terça-feira, agosto 06, 2019

Como definir o que não pode ser dito?


[No seguimento de A oradora-surpresa]

Como prosseguir esta narrativa sem abrir demasiado o jogo? 

Não pensei ainda bem nisso. Só sei que tenho que ter alguma cautela. Costumo escrever sem pensar muito mas agora, pela sensibilidade do tema, não pode ser bem assim. A ver se consigo ou se, chegada a certo ponto, terei que interromper. Logo se vê. Se interromper, interrompo e só vos peço que não estranhem.

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Quando saí da conferência, já no carro, avisei a Clara que tinha dado o seu contacto ao Manuel. E escuso de dizer que os nomes deles não são estes. A Clara riu, 'Boa!', e eu também.

Mal tinha eu acabado de desligar, eis que chega uma chamada do Manuel.
‘Oi, Manel, então? Que é que conta?’
E ele a disfarçar (são tão imaturos, os homens): ‘Interessante, não foi? Temas oportunos… O que achou?' 
E eu: 'Gostei. Também achei interessante: um dia bem passado e algumas novidades. Mas vamos ver o que dizem os resultados do inquérito aos participantes.'
E ele, como se esse não fosse o tema do telefonema: 'E aquela doutora trouxe uma visão nova. Quem é que terá tido a ideia de a convidar?’  
E eu: ‘Concordo: a beldade que, pelos vistos, deixou os homens de cabeça à roda, é boa naquilo. Agora como é que ali foi parar não faço ideia, só sei que me pediram para acertar com ela alguns aspectos logísticos e, se quer que lhe diga, nem sei bem porque me pediram a mim, na volta, por ela ser mulher, aquelas cabecinhas pensadoras acharam que combinações com mulheres têm que ser feitas por mulheres. Enfim, é o que é... Mas, olhe, por sinal, até acabou por não me custar nada, achei-a, de facto, bem simpática.’ 
E ele, como quem não quer a coisa: ‘Ok. Olhe, estava aqui a pensar, não seria de lhe dar um toque a dizer que me deu o contacto dela para, caso eu, um dia destes, resolver ligar, ela não estranhar?’  
E eu: ‘Sim, está bem, eu dou um toque, na boa, fique descansado.’  
E ele, a disfarçar: ‘É que há várias coisas que ela ali disse que parece que se aplicam um bocado às minhas andanças, na volta ainda preciso é de algumas explicações…’ e sorriu fingindo que aquilo era uma graça, como se, de facto, o que quisesse fosse apenas conhecê-la melhor e estivesse a fingir que era outra coisa.  
E eu a pensar: 'Está bem, está, dança que o teu dançar tem graça'
O caso é que ele anda em negociações que envolvem empresários de outro país e não só o sector é crítico como tudo o que se relacione com esse tal outro país -- como dizê-lo? -- deve ser tratado com pinças.

Dias depois, encontrei-me com ela, casualmente, num pequeno restaurante de uma grande superfície. Mostrámo-nos surpreendidas com o encontro fortuito e logo ali, enquanto almoçávamos, mostrámos uma à outra o que tínhamos comprado nos saldos. Duas conhecidas que se encontram por mero acaso e mostram os seus bons achados. Banal.


E, entretanto, pusemos a conversa em dia. Naturalmente falámos por meias palavras e em voz baixa, mantendo o tom solto de quem troca informações sobre blusinhas, perfumes, pechinchas.
Diz-me ela: ‘Olha, sabes?, confirmei a nossa intuição. Cá para mim ele está mesmo na mão de alguém. Não tenho ainda provas... mas, olha, não devem tardar. No meio de piadas e veladíssimos piropos, e, olha lá, o tipo até tem graça, veio com conversas vagas, pediu conselhos abstractos, tudo a fingir que não era com ele, sempre como quem não quer a coisa, sempre que era para o caso de alguma vez vir a acontecer uma coisa a alguém, frisando que era informação geral para um just in case, sempre tudo intercalado com gracinhas charmosas, tudo meio a brincar. Ou seja, embora disfarçando, fazendo-se de descontraído e até a fingir que estava a fazer um charminho, cá para mim é uma questão de tempo até eu perceber o que se está a passar.' 
Sorri. Conheço a peça.
Certeira, ela continuou: 'Conta-me lá outra vez: como é que ele é? Com a mania que é engatatão?’ 
Reavivei-lhe a informação: ‘Viaja muito. É rara a semana em que não sai. Tenho-o por desconfiado e reservado. Geralmente meticuloso. Gosta de analisar ao detalhe o que tem em mãos. E não é pessoa que alardeie conquistas ou feitos. Faz-se, até, de humilde, gosta de se fazer passar por alguém que não tem ‘manha’. Mas também tem fama de não saber ceder a flausina que se lhe insinue. Contam-se-lhe alguns namoricos, já sabes, nestas coisas não é fácil distinguir o que é do que parece.’  
Ela não se admirou, ficou por um instante a pensar e depois concluiu: ‘Digo-te: são um perigo, tipos assim.’  
Confirmei: ‘Os piores’. 
Ela quis ainda saber: ‘E domina os gadgets ou é só fogo de vista?’ 
Fiquei na dúvida: ‘O que não faltam são outros mais info-excluídos que ele. Por isso, por aí não é dos piores. Mas, na verdade, acho que se limita a usar o básico e dificilmente tem entendimento para muito mais. Agora, como deves ter reparado, é só do bom e do melhor. E tem, por exemplo, uma coisa que não aprende nem por mais uma. Mas isso é ele e acho que quase todos os outros: tem que estar sempre ‘ligado’ porque se não vir os mails durante mais do que o tempo de voo, receia que as empresas se afundem’. E encolhi os ombros. Há causas perdidas.  
Ela também. ‘Típico.’
Depois combinámos algumas coisas mas naquela nossa forma, que só nós entendemos, e despedimo-nos da mesma forma alegre e descontraída com que nos tínhamos encontrado.

Nessa tarde, acidentalmente, cruzei-me com o Manel no escritório.
Ele, como quem não quer a coisa: 'Simpática, aquela doutora... Como é que ela se chama...?' 
'Quem?', fiz-me eu de sonsa.  
'Aquela que foi à conferência...' 
'Ah, a Drª Clara. Sim, também me pareceu. Já falou com ela?' 
E ele, blasé mas sem conseguir esconder a hesitação: 'Sim... Batemos umas bolas... nada de especial. Mas por acaso até acho que tenho alguma coisa a aprender com ela. Tenho estado a pensar e estou capaz de a convidar a dar um salto até aqui... O que acha? Acha que ela está para isso...?' 
Fiz-me eu de 'nem aí': 'Ah, isso não faço ideia. Não sei se ela dá explicações ao domicílio... Em que contexto lhe pediria isso?' 
Aí ele hesitou. 'Pois, essa é a minha dúvida. Mas se calhar até podíamos contratá-la. Porque não...? O que acha...?'  
Continuei a fazer-me de desinteressada no assunto: 'Sim, talvez. Porque não? Ausculte-a. Logo vê.'
E assim ficámos.

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[E a ver vamos se haverá continuação]

Talvez um dia destes explique porque estou a usar fotografias da Isabelle Huppert como Clara

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