Já aqui contei que, quando concluí o bacharelato, fui dar aulas no Secundário. Não sei se ainda há esse grau, de bacharelato. Tenho ideia que agora esses três primeiros anos correspondem à licenciatura. Na altura, a licenciatura obtinha-se ao fim de cinco anos lectivos. Pelo menos, no meu caso foi. Mas, então, mal acabei o bacharelato, como era habilitação própria, concorri para dar aulas e fui colocada na escola que, no concurso, tinha posto em primeiro lugar, escola que desconhecia, num lugar que também desconhecia. Tinham-me dito que era rapidíssimo lá chegar, que havia horários bons, completos, e isso para mim chegou. Percebi depois de lá estar que era uma escola especial num lugar especial. E claro que todas as escolas e lugares são especiais mas, nisso como em tudo, cada coisa é especial à sua maneira,
Tinha alunos quase da minha idade. Um deles, um gabiru simpático e divertido que assumiu a minha protecção, tinha apenas menos um ano que eu.
Nessa altura eu era, pois, uma jovem adolescente que tinha acabado de fazer vinte anos e que entrava naquilo na maior inocência e em total desconhecimento do meio. Usava cabelo muito curtinho, vestidinhos leves ou calças com tshirts justinhas, brincos por vezes arrojados. Ousava sem pruridos e sentia-me sempre bem. Embora ainda estudasse (para concluir a licenciatura), não me queixava nem um bocado da minha vida. Tinha tempo para preparar as aulas e para corrigir os testes, para estudar, para ir ao cinema e ao teatro, para namorar, para passear, para estar com amigos, para ler. Não havia telemóveis nem internet, não tinha carro, mas nada disso me deveria fazer falta pois a vida não me era pesada. Tudo fluía na maior naturalidade. Não sei como fazia mas a verdade é que não me lembro de correr ou de andar cansada.
Contudo, apesar de ser aquela menina descontraída e bem disposta, na sala de aula levava o ensino muito a sério.
Gostando muito da matéria que ensinava, queria que os alunos percebessem a sua beleza e a sua utilidade. Contudo, via-me confrontada com salas cheias de jovens insubordinados que, de forma geral, achavam que não valia a pena esforçarem-se porque, axiomaticamente, a matéria era de dificuldade estratosférica. Acresce que eu dava o 11º ano e eles, nos anos anteriores, não sei o que tinham andado a fazer pois, na maioria, não sabiam nada de nada. Bases nenhumas, conceitos elementares zero. Uma frustração. Por cada coisa que eu queria ensinar, tinha que recuar para explicar o b-a-ba.
Gostando muito da matéria que ensinava, queria que os alunos percebessem a sua beleza e a sua utilidade. Contudo, via-me confrontada com salas cheias de jovens insubordinados que, de forma geral, achavam que não valia a pena esforçarem-se porque, axiomaticamente, a matéria era de dificuldade estratosférica. Acresce que eu dava o 11º ano e eles, nos anos anteriores, não sei o que tinham andado a fazer pois, na maioria, não sabiam nada de nada. Bases nenhumas, conceitos elementares zero. Uma frustração. Por cada coisa que eu queria ensinar, tinha que recuar para explicar o b-a-ba.
Acresce que uns drogavam-se, outros bebiam, outros riam-se dos restantes, e quase nenhum queria saber daquilo que eu ensinava nem tinham sequer preocupação em poder ter negativa.
Mas, como disse, eu levava aquilo mesmo a sério e, portante, não vacilava. Insistia, persistia, não desistia.
A minha voz, que é o que sabe, funciona bem no registo normal ou baixo. Se tenho que gritar, coisa que detesto, dá-me tosse. E, se grito por estar zangada e me dá um ataque de tosse, de seguida dá-me um ataque de riso por perceber a inconsequência e o ridículo da minha manifestação de desagrado. E, se havia motivo para me zangar e, a seguir, me desatava a rir, está claro que o respeitinho se ia imediatamente. Às tantas estava toda a gente a rir.
Acabaram por me respeitar, alguns acabaram por gostar da matéria. E eu gostava mesmo deles, fossem ou não casos problemáticos. Mas era uma luta diária.
E, por causa disso, apanhei várias faringites. Não tinha por hábito levar uma garrafa de água para a sala. Aliás, nem sei se, na altura, era costume andar-se com garrafinhas de água -- acho que não, não me lembro. Ficava, pois, com a garganta seca, não só de explicar a matéria mas também de mandá-los estar calados, esforçar a voz e, ainda por cima, porque parte da aula era passada a escrever a giz no quadro. Aquele pó era a cereja em cima do bolo nos estragos nas minhas cordas vocais.
Acabaram por me respeitar, alguns acabaram por gostar da matéria. E eu gostava mesmo deles, fossem ou não casos problemáticos. Mas era uma luta diária.
E, por causa disso, apanhei várias faringites. Não tinha por hábito levar uma garrafa de água para a sala. Aliás, nem sei se, na altura, era costume andar-se com garrafinhas de água -- acho que não, não me lembro. Ficava, pois, com a garganta seca, não só de explicar a matéria mas também de mandá-los estar calados, esforçar a voz e, ainda por cima, porque parte da aula era passada a escrever a giz no quadro. Aquele pó era a cereja em cima do bolo nos estragos nas minhas cordas vocais.
Na altura, também usava lentes de contacto. Antes, andei mais de um mês na clínica a ver filmes em que a única coisa que aparecia era gente de todas as idades a pôr e tirar lentes numa tentativa de que, pelo exemplo, eu aprendesse a colocá-las pois, mal aproximava o dedo, involuntariamente fechava o olho e não conseguia colocá-las. Desesperava. Toda a gente me dizia que era nas calmas e os filmes assim o evidenciavam. Mas eu não conseguia.
Mas quando, finalmente, atinei tornei-me inseparável delas. Na altura, tudo era utilizável até ao limite desde que houvesse cuidado. Todas as noites, seguindo as indicações da clínica, colocava-os num estojinho com soro (acho que era soro), hermeticamente fechado, e o estojinho dentro de uma panelinha ao lume, com água a ferver. Volta e meia esquecia-me da panelinha ao lume, a água quase se evaporava e o estojinho deformava-se mais um pouco. Mas eu não me queixava do método de esterilização, queixava-me era de ser tão cabeça no ar. Mas não era queixa sentida pois pouco tempo depois acontecia o mesmo. Por fim, o estojo já mais parecia uma coisa informe cuja tampa já não fechava bem.
Usar óculos de ver -- sem serem de sol -- é que eu não usava nem por mais uma. Quer na faculdade, em que as salas eram grandes, quer na escola em que dava aulas, não podia estar sem ver bem. A miopia era fraca mas, enquanto aluna, era o suficiente para ver tudo desfocado para o quadro ou, enquanto professora, estando eu junto a ele, para não ver bem as patifarias que os meus alunos das últimas filas preparavam ou o copianço em dia de teste.
Mas quando, finalmente, atinei tornei-me inseparável delas. Na altura, tudo era utilizável até ao limite desde que houvesse cuidado. Todas as noites, seguindo as indicações da clínica, colocava-os num estojinho com soro (acho que era soro), hermeticamente fechado, e o estojinho dentro de uma panelinha ao lume, com água a ferver. Volta e meia esquecia-me da panelinha ao lume, a água quase se evaporava e o estojinho deformava-se mais um pouco. Mas eu não me queixava do método de esterilização, queixava-me era de ser tão cabeça no ar. Mas não era queixa sentida pois pouco tempo depois acontecia o mesmo. Por fim, o estojo já mais parecia uma coisa informe cuja tampa já não fechava bem.
Usar óculos de ver -- sem serem de sol -- é que eu não usava nem por mais uma. Quer na faculdade, em que as salas eram grandes, quer na escola em que dava aulas, não podia estar sem ver bem. A miopia era fraca mas, enquanto aluna, era o suficiente para ver tudo desfocado para o quadro ou, enquanto professora, estando eu junto a ele, para não ver bem as patifarias que os meus alunos das últimas filas preparavam ou o copianço em dia de teste.
Acontece que o pó do giz não era lesivo apenas para as cordas vocais: era péssimo também para as lentes de contacto. De cada vez que eu apagava o quadro, sentia picadas nos olhos. Aguentei firme, claro. Náo podia esfregar senão picava ainda mais, ficaria a escorrer lágrimas. Por isso, era como se nada se passasse mas só eu sei o que me custava. A estética levava sempre a melhor sobre o conforto. Suportei isso durante os anos em que dei aulas. Mas, na verdade, para mim, aquilo era coisa sem importância. Chegava a casa, tirava as lentes, lavava-as, punha-as a ferver. E, para a garganta, chupava rebuçados de mel, de eucalipto.
E agora, tantos anos depois, vejo no vídeo abaixo que há estes paus de giz maravilhosos que permitem uma escrita limpinha, elegante, desempoeirada, e percebo como teria sido bom que tivesse podido usá-los naqueles anos em que fui professora. Vêm do Japão, dão pelo nome de Hagoromo e dizem deles que são feitas de lágrimas de anjo.
Um vídeo muito bonito, que me fez lembrar esses longínquos anos.
Um vídeo muito bonito, que me fez lembrar esses longínquos anos.
Why the World’s Best Mathematicians Are Hoarding Chalk
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Lá em cima é Angêle que, na abertura do Festival de Cannes, evoca M. Legrand e Agnes Varda
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E uma bela sexta-feira para todos.
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Alô, UJM,
ResponderEliminarDo leito da gripe e de tornezelo torcido, enrolado de gelo, enquanto tento responder a emails de trabalho para não perder um prazo que termina 2a feira, este vídeo coloco-me um sorriso no rosto.
Nas salas pequenas já só há quadros brancos, onde se escreve com canetas próprias. Nas salas grandes e anfiteatros, ainda quadros de giz. Maus quadros, mau giz. Uma poeira da desenfreada. O pior: raros são os colegas que apagam o quadro depois de o usarem. Ora, eu pouco uso o quadro, um esquema ou outro de mês a mês. Mas essa falta de cuidado, esse achar que se pode usar uma coisa e deixar para os que a vão usar a seguir o trabalho de a limpar, do género "queres usar, limpa primeiro a porcaria que fiz", tudo isso me arrelia. Então a primeira coisa que faço é limpar o quadro. Os ataques de tosse vão-se tornando piores à medida que o quadro parace que se vai tornando uma esponja de pó. Sendo que a esponja propriamente dita, a de limpar o quadro, não é limpa há anos e só espalha, não absorve.
Já no secundário, e antes ainda, havia professores que não limpavam o quadro no fim da aula. Então, às vezes, quando calhava voltar mais cedo do recreio, antes de o professor seguinte entrar na sala, limpava o quadro. Uma vez, um professor entrou e apanhou-me em "flagrante delito". Olhou para mim com ar desconfiado. "O que estás a fazer?" "Estava só a apagar o quadro." "Andaram a escrever no quadro, hã?" Uma colega minha, que tinha entrado mais cedo comigo, entre o rir-se e o zangar-se comigo por nos meter em sarilhos. "Vá, isso nem parece teu, vamos lá a sentar," diz-me o professor. Lá fui, calada: a última coisa que queria era falar no outro professor, um medo infantil de represálias.
Há coisas que nunca mudam.
Abraço
JV
Olá JV!
ResponderEliminarIsso da gripe e do tornozelo é que é pior. Para a gripe, experimente o ceterizina, 1 por dia à noite. Se for como eu, fica pedrada, a dormir sem parar. Mas ao fim de dois ou três dias está boa. Isso e beber líquidos.
Agora o tornozelo... Andou a fazer salto em altura? Em comprimento? A saltar à corda? Ou foi um desconjuntanço de cima de uma sapatinho alto?
Estou a brincar mas sei como isso dói. É estar com ele elevado, com gelo como tem feito. E ter paciência.
Aproveite para ler, para dormir, para descansar a cabeça. Claro que o trabalho para segunda tem que ser mas, tirando isso, relax... Pretexto bom como este tão cedo é capaz de não haver...
Eu ainda agora, na empresa, onde há quadros brancos onde a gente escreve com canetas (coisa à qual falta aquele toque vintage da ardósia e do pau de giz), tento sempre não me esquecer de apagar. Mas, no outro dia, cheguei lá e estava o quadro com informação do mais reservada que há. Alguém tinha estado com consultores a explicar a estratégia e, no fim, com tanto NDA que se faz para tudo e mais alguma coisa, ali estava tudo exposto para quem quisesse ver. Uma graça.
Olhe, brava JV, cuide-se. As suas boas melhoras.
E um abraço devagarinho para não magoar a doentinha. :)