Por vezes abre-se-me um pouco de porta do que aí vem, nesga ligeira, e nunca como agora intuo terríveis tempos de incerteza envoltos em medos provindos de incertos. Uma nebulosa a envolver-nos, riscos vários, muitos, indefinidos, quase imateriais.
Volto aqui a recordar os delírios quando criança com amigdalite. Anginas, ouvia dizer. A febre subia, subia e eu a ferver, transpirada, gritava apavorada. Os meus pais à minha volta e eu aterrorizada. Estava perante um compartimento, a divisão de uma casa, cheia até ao tecto de coisas indefinidas, pequeninas, e eu a ter que descobrir uma coisa ainda mais pequenina, ainda mais indefinida, a saber que era impossível, que não teria tempo para encontrar aquilo que era tão vital. Esse terror, essa situação impossível de resolver, toda essa angústia ficou guardada na minha memória: a impotência da luta contra uma infinidade de incertos.
Depois de uma reunião a analisar situações complexas e a antever um cenário impossível de controlar, ia no carro e, na rádio, transmitiam, em directo da Assembleia, o debate quinzenal. As pequenas questões. Os casos pontuais. Os deputados vivem numa bolha de fantasia, alheados das questões de fundo, apenas pegando nas notícias que dão que falar mas apenas durante um ou dois dias, coisa morta à partida pela irrrelevância, a petite histoire, o déjà-vu do cão que morde o dono ou, nos dias bons, o dono que morde o cão. Não passa disso.
Não há um deputado que se erga naquele hemiciclo e pergunte:
E se, de facto, estamos a caminho de ficar indefesos, totalmente indefesos, pequenos insectos presos numa teia infinita?
E não quero ser mais específica. Não posso. Não devo.
Mas... e se...?
Quantas vezes aqui digo: há que estar atento aos riscos, há que chamar a atenção, alertar, regulamentar, quantas vezes?
Mas ninguém me ouve. Não sou ninguém. Sou invisível. Existo para ver e ouvir, não para ser vista ou ouvida. E este meu lugar é nada, palavrinhas à toa, coisas avulsas e sem nexo. Não tenho púlpito nem rosto ou nome e assim é que está bem. Mas gostava que, entre as linhas, no subtexto, alguém percebesse que há preocupações que são sérias. Não são preocupações só nossas, do pequeno rectângulo, são do mundo, do mundo que está a ser conduzido não se sabe para onde nem por quem -- mas não é por nós, por gente como nós. Ou, se calhar, até é: nós agentes involuntários da nosso encarceramento.
Mas ninguém me ouve. Não sou ninguém. Sou invisível. Existo para ver e ouvir, não para ser vista ou ouvida. E este meu lugar é nada, palavrinhas à toa, coisas avulsas e sem nexo. Não tenho púlpito nem rosto ou nome e assim é que está bem. Mas gostava que, entre as linhas, no subtexto, alguém percebesse que há preocupações que são sérias. Não são preocupações só nossas, do pequeno rectângulo, são do mundo, do mundo que está a ser conduzido não se sabe para onde nem por quem -- mas não é por nós, por gente como nós. Ou, se calhar, até é: nós agentes involuntários da nosso encarceramento.
E, não querendo dizer mais nada -- mas estando precisada --, deito mão a outro antídoto.
fecho os olhos e imagino. Crianças brincando no quintal, roupa estendida ao vento, a cigarra, o grilo alegrando os campos, o cão ladrando ao longe. Calor e sol, reflexos azuis dos mares a sul, areia quente, conchas em que se ouve o mar, veleiros que deslizam na ténue e cintilante linha do horizonte, homens de pele tisnada e beijos com sabor a sol, pestanas levemente brancas de sal, marisco com sabor a maresia, um braço em volta da nossa cintura, uma cama fresca com lençóis brancos. Ideias felizes a alegrar o pensamento.
fecho os olhos e imagino. Crianças brincando no quintal, roupa estendida ao vento, a cigarra, o grilo alegrando os campos, o cão ladrando ao longe. Calor e sol, reflexos azuis dos mares a sul, areia quente, conchas em que se ouve o mar, veleiros que deslizam na ténue e cintilante linha do horizonte, homens de pele tisnada e beijos com sabor a sol, pestanas levemente brancas de sal, marisco com sabor a maresia, um braço em volta da nossa cintura, uma cama fresca com lençóis brancos. Ideias felizes a alegrar o pensamento.
E dança. Voo suave, brincadeira, sedução, irreverência. Memória do mediterrâneo a fechar um dia longo e sem definição.
As fotografias são de Guy Bourdin
E abaixo há outro antídoto. Para quem esteja tão precisado como eu.
[E que me desculpe quem comentou mas hoje estou outra vez naqueles dias em que certas contingências me impedem de responder]
Havia uma deputada: a Natália Correia. Ontem estive lá na AR mas na biblioteca e falou-se do modo como correram com ela de todas as listas partidárias.
ResponderEliminar~CC~
Rica UJM,
ResponderEliminarEsta semana andei de roda dos "papeis" para submeter o projeto de doutoramento. Finalmente, submeti-o há um bocado e está paga a taxa de candidatura.
Agora também já estou nos meus antídotos.
Um belo fim-de-semana.
Olá ~CC~
ResponderEliminarSim, a Natália era menina para se levantar e dizer das boas. Mulher de fibra, raçuda, tonitruante. O País não estava preparado para uma mulher assim. Talvez hoje continuasse a não estar.
Somos pouco dados a pessoas de convicções, é da nossa natureza. Pior: somos pouco dados a rasgar o véu e a ver o que há para lá dele, ou debaixo dele. Preferimos falar do que toda a gente fala. Somos mais dados a pastar em rebanho do que a altos voos. Isto em geral, claro. Há excepções (como a Natália)...
Um bom Dia de Portugal, ~CC~
Olá Francisco,
ResponderEliminarEntão, vencida essa etapa, já está na fase de poder receber os parabéns ou devo ainda esperar que haja discussão? O ter pago a taxa já dá direito ao título de Doutor? Ou só daqui por algum tempo?
Seja como for, parabéns por ter acabado essa fase já os pode receber pelo que daqui, embrulhados num abraço, lhos envio.
E descanse e descontraia e goze o alívio de já ter cumprido tão importante objectivo.
E um bom dia feriado.