domingo, março 03, 2019

Como um rio que se funde noutro





Olho-me nos olhos. Nunca tive medo de espelhos. As pálpebras, o rosto, as rugas hesitantes que me atravessam a testa. Os cabelos brancos e abundantes. O torso ainda firme e um pouco mais compassivo. O desejo discreto mas imparável. A fala fácil mas um nadinha mais ponderada. Onde está a minha idade? ´Vai aos ziguezagues', diria Sabato. Atiro-me para as nuvens, como sempre fiz, agora mais diurnas. Mais próximas da mão. Deixo-me envolver por elas, 'nuvens que envolvem o tempo', leio num dos poemas da loucura de Hölderlin. Agarro como posso os restos da minha própria. Restos? Olhando para o mar é como se ela, a loucura normal, fosse uma variante do meu olhar nos espelhos da casa, entre estantes caóticas, como gosto que sejam as estantes dos outros, jamais as minhas, encontrar o que não espero encontrar, mas o que mais me concentra nesta casa é o mar, o espelho do mar, o seu peso oscilante, como se ele fosse outro rosto meu, vacilante como o meu, enquanto o olhar de Myah, de todos o mais brilhante, não entra pela casa dentro. Onde estás tu? Como um rio que se funde noutro.


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Palavras de Casimiro de Brito in 'Uma lágrima que cega' ao som de Yann Tiersen com The lost notebook. As fotografias são de Emma Tempest. 

No fim, "On Growing Old" de John Masefield é lido por Tom O'Bedlam e os bailarinos de Introdans dançam Unfold numa coreografia de Robert Battle ao som de uma ária da ópera Louise de Gustave Charpentier

4 comentários:

  1. Francisco de Sousa Rodriguesmarço 03, 2019

    Sábias palavras.

    Um bom Domingo.

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  2. Eu não lhe disse que o Casimiro valia muito a pena?
    Tem que acreditar mais nos anónimos.
    E ele já vai nos 81, caraças!
    Às vezes a idade doesn't really matter...
    E o On Growing Old também é muito bom!
    Boas leituras, ainda que de homens velhos.

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  3. Olá Francisco,

    São as palavras de um homem a quem a idade vem acompanhada de sabedoria.

    Uma bela segunda feira!

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  4. Olá Anonymous,

    Disse, sim senhor. E eu acreditei. E não leve a mal mas fui conferir. 81, mesmo. Pensei que andaria pelos setentas e tais. Mas 81. Grande pinta. E Grande pinta que ele tem, também. Sempre foi um homem com imenso charme.

    Ao ler este livro, ocorreu-me Philip Roth.

    E uma coisa é certa: há jovens que escrevem bem, há gente que nasceu com o dom, mas a escrita de alguém que transporta muitas memórias e muita vida tem geralmente uma densidade mais interessante, especialmente se sabe temperar a escrita com desprendimento e, idealmente, também com alguma ironia.

    (Mesmo nos comentários, dá para apreciar as diferenças).

    Um dia feliz, dear Anonymous!

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