domingo, agosto 04, 2019

E eis que já aí estão os figos de comer e chorar por mais.
E a invenção ocasional.
E um certo olhar pousado em mim.
E outras coisas.




Nos últimos dias interiorizei que a trajectória não augura nada de bom. Tenho que fazer dieta. O apetite é o eterno adversário, o maior desafio a vencer. Apetite e alguma gula também. E, provavelmente, a falta de exercício também não ajuda. Portanto, tem que ser mesmo na base da abdicação, do sacrifício. Por muito que seja adversa ao sofrimento, já assimilei que terei mesmo que sofrer. Ver uma travessa de belo arroz doce caseiro e, em vez de não lhe resistir, virar a cara para o outro lado; em vez de um suculento risotto, não senhor, três folhas de alface; em vez de um luminoso sumo de laranja, chá verde e é se queres; bolo de anos seja de quem for e por muito delicioso que se anuncie, apenas três migalhas. E isto foi o que eu pensei ao longo da transacta semana ao perceber que as blusinhas do ano passado estão a ficar indecorosamente justas, os decotes indecentemente reveladores.


Chegámos aqui ao seguir ao almoço e, depois de arrumar algumas coisas e abrir as janelas, deitei-me num sofá e foi tiro e queda. Nem deu tempo a adormecer, foi apagamento directo. Quando acordei tive a sensação de que tinha queimado a tarde, que já deveria ser tardíssimo. Tinha dormido profundamente. Contudo, ao ver as horas, percebi que, afinal, tinha dormido pouco mais que uma hora. O resultado foi que acordei fresca e pronta para ir passear. E fomos, eu de máquina fotográfica ao pescoço, feliz por degustar os cheiros e os sons e a beleza campestre deste pedaço de terra que sinto como parte de mim. 

Primeira decepção. Cachos e cachos de uvas perdidos, as uvas secas. Os calores intensos recozeram os bagos. Este ano não terei as minhas uvas tão doces. entristeci-me com isso. A natureza sabe ser cruel: anda feita animal aos coices tantos os maus tratos que sofre por parte das bestas humanas.


Caminhei, então, em direcção às figueiras, 'será que já há figuinhos bons?' e o meu marido 'ainda não é altura deles' mas eu, sempre optimista, apesar de vê-los pequenos e rijos, adentrei-me pela figueira grande que já dá aquela fresca e cheirosa sombra de que tanto gosto.


E, então, comecei a descobrir que um ou outro temporão já estavam com ar de quem queria adoçar-me a boca. Os chamados figues amuse-bouche.


Saí lá de baixo com uns quantos e, logo ali, os inaugurei. Doces, doces, ainda quase sem aquele pinguinho de mel que costuma escorrer-lhes do olhinho mas, ainda assim, felizes e doçudos. Fotografava-os e pimba, para a veia.


E foi um e outro e outro e outro. Nem sei quantos. O meu marido, que é um insuportável  desmancha-prazeres, tentou estragar o momento: 'Mas não ias começar a fazer dieta?'. Claro que não respondi, que não sou de me deixar influenciar, e continuei a manducá-los, a lambuzar-me. Carnudos, macios, brandos. Vai a casca quase toda e tudo. 

E ainda trouxe dois para comer à sobremesa. Pimbas. Mas antes fotografei-os sobre o banco azul, inteiros e inocentes, sem saberem o que os esperava. Aqui parecem pequenos porque a folha engana e, na proporção, não se lhes antevê a verdadeira dimensão. Mas a folha era grande e eles de bom tamanho. Eram. No passado. Porque já foram. Papados, I mean.


Por isso, não estranhem a minha brandura mas é que, a esta hora a que vos escrevo, com tanto figuinho, rescendo ainda mais a doçura do que habitualmente.

[Claro que, provavelmente, engordei mais uma tonelada mas, enfim, perdoa-se o mal que fazem pelo bem que sabem]


Entretanto, entre o passeio e a hora de jantar, estive na rua, repimpada na minha cadeira verde, à porta desta sala, a fotografar a luz na folhagem, o musgo dourado sobre a pedra grande, a sentir a aragem dourada na pele. E a ler A Invenção ocasional, livro que trouxe na sexta-feira da livraria para onde me esgueirei outra vez, à hora de almoço, quando, num ápice, fui dar um passeiozinho no parque.


O livro contém a colectânea das crónicas da Elena Ferrante no The Guardian. Não me deixei ainda seduzir pelas histórias da Ferrante e ainda não percebi se é porque as acho banais, se é que estou tocada pelo preconceito de serem best sellers. O que sei é que pego nos livros e, pouco tempo decorrido, os largo, desmotivada. Mas crónicas é outra coisa. Uma crónica é um sopro, um desabafo, uma lembrança, um apontamento, um quase nada. E disso eu costumo gostar quando é bem escrito e despretensioso.


E devo dizer que, quando o vi, o que me deu vontade de o trazer não foi apenas a perspectiva de ler, com calma e em português, o que tinha lido, tantas vezes apressadamente, em inglês, mas, também, a bela encadernação. Uma capa elegante, um papel espesso e macio ao toque, uma cuidada paginação, as impecáveis ilustrações que Andrea Ucin fez para cada crónica do The Guardian. Um belo objecto, este livro.

E, depois, voltei a dar mais um passeio. Gosto muito de andar e, enquanto fazia os telefonemas do dia, ia observando a dança da folhagem. Entardecia, a aragem estava mais fresca, mais agitada, a luz mais coada e mais serena.

E, então, como por vezes aqui acontece, senti-me observada. É aquela sensação que me faz sentir como que um arrepio, um leve sobressalto. Olhei em volta e dei com ele a espiar os meus movimentos, aquele olhar silencioso e quase transparente pousado em mim.


Lentamente, muito lentamente, aproximei-me. Não se mexeu. Fotografei-o. Deixou-se fotografar. Não sei o que pensa mas sei que pensa. Sei também que me aceita e fico contente por isso. São deuses? Disseram-me um dia que sim e nunca mais me esqueci. Há coisas que me dizem e que não esqueço. Aliás, há pessoas que não esqueço pelas coisas que me dizem.

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As fotografias foram feitas este sábado in heaven. Apeeceu-me estar ao som de One I Love pelo Shawn James e acabar com mais uma coreografia do meu bem-amado Jiří Kylián’s, "Return to a Strange Land".

E desejo-vos um feliz dia de domingo. 

6 comentários:

  1. Figos... mmmmm Irrecusável. Já diz o Herman, amanhã faço dieta. :))

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  2. Figos são saudáveis: têm muita fibra natural, o que ajuda em dietas para controlar o peso, e são também ricos em cálcio e potássio, que ajuda a regular a tensão arterial. Frutos sagrados na Antiguidade, para desfrutar sem inibições.

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  3. Francisco de Sousa Rodriguesagosto 04, 2019

    Não me perco por figos, mas gosto!
    E gatinho tão lindo, que olhos! Os bichos sabem muito bem que gosta deles.

    Uma rica semana!

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  4. Olá Luísa,

    Figos é coisa que rima com Algarve, não é? E pode alguém com costela algarvia resistir à doçura dos figos? Não pode, né...? Isso e o perfume das figueiras nas tardes de verão é coisa a que até parece mal virar as costas.

    Quanto à dieta, apesar do comentário do AV me ter deixado confortada, é coisa que está sempre quase a avançar. Mas é daquelas coisas que é sem stress: tenho para mim que um destes dias, em querendo, começo a jejuar, água e chá, e a coisa rebate em menos de um foguete. O drama é que esse dia está a tardar... Mas um dia será e viro uma Schiffer num abrir e fechar de olhos. Mais coisa, menos coisa, claro. :)

    Abraço, Luísa!

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  5. Olá AV,

    Como pode imaginar, fiquei toda contente com as suas palavras.

    Portanto, se engordo ou não já nem me preocupo porque, acima de tudo, está a saúde. E se os figos são saudáveis e, ainda por cima, frutos sagrados então agora é que me vou a eles com mais convicação.

    Gracias pela preciosa informação.

    Uma boa semana, AV!

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  6. Olá Francisco,

    Não se perde por figos porque ainda não provou dos que destilam mel in heaven... E há-os dourados, há-os em cor de sangue, e todos tão, tão doces...!

    Quanto ao gatinho tem aquele ar misterioso, com aquela mascarilha e aqueles olhos azuis quase transparentes, e fica a observar-me, como se intrigado. Nunca me cheguei mesmo ao pé dele nem sei se ele isso deixaria. E vão aparecendo e desaparecendo. Agora não tenho visto o branquinho nem o cor de mel. Mas gosto deles assim, vadios, curiosos.

    Abraço, Francisco, e uma bela semana para si!

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