Há algum tempo recebi a visita de uma ex-colega que não via há algum tempo. Quase tive um choque. Mantinha a mesma maneira de se pentear e de se vestir mas tinha engordado, o rosto tinha papos por todo o lado, a pele estava baça e disfarçada com base, num colorido artificial. O cabelo estava também sem vida apesar do tom avivado. No conjunto, estava uma caricatura do que tinha sido.
Quando uma outra colega entrou na sala em que estávamos, não a reconheceu. Tive que fazer de conta que ela estava distraída: 'Então, sempre acelerada, nem repara na Drª Ana que aqui veio visitar-nos...?'. Pela reacção, quase um sobressalto, percebi que estava a ter a mesma involuntária impressão. Ao fim do dia, quando pude comentar com esta última, ainda não me tinha restabelecido: 'Já viu como ela está...? Tive que me esforçar para não deixar transparecer a surpresa que estava a sentir'. E ela: 'Nem me diga nada... tive que disfarçar...' E eu: 'Mas o que é? Está mais gorda...? Viu os papos? Quase parece desfigurada...' E ela: 'O que é? É simples: são 10 anos a mais. E acha que nós estamos iguais ao que éramos há dez anos...?' Acho que já não respondi. Devo ter ficado apreensiva, senão mesmo um bocado triste.
Tendo trabalhado em várias empresas e passado por fusões e cisões, tem sido frequente perder de vista muitas pessoas e, passados alguns anos, calhar a encontrá-las. E há uma interjeição recorrente quando me vêem: 'Ah... mas está igual...' ao que geralmente respondo: 'Olhe que não, olhe que não... capaz é de estar a precisar de óculos, não...?'. Racional como sou, não me deixo levar pois, a ser verdade, ainda estava com cara de dez anos.
Creio que já contei que, num dos últimos enterros a que fui, dei de caras com um homem que conheci na minha infância. Ele estava com uma mulher que não reconheci como sendo a mulher dele até porque estava certa de que ela tinha morrido. 'Não me estás a conhecer, pois não...?', disse-me ele. E eu, atónita, a achar que não podia ser, o senhor não podia estar quase igual ao que era umas décadas atrás, apenas um bocado mais velho. Não arrisquei: 'Acho que sim, que conheço mas não estou bem a ver quem...', até porque tinha até ideia de a minha mãe, em tempos, me ter dito que o senhor também tinha morrido. Então ele disse-me o nome e eu só não me deixei cair para trás porque já aprendi a disfarçar quando levo um murro no estômago. Era o meu grande e insubstituível amigo, o meu primeiro amor, minha companhia de brincadeiras e longas conversas -- até ter ido cada um para seu lado. Fiquei sem acção. E ele: 'Pois eu conheci-te logo, estás igual, o mesmo sorriso.' E eu muda, provavelmente o mesmo sorriso pasmado no rosto. Depois apresentou a senhora, era a mulher. E ela disse: 'Toda a vida ouvi falar de si'. E eu, em estado de estupor catatónico, incapaz de retribuir a simpatia. Só me ocorria que a senhora parecia capaz de ser minha mãe, que não podia ser a mulher do meu amigo de infância e que ele não podia estar transformado naquele homem enorme, encorpado, ar pesado e olhar triste. Quando comentei com a minha mãe, ela contou-me que ele tinha saído do banco onde tinha um cargo dirigente, tinha tido uma depressão, vivia agora toda a semana numa quinta, que estava transformado num homem do campo. Ao fim de semana, vinha à cidade ou a mulher ia ter com ele ao campo. E senti alguma tristeza. Já aqui falei muitas vezes desse meu grande amigo. Sempre foi reservado, tímido. De uma inteligência invulgar, chegou a receber o prémio do melhor aluno do país, coisa que soube pelos meus pais e não por ele. Eu era então provocadora, gostava de fazê-lo sofrer, fingia que não gostava dele, fingia que preferia os outros meninos, desafiava-o para fazer coisas que ele não gostava de fazer mas que se sentia compelido para não me contrariar. Mas, na verdade, eu não conseguia passar sem ele. Andávamos sempre juntos. Eu conversava, sonhava alto, fazia-o viajar nas minhas palavras e ele, calado, sorridente, nunca me contrariava. Nunca, nunca. Tinha uma paciência incrível e eu, embora nunca lhe dissesse, sentia-me agradecida por poder contar com ele.
Creio que já contei que, num dos últimos enterros a que fui, dei de caras com um homem que conheci na minha infância. Ele estava com uma mulher que não reconheci como sendo a mulher dele até porque estava certa de que ela tinha morrido. 'Não me estás a conhecer, pois não...?', disse-me ele. E eu, atónita, a achar que não podia ser, o senhor não podia estar quase igual ao que era umas décadas atrás, apenas um bocado mais velho. Não arrisquei: 'Acho que sim, que conheço mas não estou bem a ver quem...', até porque tinha até ideia de a minha mãe, em tempos, me ter dito que o senhor também tinha morrido. Então ele disse-me o nome e eu só não me deixei cair para trás porque já aprendi a disfarçar quando levo um murro no estômago. Era o meu grande e insubstituível amigo, o meu primeiro amor, minha companhia de brincadeiras e longas conversas -- até ter ido cada um para seu lado. Fiquei sem acção. E ele: 'Pois eu conheci-te logo, estás igual, o mesmo sorriso.' E eu muda, provavelmente o mesmo sorriso pasmado no rosto. Depois apresentou a senhora, era a mulher. E ela disse: 'Toda a vida ouvi falar de si'. E eu, em estado de estupor catatónico, incapaz de retribuir a simpatia. Só me ocorria que a senhora parecia capaz de ser minha mãe, que não podia ser a mulher do meu amigo de infância e que ele não podia estar transformado naquele homem enorme, encorpado, ar pesado e olhar triste. Quando comentei com a minha mãe, ela contou-me que ele tinha saído do banco onde tinha um cargo dirigente, tinha tido uma depressão, vivia agora toda a semana numa quinta, que estava transformado num homem do campo. Ao fim de semana, vinha à cidade ou a mulher ia ter com ele ao campo. E senti alguma tristeza. Já aqui falei muitas vezes desse meu grande amigo. Sempre foi reservado, tímido. De uma inteligência invulgar, chegou a receber o prémio do melhor aluno do país, coisa que soube pelos meus pais e não por ele. Eu era então provocadora, gostava de fazê-lo sofrer, fingia que não gostava dele, fingia que preferia os outros meninos, desafiava-o para fazer coisas que ele não gostava de fazer mas que se sentia compelido para não me contrariar. Mas, na verdade, eu não conseguia passar sem ele. Andávamos sempre juntos. Eu conversava, sonhava alto, fazia-o viajar nas minhas palavras e ele, calado, sorridente, nunca me contrariava. Nunca, nunca. Tinha uma paciência incrível e eu, embora nunca lhe dissesse, sentia-me agradecida por poder contar com ele.
Não suportou o peso da vida na cidade e a sede daquele grande banco que fervilhava com centenas de pessoas, aquele ambiente, aquela pressão, foram-lhe insuportáveis. Aguentou talvez uns trinta anos e depois refugiou-se no campo.
Mas isto para dizer que o tempo passa inexoravelmente sobre nós. Sorte a de quem lhe sobrevive.
Quando aqueles que achamos muito belos morrem na flor da idade, lamentamos muito e guardamos deles a imagem da sua eterna juventude. Habitam a nossa memória (e agora habitam também o infinito repositório da net), cristalizados, iguais ao que eram quando a sua beleza impressionava quem os via.
E eu, ao olhar o belo rosto de Sharon Stone, que está viva e bem viva, e ao ver como as pálpebras tombam e o cabelo embranquece e como o seu corpo tentador hoje se encobre para lamentar o afastamento a que se viu votada, sinto pena -- o tempo é ingrato e mau. Ou não é o tempo, são as pessoas. Ingratas e más. E, no entanto, que bonita que ela é e que bem que está e que sorte teve ao escapar, sem sequelas, a esse inferno que é um maldito AVC. E que solidariedade, cá muito minha, sinto ao pensar no que ela deve ter sofrido ao ver-se sem falar, sem andar, totalmente dependente, a ter que reaprender tudo, a força necessária, a coragem, a superação do medo e do desgosto. Tão difícil tudo.
Penso no meu pai. Tão bem que estava, tão saudável, tão orgulhoso que sempre foi e, no entanto, um dia viu-se inerte, apenas com metade do campo de visão, sem orientação, sem força num braço, sem andar, de fraldas, a ter que ser alimentado à boca, a ter que ser lavado, a ter que depender de outros para tudo.
Felizmente ela conseguiu ultrapassar tudo: está bem, saudável, inteira.
Mas queixa-se que a esqueceram, que deixaram de lhe dar trabalho. O cinema queria-a como mulher sensual, maliciosa, enérgica, intimidantemente tentadora, não como uma mulher de meia idade que, em tempos, foi isso tudo e que agora perdeu o viço. Como deve ter sido difícil para ela esforçar-se por recuperar, sentir que estava de novo a reconquistar a plenitude das suas facultadas e, ainda assim, sentir-se rejeitada. Uma coisa horrível.
Quando agora fiz anos perguntei aos meninos se sabiam quantos anos eu tinha feito. Não sabiam, atiravam números à sorte, uns para cima, outros para baixo, e eu esclarecia-os dizendo que tinha cem anos. Desatavam a rir, que era impossível. E eu, muito séria, dizia que era mesmo. Cem anos. Riam, perguntavam aos pais. Mas eu, no meu íntimo, antecipava o prazer de viver cem anos e ainda estar para as curvas, com vontade de brincar e de rir, com vontade de seduzir, de provocar, com vontade de me pôr a caminho.
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A segunda vida de Sharon Stone
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Isabella Rossellini, Jack Nicholson e Jennifer Lawrence aparecem aqui sob o efeito de uma outra app, desta feita uma que converte as pessoas em pinturas de antanho. Por acaso, se não me importasse de oferecer o meu rosto a estranhos, gostava de me ver nesta.
A Lady Di, a Marilyn Monroe, o Brad Pitt, o Putin, o Trump, o Zuckerberg e outro que não sei quem é foram envelhecidos pela FaceApp e nesta é que eu não me meto. Livra.
A Sharon Stone, na fotografia, está como é agora e como era antes, sem inteligência artificial à mistura.
Crossroads pelo Don McLean, que eu não conhecia e que é tão bonita, está aqui porque estou a gostar imenso de ouvir. Acho-a triste, triste, mas não consigo deixar de ouvir.
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Tenho andado a tentar reavivar o meu Ginjal e Lisboa, a love affair pelo que, se estiverem para aí virados, serão muito bem vindos nesse meu lugar à beira Tejo plantado. Hoje tenho: E o seu nome seja o seu próprio pudor sobre poema de António Ramos Rosa ao som de Divna Ljubojević. E eu gostava muito que gostassem de lá estar.
[E desculpem por, nos últimos dias, não ter respondido a comentários ou mails mas, acreditem, o meu tempo não dá para mais. Hoje respondi, ou melhor, coloquei uma pergunta porque era um único comentário e a minha pergunta era simples. Mas leio sempre (e fico sempre com um sentimento de culpa por achar que parece pouco educado por não retribuir a simpatia de quem por aqui passa mas ponho-me a escrever posts e quando dou por ela são quase horas de me levantar)]
Pessoas e coisas têm características próprias que os nossos olhos (e os nossos conceitos) acham belos ou feios. A beleza está nos olhos de quem vê, segundo os gregos antigos...
ResponderEliminarEm matéria de beleza,há juizos permanentes que pouco se alteram com o tempo,mas não esqueço que até as pedras se dissolvem no ar...,Marx dixit! E quase sempre a patine da idade acaba por conceder mais profundidade,realismo,beleza caramba!,às coisas. Veja-se a fotografia acima de Diana envelhecida (?),muito mais viva e interessante que a Diana deslumbrante de Juventude.E o mesmo se passa com a Sharon Stone,aos meus olhos!
E com as coisas,só a ultima novidade é bonita?
Um grande abraço. Tenho estado muito de acordo consigo.
Olá Abraham,
ResponderEliminarOs gregos antigos diziam isso? Sabiam muito, eles. Pena serem tão dados aos dramalhões...
E o Marx disse que as pedras se dissolvem no ar...? Sério? Estou aqui a pensar que pedras serão essas... :)
E gracias pela simpatia das palavras. A patine embeleza as coisas, sim.
Abraço e um dia feliz para si.