembro qual. Mas, se for como noutras vezes, um dia virá até mim. Sem que eu espere, como se viesse de um planeta longínquo, chega-me a palavra pela qual tempos antes andei em demanda. 

A vida é uma bênção e uma lotaria, uma sucessão de acasos. Não sei se trazemos à nascença, impresso nas nossas células, o cronómetro que estabelece o nosso limite. Mas, mesmo que tenhamos, há o espaço de permeio e o que fazemos com ele. E eu gosto de pensar que tenho que estar sempre disponível para perceber a subtileza dos acasos, não deixar que alguns deles sigam um rumo diferente  do meu quando deles, quem sabe, poderá um dia despontar a miraculosa centelha que nasce da surpresa dos instantes.


Mas isso é outra conversa e não posso trazer assuntos e depois tratá-los como bolinhas, berlindes que se jogam para um buraquinho.

Não me alongo, pois, porque quero mostrar dois vídeos. Deixo o tema dos acasos para outro dia, para um dia mais dado a profundidades.


Começo por mostrar Sylvette, Lydia Sylvette Davis, mais tarde Lydia Corbett, a mulher do pony tail que inspirou Picasso em cerca de quarenta obras, e dizem que também Brigitte Bardot que terá pintado o cabelo de louro e passado a usar rabo de cavalo para se pôr igual a ela. Hoje Lydia tem oitenta e quatro anos, ainda mantém alguma daquela graça luminosa que Picasso soube captar e ainda lembra com ternura esses tempos em que ele a pintou e a desconstruíu de todas as maneiras possíveis e imaginárias.


A seguir mostro outra mulher, Sara Murphy. Inspirou Picasso, Hemingway e Fitzgerald. Como todas -- todas ou quase todas (sei lá) -- as mulheres inspiradoras, Sara era diferente, cultivava o insólito, divertia-se, ousava. Cativava.

Já cá não está. Apenas o seu reflexo persiste.




Mas o que me dá que pensar não é bem isso em si. Se eu reflectisse um pouco talvez conseguisse explicar. Assim, não sei como exprimir-me de forma a que faça sentido a quem não me adivinha os pensamentos, apenas me lê.

A questão é que os glaciares estão a desaparecer, o nível das águas a subir, a ameaçar devorar algumas terras, noutros pontos a terra está a estilhaçar-se tanta a secura, populações inteiras fogem e afogam-se para atingir um paraíso que não existe. E os palhaços estão a começar a chegar ao poder e, como se sabe, os palhaços não costumam ter competência para salvar planetas. Acresce que a desregulação do uso das tecnologias está a colocar-nos à beira de um perigoso abismo.


Não sei se o planeta ou o mundo tal como o conhecemos não acaba antes que as nossas células se extingam ou antes que alguém que nos conheceu ainda se lembre de nós. E não falo só em mim, falo nos meus filhos, nos filhos dos meus filhos. E pode ser que o planeta azul dure um milhão ou os mil anos que Stephen Hawking previu. Ou menos, se tudo se precipitar como se tem vindo a precipitar nos últimos tempos.

E, portanto, hoje estou nisto, balançada. Por um lado penso na finitude de tudo, das musas, da luz que emanam, dos afectos, das árvores, dos rios, da terra, e, por outro, penso no poder de eternização da arte, na infinita transcendência da beleza.

E, assim sendo, neste balancear descompensado e difícil de pôr em palavras, deixo a conversa para outro dia e passo, então, aos vídeos.






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As três primeiras fotografias são de Paolo Roversi. Das restantes não conheço a autoria.

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As entrevistas de Belô à madrinha Bethânia e ao tio Caê vêm já a seguir.

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E a todos um belo dia.
Saúde, harmonia e beleza.

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