sexta-feira, março 08, 2019

Será amor? Será ódio? Será doença?





Há muitos anos. Os meus filhos eram miúdos. Um dos filhos do casal do andar de baixo, o mais novo, era da idade da minha filha. Vinha muitas vezes para nossa casa. O pai trabalhava fora. Não sei se viria a casa uma semana por mês. Tenho ideia disso. Era um homem muito louro, sorridente. A mulher era uma morena divertida, brincalhona, daquelas pessoas que tem uma piada oportuna sempre na ponta da língua.

Até que o meu marido, um dia, disse que achava que ela tinha um namorado mas que, a ser, era pouco mais que um adolescente. Achei que não devia ser, que se calhar era algum amigo do filho mais velho. Uma vez, fomos com os nossos miúdos ao jardim e, num recanto, vimo-la enamorada, abraçada a um rapaz. O meu marido disse que era aquele que volta e meia via a sair do prédio à noite. Naquela altura o meu marido fumava mas, por higiene, fumava à janela. Sabia, pois, coisas de que eu nem suspeitava.

Entretanto, o marido dela regressava e tudo, aparentemente, voltava ao normal. Até que um dia a vimos, em pleno dia, abraçada ao seu jovem. Cumprimentou-nos, feliz da vida. A coisa já era, pois, assumida. Pouco tempo depois saíu de casa.

Quando o marido regressou, ficou, pois, a viver sozinho e isso coincidiu, se bem me lembro, com o ter vindo ficar a trabalhar no país.

Passado algum tempo, foi a vez dele aparecer com uma namorada. Morena como a mulher mas mais nova, mais magra, de cabelos compridos. Algum tempo depois, estava a viver lá em casa. Ele parecia remoçado. Sempre abraçados, sempre cúmplices e sorridentes, um namoro pegado. Lembro-me dela frequentemente vestida de branco, o que contrastava muito bem com o seu tom de pele. Recordo em especial um vestido branco de alças, decotado.

Nós achávamos graça: ambos tinham optado por parceiros mais novos, ambos rapidamente tinham arranjado novos amores.

Até que um dia, à noite, aconteceu o impensável: ouvimos uma grande discussão no andar de baixo, gritos, choros dela. Ficámos em suspenso, sem percebermos bem o que estava a acontecer. Eu com receio, lembro-me de me sentir aflita, no escuro, a ouvir.


Depois acabou. Silêncio. Devem ter feito as pazes. Acalmia.

A partir daí, de vez em quando acontecia. Gritos, barulho de coisas a caírem, coisas a serem atiradas, gritos dela. No resto do prédio, silêncio. Eu ficava atormentada com medo do que pudesse acontecer, sem saber o que fazer. Não havia ainda a consciência para o problema da violência doméstica. Não nos ocorreu chamar a polícia. Ocorreu-nos, sim, estar alerta a ver se teríamos que intervir. Mas depois a coisa acalmava-se sempre e, quando nos cruzávamos com eles, para nosso espanto, viamo-los sempre abraçados, sorridentes, cúmplices e amigos. Ficávamos intrigadíssimos. Achávamos que era gente doida.

Um dia a coisa foi para além do normal. Ela gritava, ele gritava, portas a serem atiradas, coisas a serem partidas. E depois a porta da rua a abrir-se e logo a fechar-se. E a seguir ela a gritar, a implorar, a tocar à campainha, a bater à porta. Dos outros vizinhos do andar deles nem sinal. Silêncio. Ouvimo-la a chorar na escada. Então, enchi-me de coragem, como se estivesse a violar a intimidade de um casal, e fui à escada perguntar se ela precisava de ajuda, se queria que eu fizesse alguma coisa. A chorar disse que não, pediu-me para eu não fazer nada. Passou a noite na escada.

No dia seguinte, vimo-los: abraçados, como se nada tivesse passado. 

A cena repetiu-se outras vezes. Cada vez mais os gritos, os choros, os barulhos eram maiores. Passou a ser normal ele pô-la porta fora e, depois dela gritar, tocar à campainha, bater e pontapear a porta, ficar a dormir na escada. Uma vez, ao chegarmos a casa, um grande aparato de bombeiros. Com uma escada, entraram no prédio pela varanda. Ela cá fora à espera que lhe abrissem a porta.

E, nos dias seguintes, apaixonados, de braço dado, a rirem.

Nunca percebi. Sei agora que este é um quadro normal em cenário de violência doméstica e ainda agora acabei de ler cenas do mesmo género.

Algum tempo depois mudaram-se de lá e ainda bem. À distância de todos estes anos, continua a incomodar-me lembrar-me disto. Incomoda-me sobretudo a cobardia de todos os vizinhos, onde me incluo. Nunca ninguém chamou a polícia. Imperava aquele estúpido princípio de entre marido e mulher ninguém meter a colher. E penso que imperava também alguma estranheza por sabermos que de noite era aquela guerra medonha e, de dia, aquele amor juvenil. 

Por ser tema complexo, difícil de compreender por parte de quem está de fora, é que acho muito bem que haja o Dia da Violência Doméstica: para que se fale disto, para que haja informação, para que se saiba como agir. Para que as mulheres que são vítimas de situações assim, de violência física ou psicológica, e têm vergonha ou medo, para que os vizinhos que não sabem como interpretar o que ouvem ou presenciam, saibam como agir.

Continuam a ser mortas mulheres em Portugal e por cada uma que acaba assassinada muitas há que sofrem em silêncio, que calam o medo, que disfarçam, que se habituam, que perdoam e que, por vezes, até têm pena dos algozes.

Felizmente as mulheres vítimas começam a ganhar coragem e a apresentar testemunhos públicos. Os agressores têm que sentir que serão alvo de censura social generalizada, que a justiça está pronta a cair-lhes em cima a pés juntos. Talvez se perceba que há formas de relacionamento que não são afecto: são tortura. E a sociedade talvez fique mais sensibilizada para agir enquanto é tempo.








...................................................................

800 202 148


8 comentários:

  1. Francisco de Sousa Rodriguesmarço 08, 2019

    Como a UJM bem sabe: Amor, nunca; Ódio/doença, na maior parte das situações.

    Esse vosso vizinho, decerto pelas características da sua personalidade, não elaborou o facto de ter sido preterido, ao invés de ter passado ao ato com a ex e com o seu novo companheiro, passou a cometer a múltipla vingança de ao ligar-se a esta mulher - nomeadamente da ex-mulher, do companheiro mais jovem (símbolo da rivalização que não suporta e que lhe causa uma insuportável ferida narcísica) e também das figuras do passado que comprometeram uma estruturação que não progrediu da tendência à inveja.
    A mulher que se submete, como já referi há uns tempos, está muitas vezes amarrada numa estrutura depressiva, cujo labirinto de culpabilidade do mal que não fez lhe tolhe a capacidade de perceber que não tem nada a expiar e que ser tratada assim é proibido.

    Muito embora estas coisas devam ser celebradas todos os dias, desejo à rica UJM e a todas as comentadoras deste belo espaço um dia bem bonito.


    ResponderEliminar
  2. Curiosamente, oa ler e a crer numa notícia de um conhecido jornal, há 2 dias, os números,lamentáveis, da nossa violência doméstica, estão (bem) aquém de outros países da U.E, supostamente mais civilizados e evoluídos do que o nosso, como os Nórdicos, a ALE, HOL, etc, etc e tal. Surpreenderam-me essas estatísticas. Julgava eu, ou acreditava, que o nosso machismo, assente na tal "moral católica" (prefiro esta desiganção à judaico cristã, pois os judeus, ou seja Israel, é uma sociedade muito mais avançada do que nós, no que respeita à sua Democracia interna - Estado de Direito, embora depois falhe inqualificavelmente no que respeita à Palestina, mas isso é outro assunto), que durante décadas e séculos defendeu um papel secundário para a mulher; era um factor que nos levava a ser os campeões deste tipo de comportamentos. Pelos vistos não é assim. O que não invalidada que se tenha que tomar medidas criminais sérias para as combater. Mas, também outras, quer na escola, quer em casa.
    Quanto ao que o Governo se propõe fazer, com os tais tribunais (especiais), e apesar de ter ficado mais tranquilo com as explicações do PM dadas no Parlamento (julgo que em resposta à Deputada Isabel Moreira), discordo totalmente. O que se tem de fazer é rever a legislação penal, penalizando ainda mais determinados crimes, como estes onde cabem actualmente os tais de violência doméstica, por forma a que o agressor/arguido/criminoso possa ir sem apelo nem agravo cumprir uma pena de prisão pesada por aquilo que praticou.
    Nós temos um conjunto de leis (penais e outras) que até não são más de todo, embora nalguns casos permitam interpretações diferentes (olhe-se o juiz Neto Moura), mas que, em certos casos, podem ser melhoradas, agravando por exemplo as penas a aplicar, por quem pratica determinados crimes.
    Temos é a mania de complicar as coisas e de, por vezes, reagir a quente.
    E um Feliz Dia da Mulher para si e todas as suas Leitoras!
    P.Rufino

    ResponderEliminar
  3. A lei não é má, tem o P. Rufino nisso razão; é péssima. Tanto se falou no último acórdão do Neto de Moura, que retirou a pulseira eletrónica ao agressor. Pois bem, esse senhor, que não juiz, é um energúmeno que usa fundamentação aberrante e sexista nas suas sentenças, mas a decisão propriamente dita não podia - nesse caso - ter sido outra. É preciso o consentimento do arguido - bem como, aliás, das pessoas com quem este viva - para usar quaisquer meios de vigilância à distância como medida de coação. Qual o juiz ou juíza energumeno(a) de 1a instância que decretou essa medida sem assegurar a verificação dos respetivos requisitos legais? Isto quanto aos juízes, por um lado. Quanto às lacunas da lei, vejamos. O normal casos destes, de escolha entre medidas de coação para evitar a continuação da prática do crime, é fazer-se assim: o juiz diz ao arguido "eu vou-lhe decretar a prisão preventiva, está a perceber, eu posso mandar prendê-lo preventivamente, mas não vou fazê-lo... Se o senhor preferir e aceitar ficar em prisão domiciliária [ou não se aproximar da vítima], com pulseira eletrónica". Isto não foi feito. Mas aqui a culpa é do legislador. É que, ora bem, o crime de violência doméstica não consta do elenco de crimes que permite o decretamento de prisão preventiva. Sem ver outra hipótese de proteger a vítima, o tal juiz energúmeno de 1a instância afinal se calhar não era tão energúmeno - apenas decidiu com o coração e não com a lei.
    JV

    ResponderEliminar
  4. Não sei se já contei aqui, mas conto outra vez. Para completar o estágio de advocacia, tive de assistir a várioa julgamentos penais. Cerca de metade eram de violencia doméstica. Um deles respeitava a um casal de velhotes. A senhora, surda e com discurso por vezes confuso, "de tanto levar uma vida inteira", a dada altura do depoimento, confessa "eu vou contar a coisa, peço desculpa, eu sei que não devia ter feito o que fiz, mas agora tenho de contar... O meu companheiro t estado a viver comigo, na nossa casa, há meses." O arguido tinha sido condenado, meses antes, a medida de coação que não o permitia aproximar-se da vítima. O juiz - uma besta de todo o tamanho, que nem sabia o que é o crime de violência doméstica, mas isso terá de ficar para outro dia - o juiz manda parar o depoimento da vítima e ordena ao arguido que se levante. A instância do juiz, o arguido confessa que voltou efetivamente para casa do casal. "Mas só porque a [vítima] me implorou de joelhos." O depoimento da vítima é retomado e, no fim, o juiz pergunta-lhe se é, de facto, sua vontade viver afastada do arguido. "O que é que a senhora quer?" A senhora é muito clara, quer viver longe do companheiro. "Eu quero paz." O juiz volta a mandar levantar o arguido e diz-lhe que ele violou uma medida de de coação aplicada por um tribunal, violou uma ordem do tribunal e, por isso, podia ordenar a sua prisão preventiva. Mas não o fez. Ia dar-lhe uma segunda oportunidade. Deu-lhe 4 dias para abandonar a casa e não voltar a aproximar-se da companheira. Devem ter tido um jantar romântico nessa noite, o feliz casalinho. License to kill?
    JV

    ResponderEliminar
  5. Compreendo perfeitamente a posição da Leitora JV. O que só vem dar razão a que se possa- e deva - rever, se não o Código Penal, pelo menos algumas das suas disposições legais.
    Este tipo de situações, os crimes que se vão cometendo (violência doméstica), com uma regularidade que assusta e indigna, deveria ser objecto de uma alteração/revisão das penas a aplicar sobre quem pratica tais actos.
    Por outro lado, deveria igualmente ser alterado/revisto o articulado penal que dá a possibilidade de um arguido, num situação em que é condenado em tribunal a, por exemplo, 4 a 5 anos de prisão, poder ter essa pena suspensa (até 5 anos!). Em tempos, esse período era de 3 anos. Por mim, propunha 2 anos para o máximo de pena suspensa, a partir do qual (período) se cumpriria pena - efectiva.
    Uma coisa é facilitar, outra recuperar. Por exemplo, não existe em Portugal um programa (bem estruturado) para recuperar quem cumpre pena, com vista a devolvê-los, uma vez a pena cumprida, à Sociedade.
    Já quanto a facilitar, pergunto-me o que levou os legisladores, ou seja, quem foi/foram o/s autor/es dessas Leis (aprovadas em sede Parlamentar, - A.R), a passar os períodos de pena suspensa de 3 anos (como era), para 5!!!
    Quanto às medias de coacção que a Leitora JV refere, o problema é que um magistrado (juiz, sobretudo, procurador noutras circunstâncias) está limitado pelo que a legislação dispõe. É certo que a mesma permite algumas interpretações, desde à aplicação de medidas de coacção, à decisão de pena suspensa sobre um crime comprovado em sede de julgamento, etc. Pode, e a a legislação penal vigente permite-o, fazer a sua própria interpretação, mas não tem muito espaço para tal. Esta é a minha visão das coisas.
    Boa noite!
    P.Rufino


    ResponderEliminar
  6. Conheci um caso em que o pai, depois de ter sido ordenado pelo Tribunal para manter distância para com a mulher, até o divórcio ter sido decretado, ele, um dia, por razões que para agora não interessam, consegue ir a casa da quasi ex-parceira/mulher, com o pretexto de ir buscar o filho de ambos para ir passar esse fim de semana com ele, e depois de a agredir violentamente, tendo planeado tudo com detalhe, no dia seguinte simula um acidente brutal de automóvel, o dele, e suicida-se, com o filho, cerca de 6 anos. Deixando uma carta à mulher, qu lhe chegou posteriormente, uns dias após, a explicar porque tomou aquela decisão (louca!), "já que ele não ficaria a ver o filho - o qual ele nunca quis saber!!, quando partilhavam vidas juntos todos os dias - e sim ela por disposição do Tribunal, deste modo ele retirar-lhe-ia essa possibilidade". Há gente capaz de tudo! Gente sem sentimentos, barbaros! Criminosos. E de facto, uma boa parte das vítimas desse tipo de gente são mulheres.
    P.Rufino

    ResponderEliminar
  7. Olá Francisco,

    Gosto sempre de ler as suas interpretações.

    Acho um absurdo haver o dia da mãe, o dia do pai, o dia dos avós, o dia dos namorados e o dia de todas as parvoíces. Mas neste caso, porque estamos perante uma realidade tão cheia de zonas cinzentas, acho importante que se abra um espaço de divulgação e discussão para que todos nós, vítimas ou testemunhas, conheçamos melhor as motivações e as limitações dos agressoras e das vítimas para melhor sabermos como agir.

    Obrigada, Francisco. E um belo sábado.

    ResponderEliminar
  8. Olá Senhores Advogados JV e P. Rufino,

    Compreendo que se há temas complexos em termos jurídicos, este deve ser um deles. Quando a emoção e os sentimentos desempenham um papel tão forte, quando existem raízes culturais que descupabilizam comportamentos machistas e vários estigmas a tolher os movimentos das vítimas, acredito que as zonas de sombra se devem sobrepor, com frequência, às evidências, dificultando a vida a quem tem que ajuizar. Juntando a isso o pressuposto fundamental da presunção da inocência e dos direitos e garantias de todos, incluindo os dos agressores, acredito que, por vezes (ou muitas vezes) os juízes estejam baralhados, com dificuldade em saber onde está a linha da verdade.

    Será necessário apostar na educação, no acompanhamento psicológico, na aculturação. Mas é um tema complexo. E as várias histórias que se vão conhecendo mais comprovam que, aqui, não é fácil ditar uma sentença inequívocamente certa pois aquela que muitas vezes seria a óbvia não é aceite pelo réu nem pela vítima.

    Agradeço a ambos os vossos testemunhos.

    Um abraço.

    Um belo fim de semana.

    ResponderEliminar