domingo, julho 01, 2018

Uma casa entre árvores, no meio dos rochedos




Se em vez de me pôr aqui todos os dias a escrever coisas assim, soltas, sem pensar, publicadas sem qualquer edição prévia, conseguisse impôr-me a disciplina de escrever obra apurada talvez fosse preferível: poupava-me tempo e poupava a vossa paciência e generosidade.


Mas não. Sou isto. O meu marido há pouco perguntou-me o que achava eu das manhãs. Que não se pense que é dado a perguntas metafísicas. Nada. É dado, sim, à ironia. Respondi que devem ser bonitas mas que prefiro as noites. É que esta das noites é outra. Sei que entrar pela noite adentro não é saudável. Sei que dormir pouco não é saudável. Então porquê isto? Não sei. Deve ser também coisa genética. Vivo os dias normalmente, sem querer saber de escritas e, chegada a esta hora, dá-me para isto. No sofá, pés sobre uma banqueta, computador nas pernas, aqui estou. As palavras aparecem à medida que os dedos as escrevem sem que eu me detenha a pensar no que vou escrever a seguir ou a alinhar ideias.


Quando tento entender-me, desisto logo. Deve ser por isso que não sou dada a depressões ou ansiedades: não descubro nada que me desagrade ou preocupe porque, sinceramente, não quero descobrir-me, não quero saber das razões que me justificam. Estou-me nas tintas. E não estou a fazer género. É mesmo assim. 

Mas, nisto da escrita, eu tenho uma razão. Ou melhor, uma desculpa. E já falei muitas vezes nela. Não escrevo como deve ser porque sinto que me falta a logística certa para o fazer.

Reparem como me poupo: poderia dizer que não escrevo porque me falta o talento. Mas não. Simplifico a coisa, iludo-me, permitindo-me alimentar a esperança de que um dia ainda venha a ver reunidas as condições para que o milagre aconteça.


Para escrever preciso de sossego. Não consigo ter interacção humana, conversar a meio das frases, levantar-me para ir fazer o jantar, interromper para ir arrumar roupa. Não -- tem que ser de seguida, entregue completamente ao fluir das palavras, não permitindo que o que quer que seja lhes barre o caminho.

Mas, por outro lado, sou uma pessoa de família, não gosto de estar sozinha, gosto de ter os meus por perto, vivo bem no meio da confusão. Por isso, esta dicotomia: de dia, vida gregária e intensa e, de noite, quando a casa está em repouso, aqui na sala a escrever.

Alguma vez, de dia, eu poderia estar sozinha, fechada numa casa, enquanto lá fora o pessoalzinho anda à solta ou, volta e meia, à procura de comida? E eu, alheada, a escrever...? Nem pensar.


Já agora, conto.

O dia foi muito bom. Os meus meninos, em conjunto com o avô, a cortarem mato, a serrarem ramos de árvores, depois todos à volta da mesa, as crianças com um apetite surpreendente, em conversa boa, e sempre brincalhões, sempre felizes da vida. E ainda deu para acabar o livro do Miguel Sousa Tavares e estive a ler o Dano e Virtude, estilo bem conhecido, apontamentos do dia a dia. E fotografei -- mas pouco porque o gosto pela fotografia precisa de ter com que exercê-lo de forma orgânica, temos que sentir que o instrumento não obsta ao seu exercício, e esta máquina pequenina não me permite aproximar-me, estando de longe, guardando o devido respeito, mantendo a qualidade. Falta-me sentir o peso da minha máquina grande, que podia manusear. Mas, enfim, apesar de desconsoladamente, sempre fiz umas quantas.

Apanhei ramos de eucalipto, ramos de aroeira, ramos de loureiro, ramos de orégãos e alecrim para levar este domingo à minha mãe. Ela diz que os ramos de loureiro afastam as traças da roupa. Acho que vai pôr, não sei como, se pendurados se as folhas em saquinhos de pano, nos roupeiros.


E apanhei alfazema. Não levo à minha mãe porque também o tem agora, no seu jardim. Apanhei para mim. Distribuí por várias jarras e, por exemplo, aqui onde estou está um cheirinho bom, fresquinho. 

O contacto com a natureza que, para mim, desde que me lembro, me é vital, é-o cada vez mais.

Hoje, estive com os meninos à porta da gruta grande. Impõe respeito. A toda a volta rocha maciça, superfícies inteiras e, a meio, uma abertura natural que se estende não se sabe até onde. Como sempre, não passámos da entrada mas um dos meninos reparou que lá a meio, na terra fina que a atapeta, uma terra quase arenosa, há um buraco. Quase uma toca subterrânea. Mas também grande. Um animal de algum porte. Quando estava a espreitar, coloquei a mão na parede da entrada. A textura da rocha agrada-me muito. Lisa, densa. No verão está morna. No inverno fria e húmida, por vezes escorrendo água. Por vezes cobre-se de era selvagem, outras de musgo macio.


Os meninos perguntam porque não entramos e eu explico que não sabemos se é segura e levo-os a espreitar uma outra que é pequenina, uma abertura a meio da rocha. Não sabemos até onde vai ou se, lá dentro se alarga, mas, à superfície, é pequena, talvez apenas toca de coelhos. Dela escorre uma terra vermelha como se fosse o mênstruo de uma mulher. A terra é fêmea. O mundo é macho.


A casa que se vê no vídeo aqui abaixo é uma casa maravilhosa. Um ninho transparente no meio da rocha, entre o arvoredo. Numa casa assim talvez eu conseguisse escrever e, ao mesmo tempo, ver os meus, sentindo-me acompanhada mas suficientemente em sossego para poder desfrutar a inspiração que talvez me chegasse, límpida, tocada pelo contacto com a natureza.

É uma casa extraordinária. Quem imagina e desenha uma casa assim é alguém que foi tocado pelo sagrado sopro da arte em estado puro.

Uma casa no rochedo - arquitecto Jan Jensen



E depois há o silêncio. O silêncio que na natureza não é silêncio: é canto, é harmonia, é paz. O silêncio dos deuses.

Gordon Hempton tenta salvá-lo


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