sexta-feira, junho 30, 2017

Jardineiras em cargos de gestão? Voto nisso.
E, já agora, Meryl e Diane: duas das mulheres da minha vida





Hoje estou incapaz de escrever. Já adormeci para cima de umas cinquenta vezes e daqui a nada tenho que estar a pé. 

Há muito assunto por aí, quase a gente se distrai e dá um pontapé num, mas o sono não me permite a devida atenção: antes que me baixe para perceber se a topada foi numa pedra ou num assunto, já estou caída nos tentadores braços do Morfeu. Embora isto do Morfeu seja uma maneira de dizer que eu, quando durmo, sou mais na base da pedra do que da sonhadora. Mas, enfim, com o adiantado da hora dá-me para a metáfora. E claro que o uso aqui da palavra metáfora também não é o mais adequado mas isto é a gente a falar. Digamos assim.


Por isso, estou aqui nesta langórvia (coisa que, com vossa licença, me soa como derivada de langor), ensonada, degustando a sensação boa de estar entre cá e lá, e vendo um programa que me está a encantar. É na RTP 2, ouço o canto dos pássaros e falam de árvores, de arbustos, uma senhora mostra como faz os bonsais, estão ao ar livre, e falam de coisas que me agradam: da forma dos ramos, de seiva, de dialogar com as árvores. Fui ver ao site da rtp e o programa chama-se, justamente, Paraíso


Já contei que acho que gostaria de ser jardineira? Já devo ter contado. Que maçada, isto, de vos maçar com repetições. Mas que hei-de eu fazer? Apagar isto que acabei de escrever? Não, vou mas é em frente e quem já sabe disto, põe as mãos nos olhos. Continuando, pois. Quando andava a escolher árvores para plantar in heaven, ia a viveiros nacionais, municipais, onde calhasse. Havia um que era para mim a arca do tesouro e eu gostava de por ali andar, à conversa com as jardineiras, elas a descreverem cada árvore, contando as suas características, e eu a absorver cada gota de informação, a passar a mão por elas, árvores de todas as espécies. Muitas vezes, antes de ir trabalhar, saía muito cedo de casa e rodas para que te quero, lá ia eu ter com elas. Elas de botas, aventais impermeáveis, luvas, e eu saída da voiture, saltos de agulha, ar de quem está mais para salões onde se bebe do fino do que de quem gosta de sentir a terra húmida, o ar denso de mil odores. Já as conhecia e elas já conheciam esta que vos escreve. Conversávamos de árvores, de filhos, do tempo, do cuidado a ter com elas, se são de ter sede, se são caprichosas. Eu queria saber se eram de crescer depressa e elas diziam que eram de levar o seu tempo. E o que eu gostava destas conversas. 


Vinha de lá carregada de saquinhos pequenos com rebentos de árvores. Andava o resto da semana com o carro a cheirar a terra húmida e com mil cuidados para que tivessem ar para respirar, para que não tivessem muito calor -- e a pedir a todos os santinhos para não ter que dar boleia a ninguém lá dos tais que pisam corredores atapetados, que iam estranhar aquele cheiro e aquela falta de cheiro a carro lavado, tablier encerado, peles dos estofos odas devidamente lustrosas.

As árvores cresceram e se calhar aquele viveiro já não está lá. Não sei que será feito daquelas mulheres que eu invejava. Pareciam-me tão próximas da terra, como se as pernas rijas fossem troncos e os braços ramos e os sorrisos flores.

Mas isto até nem vinha a propósito. Isto é do sono. Se calhar estou a precisar de férias. Cai-me o trabalho em cima de uma forma um bocado disparatada. Chega o verão, apetece-me entrar num período de abrandamento e é o contrário: parece que tudo o que estava no limbo, se apressa a desabrochar, rebentando-me nas mãos. Penso tantas vezes: por esta altura da minha vida eu pensava, há uns anos lá bem para trás, que estaria a ser presidente de uma câmara. Achava que me realizaria transformando uma cidade, modernizando-a, tornando-a bela, elegante, próxima e amiga dos cidadãos. Mas bastou que o presidente de um partido dissesse ao meu marido, num dia em que ele lhe contou desta minha ideia: ela que venha falar comigo. Só isto. Pensei: o tanas. Jamais sacrificaria a minha independência para atingir um objectivo. Pus a ideia de lado. Mas isto para dizer que antevia que, chegada ali a meio da vida profissional, me fartaria de trabalhar em empresas e passaria a conduzir eu a minha vida e a gestão de uma grande cidade. Afinal ainda por aqui ando, entre empresas, num ritmo que não abranda, que me absorve para além daquilo que eu antevia. Em vez de ter jardineiras com quem conviver, só vejo homens atarefados à minha volta. E homens atarefados, cheios de projectos, são uma canseira. Para já, de forma geral, falta-lhes sentido prático e capacidade para dar um passo atrás, admitir que erraram, que o caminho não era bem aquele. Não, isso não fazem. Para a frente e não se fala mais no assunto. Se as empresas tivessem jardineiras em cargos de gestão talvez este mundo fosse um lugar mais aprazível.



Mas, enfim, é o que é. As mulheres são incómodas, colocam questões, não se importam de pôr tudo em causa. São bravas. Por isso, os homens fazem de tudo para lhes vedar a passagem para as augustas salas onde tudo se decide. 

Mas adiante que esse não é o tema que aqui me traz. (E dizendo isto até parece que sei o que é que aqui me traz. Só visto.)

Agora na RTP 2 ouço falar de Andy Warhol. O tema parece ser a Pop Art. Mas se me ponho só a ver, conforme agora me apetece, então, é que não saio disto. E eu tenho que ir ver se durmo antes que o despertador toque e eu ainda aqui a jogar conversa fora.



Bem. Rematando à baliza (e a ver se tenho mais sorte que aqueles três pobres coitados que falharam os três penalties lá no jogo que acabou por ser o passe para o Ronaldo ir ver os bebés encomendados que a D. Dolores foi buscar aos States): vi há bocado, enquanto estava a dormir, o vídeo que abaixo partilho convosco com duas mulheres que love, love, love ver a representar: Meryl Streep e Diane Keaton. No vídeo, a primeira louva a segunda, que está a ser homenageada e eu, vendo-as, acho-as tão bonitas. Filmes memoráveis que aquelas duas ali já nos deram a ver. Não fora o estado de sonolência absoluta em que me encontro e incluía aqui um best of. Mas já não dá, fica para outro dia.


Meryl celebra Diane: uma graça estas duas mulheres.
Abençoadas.



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As fotografias celebram o Dia do Flamingo Cor-de-Rosa que é bicho que se calhar até vem a condizer com a minha prosa, quiçá loura e vestida de pink. Já não digo nada.

Lá em cima, Rosemary Joshua interpreta Verdi piante, erbette liete de Handel (e eu sinto que é sacrilégio desperdiçar tamanha beleza no meio de um post tão fajuta mas, fazer o quê?, a cabeça pode não dar para mais mas os ouvidos são ambiciosos e eu gosto de estar em boa companhia musical enquanto para aqui  estou nesta conversa mole).

E já sabem: por favor relevem as gralhas que temo que tenham vindo em bando aqui pousar. É que não consigo rever o que escrevi e, durante o dia, também não conseguirei fazê-lo. Espero é que não sejam daquelas de arrepiar porque, se forem, só lá para a noite é que consigo aparar-lhes o cabelo (ia dizer torcer-lhes o pescoço mas esse espírito bélico não está com nada nem se coaduna com o espírito peace and love que caracteriza este meu ninho). 

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Um dia feliz a todos. 
Saúde e alegria, minha gente.

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quinta-feira, junho 29, 2017

Conselhos aos novos -- ou nem por isso
(E isto nem tem especialmente a ver com a saída infeliz do Salvador Sobral lá no concerto)



Não gosto de dar conselhos. Opiniões, sim. Sou opinativa. Mas uma opinião é coisa que vale o que vale. Noutras circunstâncias, poderei achar outra coisa e lá vai a opinião ao ar.. Por isso, opino -- mas pouco aconselho. Sei lá o que é que os outros devem fazer? 

Se entra alguém para trabalhar comigo, não tenho paciência para conselhos, prelecções ou grandes enquadramentos. No outro dia tive uma conversa com alguém a quem perguntei se queria ficar a trabalhar comigo, alguém que estava a acabar um estágio. Se tanto, a conversa durou uns cinco minutos. Ele disse que sim, eu disse o que é que esperava dele e a coisa ficou arrumada. E o que eu disse que esperava dele é que fizesse sempre o que, na opinião dele, fosse o melhor possível, que tentasse aprender por ele mas, que, quando não soubesse, não tivesse acanhamento em dizer que não sabia ou que precisava de ajuda, e que tentasse ser, aos olhos dos outros, uma mais valia, alguém que trazia valor, que sabia maneiras diferentes de fazer as coisas. E pronto. 

E, ao fim de um dia, já eu estava a pedir-lhe que fizesse coisas que ele nunca tinha feito e que não sabia se sabia fazer. E hoje já o vi, sorridente, a cirandar e a fazer coisas. 

Não quero cá saber de horários*, de pontualidades*, de querer disponibilidades para além das razoáveis, não me ocorre falar de desafios, de tretas e de mais não sei o quê. Quanto muito, se me lembro, digo que devem ter uma vida equilibrada, que não devem abdicar de ter vida própria, que é bom que tenham gosto por fazer outras coisas. 

(*Porque a função tal não requer. Se fosse trabalhar numa loja ou num lugar de atendimento ao público ou num turno de uma fábrica, aí já a conversa seria outra. Obviamente.)


No outro dia, reuni-me com uma pessoa que trabalha comigo e que tem alguns problemas de relacionamento com um seu subordinado. Apesar de eu estar ali a tentar mediar o conflito, ali amesmo a conversa entre ambos azedou. Já estava, até, a achar graça a tanto ódio. O que lhes pedi foi que aprendessem a conviver com a maneira de ser um do outro e que se lembrassem sempre que devem andar bem dispostos, que não vale a pena aborrecerem-se por ninharias. E digo-lhes sempre que gosto de ver as pessoas que trabalham comigo a rir, gosto que me surpreendam com boas ideias, gosto que formem equipa. Pelo contrário, não suporto dramas.

Uma outra miúda que trabalha agora comigo veio de outra empresa e estava em risco de ficar desempregada. Tive a intuição, nem sei porquê -- já que a tinha visto apenas uma única vez e de raspão -- que era a pessoa que eu estava a precisar para uma determinada função. Foi contactada. Aceitou vir fazer uma coisa que nunca tinha feito na vida, um salto quântico nas suas funções. O lado negativo é que \trabalha um bocado longe de casa. Mas é só ela estar mais estabilizada na função, e vou passar a facilitar que fique a trabalhar em casa sempre que lhe der jeito. Mas anda motivadíssima. Diz: eu digo a toda a gente que a minha vida deu cá uma volta... E deu. E mais dará ainda, que já ando a ver se daqui por uns meses a mando para uma formação que a vai dar deixar com uma outra visão das coisas. E atiro-a para a frente, levo-a a reuniões onde nunca na vida ela pensou participar. Mas não lhe dei um único conselho. Puxo é por ela, empurro-a para a frente, deixo que vença o medo. Volta e meia diz-me que tem medo de não conseguir. Respondo: vai conseguir porque não tem outro remédio. Ela ri-se.

Uma outra a quem ando também a dar idêntico tratamento de choque, dizia a mesma coisa: estou com medo de não conseguir. E eu disse-lhe: tem que conseguir pois dependo de si. Tem que me ajudar e as duas vamos conseguir. Ela riu-se e disse: espero que sim, vou fazer por isso. Claro que vai. 

Mal de mim se não tiver a trabalhar comigo gente audaciosa, corajosa, solidária. Mas que não sejam apertadinhos, tipo marrãozinho, cheios de nove horas. Gosto de gente que ri enquanto fala, gosto de gente que confessa, enquanto ri de forma inocente, que tem medo. Também eu tenho medo. Medo que me falhem quando eu precisar. 


E também não gosto de receber conselhos. 

Tenho um colega que é o meu oposto. Eu nunca tomo apontamentos, não tenho dossiers (físicos) ou pastas (informáticas, digamos assim) -- a minha caixa de correio ou 'os meus documentos' é tudo na base do tudo ao molhe e fé em deus. Quando quero encontrar alguma coisa, faço uma pesquisa por palavras ou emissor ou destinatário. Também nunca arquivo nada. Portanto, qualquer destas cenas (caixa de correio, documentos, etc) tem milhares de coisas sempre à vista. Esse meu colega, pelo contrário, não apenas tem mil pastas, mil sub-divisões, mil caderninhos, como se orgulha do seu poder de arrumação e passa a vida a aconselhar toda a gente a seguir o seu método. Se eu lhe digo que vivo bem no meio do caos, ele olha-me com desconcerto.

Identicamente, raramente presto atenção a conselhos de livros, músicas ou filmes. Pode é acontecer que considere algumas pessoas, raras, como de inquestionável bom gosto e que, aconselhem o que aconselharem, eu siga cegamente. Ou podem algumas pessoas que mal conheço recomendarem alguns livros e, pela forma como se exprimem, me deixarem verdadeiramente curiosa. Já aconteceu isso em relação a livros que leitores (e agora estou a pensar, em concreto, numa leitora) me recomendaram e que, de facto, me agradaram bastante. Mas, tirando esses casos excepcionais, o que me recomendam entra por um ouvido e sai por outro.


Também não gosto especialmente de aconselhar livros ou músicas ou filmes. Não me parece inteligente fazê-lo. Apenas de vez em quanto o faço, e é quando me parecem de qualidade inequívoca e que podem agradar transversalmente. E, no entanto, sei por experiência própria que aquilo que, para mim, está acima de qualquer subjectividade se espeta na parede à primeira tentativa. Por exemplo, gosto mesmo muito do filme O amante de Lady Chatterley e, no entanto, o meu marido acha o filme longo demais e não vê nele nada de trascendente. Portanto, não vale a pena.

Muito menos gosto de me armar em moralista, em beata sempre pronta para a censura, em zeladora de bons costumes, tesoura em punho para cortar qualquer palavra mal dita. Uma coisa é ficar furiosa com a mediocridade de alguns políticos, pagos para serem os nossos representantes e zelarem pelo bem do seu país, e a quem vejo a fazerem burrices, a fazerem com que o país ande para trás ou se enterre. Aí a minha indignação fala mais alto pois acho que o dever de todos é olhar pelo bem de todos, em especial pelos que têm menos voz.

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E vem isto a propósito dos vídeos que vos mostro abaixo. Lydia Davis, escritora, Wim Wenders, cineasta, Norman Foster, arquitecto, Marina Abramovic, performer -- aconselham jovens. Gosto de ouvi-los mas não me imagino a ser capaz de fazer o mesmo. Talvez, quanto muito, dissesse: façam o que vos der na bolha, ousem, inovem, sejam corajosos -- e sejam felizes. Mas, lá está, isso sou eu. 












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As fotografias são da autoria de Lillian Bassman (a 1ª), Sheila Metzner (as duas seguintes) e Stéfanie Renoma (a última).

Lá em cima Agnes Obel interpreta Just so.

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P.S. a propósito de conselhos aos mais novos

Meio mundo anda para aí a dar conselhos ao Salvador Sobral. Eu, pelas razões já acima tão bastamente explanadas, sobre aquela tal palermice dita por ele no concerto de angariação de fundos para as vítimas do incêndio de Pedrógão, pouco tenho a dizer. 


diz que vai mandar um peido

Acho que, em iguais circunstâncias, eu jamais diria tal coisa. Mas eu não sou ele. Também admito que um puto de 27 anos, a passar por exeperiências tão reviravolteantes como aquelas pelas quais o Salvador tem passado nos últimos meses, possa andar um bocado desacertado das ideias, confundindo, no meio do barulho das luzes, um grande espectáculo com uma noite de copos entre amigos. Mas, tirando isso, nada mais a dizer. Não me parece caso para fazer um caso pois saídas infelizes toda a gente as tem e o melhor é seguir em frente e pôr uma pedra sobre o assunto. 


Portanto, conselhos para o Salvador: zero. Ou apenas umas banalidades: não se deixe engolir pelas solicitações, pela agenda, pelo mediatismo -- antes que fique passado da cabeça.

Conselhos para quem aconselha o Salvador: não percam tempo a ligar às palermices que volta e meia lhe saem, valorizem antes o que ele diz de acertado e, sobretudo, ao que ele canta e à forma como canta. O rapaz tem muita pinta. 

E ponto. 

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Um dia muito feliz a todos os que estão aqui comigo.

Espero que se sintam bem na minha companhia. Eu gosto de vos sentir aí. E gosto de pensar que, volta e meia, sorriem com o que eu digo.

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quarta-feira, junho 28, 2017

The taste for the beautiful
-- já lá dizia Darwin que a sabia toda





Tal como previsto, a manhã logo a rasgar.
(Não sei bem em que circunstâncias se usa a expressão 'a rasgar' mas, no contexto, parece-me apropriada). 
À hora de almoço saí a estalar, o gps em acção que o destino era vagamente diferente do habitual e não podia arriscar-me a andar perdida: fui ver a festa de fim de ano lectivo do meu mais crescido que não foi na escola mas noutras instalações. Espigado, compenetrado e a desempenhar na perfeição o que era esperado dele, o orgulho e amor que senti justificaram o dia.

Foi ele que inventou o nome pelo qual hoje todos os meninos me chamam.
Ele, bebé, dizia o monossílabo e a minha filha um dia disse: eu acho que ele te está a chamar, que é o nome que ele te dá, porque só o ouço dizer isto quando estás cá em casa. Não acreditei. Era apenas um som dito e repetido por um bebé. Afinal o tempo provou que sim. Todo ele se ria e batia os pezinhos e os bracinhos, repetindo o que viria a tornar-se o meu segundo nome. Meu menino mais lindo. 
Lembro-me tão bem quando ele nasceu. Eu no hospital, tensa, à espera. Depois, quando se resolveu, o pai da criança saíu, orgulhoso, e veio dizer que estava bem; e, logo a seguir, a médica veio ao berçário mostrar o bebé. E eu tive uma crise de alegria completamente fora de controlo. O meu marido estava a trabalhar. Liguei-lhe para lhe dar a boa nova. Queria dizer-lhe 'Já és avô'. Mas a emoção era tanta que, numa daquelas saídas bruscas de vapor que acompanham a descompressão, comecei a ficar com a voz embargada. Queria falar e não conseguia. Depois as lágrimas a rolarem. E ele 'Então? Já nasceu?' e eu queria começar a falar e não conseguia. Por fim, ao esforçar-me, ele percebeu que eu estava a chorar. Já aflito: 'Mas que foi? Aconteceu alguma coisa?' e eu pensava, caraças, que estupidez, estou a assustá-lo, e queria dizer aquela coisa tão simples 'Já és avô' e só chorava. Ele enervado 'Fala. O que foi? O que é que aconteceu? Diz.' Tive que fazer um esforço de superação, superação da parvoíce aguda, e tenho ideia que desisi de dizer a fórmula mágica e que me limitei a dizer, num sufoco, que já tinha nascido e estava tudo bem.
Mas, portanto, tanta alegria. Depois, quando ela saíu da sala de partos, sorridente, com a sua cria junto a si, foi outra vez a emoção à solta: ver a minha filha tão feliz, tão realizada, ver aquele bebé filho dela, foi maior felicidade do que quando a tive a ela. Entretanto, já passei por este estado de felicidade absoluta mais umas quantas vezes. Uma emoção penta-vivida. De cada vez, sempre a alegria da primeira vez. Cada um deles único, o primeiro, o meu amorzinho mais lindo.

Mas continuando: de tarde. E mais uma tarde de estalão. Coisas, coisas, coisas. Até um mail em que um artista me dizia que uma certa coisa já hesistia. Li aquilo, encolhida, arrepiada, aterrada. Pensei: ninguém merece. Depois, la está, descomprimi e dei uma valente gargalhada.

Ai que mundo diverso -- e por vezes desvairado -- que me traz, no mesmo dia, tantas emoções contraditórias.

Depois, ao fim do dia, caminhada. Passeio, conversa solta, descanso mental. Depois, fazer o jantar (pescadinha de anzol, batata doce que não comi porque ainda persisto na dieta, cenoura, feijão verde, cebola, ovo cozido) ... e, mais tarde, ao chegar à sala e, mais concretamente ao sofá, pimba. Caída a dormir. Que nem uma pedra. Ando mesmo estafada. 

Quando acordei, dei uma volta pelas notícias e a única que me interessou foi uma sobre o que nos diz a forma como as fêmeas escolhem os machos com quem querem fazer sexo. Vi isto não num site pornográfico mas na National Geographic. Aí encontrei aquela bela expressão que Drawin usou: the taste for the beautiful. Essa ideia, que Darwin plasmou em palavras depois das suas observações, tem sido comprovada por várias gerações de cientistas. E é uma ideia que me é cara.


Também para mim, e *os feios que me desculpem, mas beleza é fundamental.


Se eu quiser definir a beleza neste contexto, e pensando nos homens que ao longo dos anos tenho achado atraentes e, em particular, naquele que me prendeu e que, desde há muitos anos, me traz presa (mas, calma, presa não pela trela mas pela liberdade), penso que talvez mais do que uma beleza clássica, perfeita, o que a mim mais me atrai é achar que será um bom parceiro sexual, é olhar e ver que ali está um homem capaz de uma boa pegada. Um bom reprodutor, portanto. E, portanto, com esta conclusão, percebo que, mais do que um ser racional, sou um simples ser animal, tentando garantir o prolongamento da carga genética, propagando-o através da descendência.

O meu marido que lê o que escrevo, chega a este ponto e deve achar normal que eu diga isto pois está farto de saber que é isto que penso (ou melhor dizendo... de mim já espera tudo). Os meus filhos, que também lêem, também já não devem estranhar mas talvez tenham dificuldade em ver os pais como uns meros animais reprodutores. Mas somos. É o que somos. De nós dois já nasceram eles os dois e deles os dois já nasceram mais cinco pessoas. 


Dito isto, até parece que nesta escolha não há lugar para o romance. Mas há. Envolve-se o desejo básico, primordial, em sedução, jogo de olhares, jogo de palavras, envolve-se isso tudo em afecto, em compreensão --- e o romance está feito. Vai-se juntando tudo isso (e quantos mais ingredientes se juntam, maior será a animação) até a coisa ficar respeitável e duradoura. Mas é pela atracção sexual que tudo começa. Pelo menos, comigo é.

Já contei tantas vezes que já toda a gente deve saber de cor. Quando vi o meu marido e o achei altamente apetecível não sabia quem ele era nem como era. E, no entanto, pus o meu namoro da altura em risco e mostrei-me, sem pudor, apaixonada e disposta ao que fosse preciso, porque, no meu íntimo, sabia que não descansaria enquanto não o tivesse nos meus braços. Calhou bem que veio a revelar-se mais do que um belo corpo, mais que um belo rosto, mais do que uma bela maneira de andar. Mas foi sorte. E por isso tem perdurado. 

E o que me encanta em tudo isto é pensar que pelo meu estouvamento, que me levou a seduzir e a deixar-me seduzir pelo rapaz mais bonito da faculdade quando namorava firme um outro, resultou esta família de que gosto tanto, filhos felizes que têm também famílias felizes. Fosse eu a menina ajuizada que supostamente deveria ter sido, e poderia ter constituido também uma família, mas não era esta e eu, hoje, parece que só sou eu porque os tenho a eles.


Bem.

Está aqui a querer parecer-me que a conversa vai meio maluca. Isto é do sono. Fico desestruturada das ideias. Daqui a nada tenho que estar a pé e não consigo puxar pela cabeça para falar de coisas mais espertas. Ainda por cima o supra citado artigo tinha pano para mangas (o facto de serem as fêmeas a escolher e os machos terem que andar a bandear-se junto delas a ver se lhes caem no goto, a cena diferenciadora do pato, etc,) mas o meu estado de depauperação anímica leva-me a ter que fazer ouvidos moucos aos apelos e a ter que me deixar ficar por aqui. Mais há mais dias.

Lembrei-me de trazer ao texto algumas pinturas com beijos (Toulouse-Lautrec, Chagall, Magritte, Klimt e Jean-Léon Gérôme) e, depois de o ter lá em cima em Eu não existo sem você, numa composição com Tom Jobim e com a voz da Maria Bethânia, vou terminar outra vez com aquele* poema de Vinicius:

Receita de mulher, escrito e dito por Vinicius de Moraes




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E saibam que gosto de vos ter aí desse lado. 

Desejo-vos a todos um dia muito feliz.

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terça-feira, junho 27, 2017

Há gente que parece que ainda não aprendeu que, em dias que teimam em ser segunda-feira, é mais prudente que alguma distância seja guardada.
Caraças.

[E uma ou outra inconveniência infantil -- não minha mas de um descentente meu]

(E, sobre a última jericada do láparo, um único conselho: tenha cuidado para não adormecer desprevenido porque gatos é o que há mais por aí)




Só mesmo para dizer que tem dias em que odeio as segunda-feiras. Pior ainda se for Verão, estiver fartinha de muita coisa e vierem querer que eu tenha paciência. E se, para ajudar à festa, quiserem remoer, remoer, remoer, conversa que parece de bubas que não se cansam de repisar. E eu, a ranger mentalmente os dentes, capaz de virar a mesa, e do outro lado que não estão a perceber -- e toma lá com mais cinquenta dúvidas -- e eu, já nos meus limites, a querer abreviar tamanha impresciência; mas eles que não, que não estão confortáveis com a explicação, e eu nas tintas, mas nas tintas, caraças, para o desconforto deles, que se vão confortar ou desconfortar para casa da prima que eu quero lá saber disso. E eu a sentir que mais um pestanejar deles e o caldo fica completamente entornado e eles sem perceberem o risco que estão a correr.

Em dias assim, ao começar, eu rogo para que ninguém me dirija a palavra. Rogo assim: afasta de mim o género humano, afasta. Entro, cumprimento e sigo não vá alguém querer fazer simpatia. Enfio-me no gabinete e espero que ninguém se aperceba da minha existência. Ansiando que haja um simulacro e toda a gente se evacue do edifício para fora, aguardo que a costa esteja livre para ir buscar um café. Mas há quem se arrisque -- ainda antes que eu, ao menos, disfarce a matinal e natural antipatia com a cafeína -- e meta a cabeça à porta. Como andei na catequese, guardo o ensinamento de que não devo fechar a porta deixando a cabeça de um lado e o corpo do outro; ou seja, facilito -- mas nem encaro. Continuo a olhar o computador esperando que o aventureiro perceba que está em risco e bata em retirada. Mas há os afoitos. A esses não consigo disfarçar e fingir que quero tratar bem. Pior, ainda, se me enfrentarem e fizerem ar de quem não está para sair dali sem uma resposta. Não corre bem e, para além da paga na hora, não escapam de vingança retardada. Não levo afronta para casa, em especial em dias de segunda-feira aguda.


Mas a coisa pode sempre ser pior. Se eu, ao almoço, puder espairecer, pode ser que, na parte da tarde, possam cruzar-se comigo sem correrem sérios e generalizados riscos. Agora quando algum desinfeliz envia invite para logo a seguir ao almoço, sem me dar tempo livre para esvaziar a bilís, aí, então, a coisa transcende. É muito mau. Almoçar a correr, atravessar a cidade a correr e, ao chegar ao meeting, em vez de dar de frente com uma mesa vazia, encontrar a sala cheia e gente motivada, cheia de questões -- é do pior. Mau. Muito mau, mesmo. Gente motivada em dias destes é coisa insuportável. Em dias assim. o mais que suporto é que me façam adeus de longe. Mas não. A tarde toda. Até às quinhentas. E logo ali, tanta a motivação, um plano de acção. E eu a espumar, cada minuto seguinte da minha existência logo ali a ser planeado, como se eu suportasse tal afronta. Coisa horrorosa, tudo. Trabalhar, aturar gente de manhã à noite, e não ter um minuto para respirar entre cada picada de melga. Uma violência. Tento não mostrar, guardar-me, tentar ficar na moita. Ou seja: mal abro a boca e, quando abro, é para mostrar que não sou das que ladram, que é melhor fugirem logo. Mas não. Arriscam-se muito. 

Do pior. E não estou a contar nada. Não gosto de carpir. 

Terça-feira outro dia de cão em perspectiva. De tarde, lá, na mesa cheia -- eu a guardar a fúria para altura mais oportuna, para quando puder atirar-me directamente à jugular -- o telefone sem som, só a reluzir e a estremecer, as chamadas e as sms a chegarem. E eu, de olhos semi cerrados, varada, a fingir que não via. Não se aguenta tamanho assédio em dia de segunda-feira. Depois mails e mais invites. Portanto, terça-feira vai começar-me o dia igualzinho a segunda. Acho que vou escrever uma faixa e colar na testa: Já chega de projectos, desafios ou trabalhos urgentes, críticos ou interessantes. Abaixo os e as melgas. Tragam-me massagistas, preparadores de sumos tropicais, tragam-me piscinas portáteis, trovadores, podologistas, osteopatas, cabeleireiros. Até rompo e dieta e aceito pasteleiros. Qualquer coisa. Tudo menos executivos motivados. Isso é que, por favor, não.

Mas não tenho essa sorte. Portanto, depois de um massacrante dia que transpirou segunda-feira por todos os poros, já aí está outro em perspectiva. Um cansaço. Não se aguenta.


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Um Post Scriptum infantil para acabar em beleza a ver se regresso ao espírito de domingo



No domingo, à mesa da festa de anos do bisa, todos conversavam e, na altura, deitaram-se a adivinhar a idade da bisa. Às tantas falaram da outra avó de um deles e pergunta o de quatro anos e que era o mais novo antes do bebé nascer: Mas essa ainda é real? 

Espanto geral. Real? Mas como real?

E ele: Se ainda existe...

Logo todos: Rapaz... Disparate. Claro que existe. Está viva, queres tu dizer. Que coisa, rapaz...

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E, um bocado depois, para a bisa: Porque é que tens assim essas peles no pescoço?

E o pai, logo atalhando: Este gajo... sempre inconveniente. E puxou-o, fazendo com que a criança desse uma cabeçada na porta.

Veio a bisa, contemporizadora: Deixa-o lá. Quer perceber. Faz muito bem. Olha, a avó explica: as pessoas mais velhas têm a pele assim, assim como os perús, estás a ver?

E ele, circunspecto: E também ficam com o nariz assim como o dos perús? E fez o gesto de nariz pendurado.

E a bisa: Ai... isso espero que não, credo....




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Quanto à última jericada do láparo, nada a dizer. Aliás: nada a fazer. Dali nunca há-de nascer nenhum pinto ou ideia luminosa. Só boutades e papagaiadas mal vertidas para conversa de gente normal. Desta vez a coisa saíu-lhe pior mas quantas têm passado despercebidas só porque não são tão chocantes....?

A única coisa a fazer é esperar que adormeça e que, enquanto isso, os outros lhe passem a perna. Ou pode ser que adormeça desprevenido e venha o gato. 


Temos pena.

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[Ilustrações de Norman Rockwell.
Antes, fotografias feitas in heaven]

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Mas pronto. Para isto hoje não ser só prosa vagabunda, remato com um pouco de poesia e uma que, como convém, tem uma mensagem. E com tanto mais significado quanto é dirigida, entre outros, a um coelho. Não que o tema do poema tenha a ver com a toca infeliz em que o nosso tão bem conhecido láparo fez questão de se enfiar a propósito dos incêndios mas, enfim, também não se pode ter tudo.


"A Cursory Nursery Tale" de Ogden Nash (lido por Tom O'Bedlam)



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E uma boa terça-feira a todos
(e que a minha não me chegue com laivos de segunda-feira, pleeeeaasseeee)

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segunda-feira, junho 26, 2017

Construir uma ilha, viver em liberdade



Regressada à cidade depois de um bem vivido fim de semana no campo, e passando, no regresso, por mais uma festa de anos na qual estive rodeada por risos, carinho, doçuras e diabruras, tive, à chegada a casa, naturalmente, uma série de deveres a cumprir -- que isto de me entregar à vida como uma boa selvagem, sem horários nem compromissos, é coisa que, apesar de me ser cara, nunca consegue durar mais do que umas escassas vinte e quatro horas e é quando é.

A semana de trabalho está a recomeçar e, nesta altura do ano, o corpo a pedir descanso e a impaciência a dar mostras de estar sempre à espreita, é sempre com algum esforço que deixo para trás os meus horários desordeiros e os meus hábitos desalinhados para entrar num mundo em que os desvios à normalidade não são bem aceites.


Andar descalça em casa e na rua, ler ou escrever pela noite dentro, andar a apanhar orégãos ou alecrim sentindo o sol a pousar suavemente na pele de todo o corpo, andar em silêncio a espiar gatinhos no mato quando a noite cai ou coisas assim, que fazem a minha felicidade, terão que ser substuídas pela vivência asséptica num escritório, e eu terei que me entregar com uma energia na qual agora me custa a acreditar à análise de resultados de empresas, à partilha na tomada de decisões relativas a negócios e a outras ocupações que são também parte da minha vida.

Quem, durante a semana, me vê de saltos bem altos, maquilhada e perfumada, integrada naquele ambiente, não imaginará talvez que sou outra, completamente outra, quando posso estar à solta, em contacto com a natureza, entregue apenas à concretização das minhas vontades. E, no entanto, é também com naturalidade e motivação, que exerço a minha profissão. Portanto, jamais saberei se seria feliz se a minha vida tivesse seguido um rumo completamente diferente. Se vivesse uma vida alternativa -- sem patrões, sem estar integrada numa organização estruturada em hierarquias, sem horários que não os que eu própria me definisse -- sentir-me-ia igualmente realizada? Não sei.


Conheço uma pessoa que é investigadora e que se organizou para trabalhar a maior parte do tempo a partir de casa. Os tradutores podem também fazê-lo. Um colega do meu filho, investigador também, coisa que lhe dá margem de liberdade, dedica-se, em paralelo, à agricultura. Uma amiga da minha filha, designer, lançou uma linha de roupa para criança e agora gere o seu próprio negócio, com costureiras, a partir de casa. Quando penso neles, penso que dispôem de uma liberdade que desconheço. Mas não sei se isso seria, para mim, garantia de plenitude.

Não sei. Apenas poderei dizê-lo quando me reformar. Aí verei se me entrego ao dolce fare niente e a ser uma boa selvagem, se arranjo mil e uma ocupações alternativas (e tenho umas ideias peregrinas em mente), ao voluntariado, à política, se vou viajar pelo mundo. Ou o quê.

Seja como for, sabe-me bem observar formas de vida alternativas, à margem, no limiar da liberdade total.


Esta noite não me apeteceu acabar já o meu folhetim, parece que fico sempre com alguma pena de me despedir dos personagens que me nascem. Era para escrever o último episódio, tinha que ver que nome lhe ia dar -- comecei por pensar num nome que obviamente não podia ser, depois pensei chamá-lo 'Memórias de L.' e agora estou inclinada para lhe chamar 'L., aquela a quem um dia alguém chamou la femme infidèle'. Mas essa da femme infidèle aconteceu comigo, a mim é que uma pessoa, o vice presidente de importante multinacional, um francês enorme e intimidatório apesar de imensamente charmoso, num dia de fúria, chamou isso e assim passou a chamar mesmo quando a fúria lhe passou. As suas chamadas, de Paris, começavam sempre com essa, o meu nome seguido de la femme infidèle. Mas como eu sou uma e a Lu -- tal como antes a Diana ou a Ana ou a Eva ou a Lídia ou todas as mulheres das minhas histórias -- são outras que não eu, talvez seja melhor não fazer misturas.

Mas, portanto, dizia eu, não me apeteceu pôr já hoje um fim à história. E, assim sendo, depois de ter adormecido e acordado, pus-me a ver as fotografias que fiz no fim de semana -- das quais volto, agora, a partilhar algumas -- e, a seguir, entretive-me a ver alguns vídeos que têm a ver com diferentes formas de viver. 


O vídeo que agora partilho convosco, o terceiro de hoje, é outro que acho fantástico. Catherine King e Wayne Adams, um casal de artistas, resolveram, na margem de um rio que fica a cerca de 45 minutos da cidade mais próxima, construir uma ilha. Vivem numa casa feita à mão por eles, sobre uma ilha feita à mão por eles. E há um estrado para dançar, uma galeria de arte, um jardim. E é uma maravilha. Há vinte e quatro anos que ali vivem. E, do que se vê, vivem felizes, em absoluta liberdade. Isto passa-se no Canadá mas podia passar-se em qualquer outro lugar do mundo porque vivem isolados, entregues a si próprios.



Em liberdade numa ilha só deles



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A quem chegou agora aqui, permito-me aconselhar os dois posts que se seguem por conterem dois vídeos que, pelo menos eu acho, são extraordinários. Já aqui abaixo a história de um homem sem braços que, juntamente com um amigo cego, já plantaram mais de 10.000 árvores.

De lá poderão descer para o outro onde mostro o compositor que imaginou uma sinfonia que desafia a eternidade.

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Os plantadores de árvores


Sei, por mim, o que é imaginar um bosque onde apenas há pedras e mato rasteiro. Sei o que é o prazer de, depois de anos de trabalho e incessante luta, poder caminhar à sombra das árvores que plantei, ouvir o canto dos pássaros que dessas árvores fizeram a sua casa.

Sei o que são os cuidados para que as frágeis arvores recém plantadas vinguem, sei o que é protegê-las dos roedores, dos ventos fortes, dos calores excessivos. Sei. 

Talvez por isso goste de saber de quem, em muito maior escala que eu, consegue concretizar sonhos idênticos. sabe transformar a paisagem, enchendo de verde e frescor a terra árida. Li com ternura a história imaginada do homem que plantava árvores tal como gosto de ler Sebastião Salgado falar da terra seca que herdou e que transformou num paraíso.

Mas uma história como a que hoje partilho convosco nunca tinha ouvido. A amizade de dois homens, um sem braços e outro cego, que, desde há anos, se mantêm unidos para erguer um sonho. Já plantaram mais de dez mil árvores em volta da sua cidade. Desde há dezasseis anos que formam uma equipa. Eu sou as suas mãos, diz um, e ele é os meus olhos. Esta é a história tocante de Jia Haixia e de Jia Wenqi.


A amizade que plantou uma floresta



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E queiram, por favor, continuar a descer para conhecerem outro sonho impossível, o da sinfonia (quase) infinita.

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Estender uma mão para o futuro, procurar o infinito


Salvo raras excepções em que fica uma obra, na melhor das hipóteses o que de nós fica será sempre o pequeno momento, a simplicidade do instante em que alguém sentiu a diferença, a tangência harmoniosa de uma melodia, o breve fulgor de um sorriso, o toque que aconteceu ou que se desejou, a palavra que um dia dissemos ou escrevemos e que se alojou no coração de quem a soube guardar. Ou, então, o que, ao acontecer, não foi compreendido mas que, por milagre, sobreviveu e a que, no futuro, alguém virá a achar que essa coisa transporta o laço intemporal, a graça etérea, a genuína raiz que da terra se liberta.

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Jem Finer e a sua sinfonia para mil anos


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Deejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana semana a começar já por esta segunda-feira.

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domingo, junho 25, 2017

Indócil, não me permito
sossegar no rumor
nem fugir da minha vida

ignorando o fulgor


Pela primeira vez desde há algumas semanas, Lu resolveu sair de casa. Arranjou-se, pegou em livros, na máquina fotográfica, no portátil, meteu alguns alimentos num saco térmico e foi para o campo.




Voltou a gostar da sensação de conduzir. Na estação de serviço olhou para as primeiras páginas dos jornais. Receava ver alguma coisa. Não, só o expectável. Quase lamentou. Inconscientemente, era como se preferisse que o que acontecesse não fosse de sua responsabilidade.

Quando chegou a sua casa, surpreeendeu-se com a altura dos arbustos junto à vedação. Floridos, as cores quentes do verão, aquele perfume doce e intenso de que tantas vezes sentia saudades.


As árvores, enormes. Tudo parecia ter crescido de uma forma inusitada. Um bosque tal como ela tinha sonhado quando o terreno não passava de uma matagal raso no meio de um terreno pedregoso.

Quando abriu a casa reconheceu aquele cheiro tão característico. A casa parecia guardar todo o ano a memória das noites de lareira. Sorriu como que agradecida. O ambiente mantinha-se familiar apesar do abandono a que ela ultimamente o tinha votado.

Quando saíu à rua pareceu-lhe ver passar, no chão, um pequeno vulto. Foi ver melhor e não viu nada. Talvez uma ilusão de óptica.

Saíu pelo campo, câmara fotográfica, disponibilidade para o encantamento de antes. Aproximava-se, baixava-se, redescobria o prazer de captar as quase invisíveis belezas que a natureza guarda apenas para os olhares mais atentos.


Enquanto ia andando, aspirando o ar limpo e perfumado e sentindo o canto dos pássaros, ia recordando todas as vezes recentes em que lá tinha ficado com ele.

No período em que tinha vivido com o outro, aquele a quem os pais tratavam como um filho e de quem sempre esperaram que viesse a vir um neto, ficavam lá todos os fins de semana e, por vezes, no verão, toda a semana. Mas ele era demasiado boa pessoa para a prender. Dele apenas vinha acalmia, compreensão, ternura, uma vida previsível, e ela queria fogo, desafio, desequilíbrio. Mal se separaram, no dia seguinte, já ela estava a reatar com aquele a quem mentalmente tratava por traste. Não era amor, não era desejo, era sobretudo o gosto pelo risco, por pisar o risco. E, a partir de certa altura, percebe agora, a vontade de o destruir.


As idas ao campo voltaram a ser mais esporádicas. Ele era casado, tinha uma agenda familiar, e ela não gostava de lá estar sozinha. Contudo, ambos tinham deslocações frequentes ao exterior pelo que era normal, para ele, dizer em casa que tinha que ir para fora mas que estaria de regresso um ou dois dias depois. Lu aceitava bem que assim fosse e tinha o cuidado de que ele, na medida do possível, não lesasse o equilíbio familiar. Por vezes, parecia que era maior o cuidado dela pela família dele, do que dele próprio. Ali, na casa de campo dela, ele sentia-se em casa. Dizia-se um homem do campo.
Aliás, dizia-se mais do que isso, dizia-se um agricultor. Mas ela dava desconto pois, mitómano como era -- mitómano ou megalómano, que, entre uma coisa e outra, ela nunca tinha conseguido optar pela classificação mais adequada -- ele achava que tinha alma de tudo, de empresário, de camponês, de nobre, de homem do povo, de marchand de arte, de benemérito, de intelectual, de connaisseur de mulheres, de vinhos e de rosas. Claro que com o dinheiro que tinha possuía herdades onde se fazia vinho, possuía obras de arte para dar e vender, era patrono de cinquenta mil organizações que a companhia ou a fundação a que presidia ajudavam. Mas ele, ele mesmo, era pouco mais do que um narciso contemplando-se no espelho da comunicação social, das redes sociais e, até, no site da empresa e, mesmo, na intranet onde fazia com que se cultivasse um verdadeiro culto de personalidade em torno do extraordinário senhor presidente.
Estar no campo sozinha, ficar lá à noite, era, pois, experiência nova para Lu. Mas estava a agradar-lhe.


Maravilhada pelas pequenas flores do campo, pela natureza em estado quase selvagem, Lu sentia-se sempre mais livre. Fotografava tudo, encantada com a luz, com o efeito de halo luminoso que parecia rodear as flores.

Lembrou-se: ali mesmo, naquele caminho em que ia, ele a olhar para ela, a pedir-lhe que se virasse em contra-luz, queria fotografá-la no meio das flores. Depois, como tantas vezes o fazia, pediu-lhe que se despisse. Fotografou-a assim, nua, banhada pela luz do cair da tarde. Lu, lembra-se de, naquele momento, ter dito: Já não vou poder ter um filho, já é tarde demais. E não me desculpo por isso. Não sei como deixei passar o tempo, não sei que prioridades foram as minhas, não sei como cheguei a este ponto. Ele olhara-a, perplexo: 'A que propósito vem agora isso?'. Ela continuara: Um acabei com ele, outro na prática também. E agora dava tudo para ter um e tenho medo de tentar, é tarde demais. Ele abraçara-a: 'Não penses nisso'.  Com distanciamento, ela respondera: Tens filhos, tu. Não sentes falta de mais. Aliás, pouco ligas aos que tens. Eu não tenho nem vou poder ter. Ele protestara: 'Não digas isso. Claro que ligo. Adoro os meus filhos. Mas esquece. Tens uma vida plena, Lu'. Ela não respondera. Só uma pessoa muito desprovida de muita coisa poderia achar que ela tinha uma vida plena. Tinha uma vida vazia, isso sim. E não mais deixara de ter esse pensamento sempre presente. 

E ia andando, fotografando, olhando a bela e protectora serra ao longe e pensando que, à noite, no computador que felizmente não se tinha partido, ia escrever sobre isso. E ia também contar a discussão terrível que tiveram no escritório na véspera do dia em que ela tinha acordado com um formigueiro nos dedos e vazia, ausente, quase se deixara cair num poço sem fim. Ia contar como tinha descoberto o esquema, como o confrontara com isso, como o ameçara, como negara que sempre tivesse sabido, ia contar como, quando ele insistira que ela sabia, que sabia desde sempre, lhe dera uma bofetada e de tal forma violenta a bofetada que os óculos dele tinham voado, que, quando ele se preparava para lhe devolver a bofetada, ela lhe tinha atirado à cara um monte de papéis, de como o tinha visto, furioso mas meio perdido, sem óculos, o chão pejado de papéis. Ia descrever, com pormenor, a forma habilidosa como, durante anos, as contas foram falseadas.

E, enquanto ia pensando em tudo isto, Lu ia caminhando, fotografando. As flores, os frutos.


Ao regressar a casa, já lusco-fusco, de novo um pequeno vulto branco correndo. Assustou-se. Procurou. Não viu nada. Quando estava quase a entrar em casa, a mesma sensação, de novo um pequeno vulto correndo, sem deixar marcas. 


Ficou parada junto à porta a olhar. Quase a anoitecer. Os pássaros quase silenciosos. E, de repente, a impressão de estar a ser observada. Olhou em redor. E, então, ao fundo, não um mas dois, dois pequenos vultos brancos. Aproximou-se devagar. Fugiram na direcção da vedação. Foi ver.


Do outro lado, no meio do mato dois gatinhos brancos. Pequeninos. Olhavam-na, ar assustado. Lindos. Ela fez bssschh, bschhsch, gatinhos, gatinhos lindos. E ali ficou a olhar para eles e eles para ela. Certamente filhos da gata branca que, furtivamente, por lá via passar de vez em quando.


Uns bebés tão lindos. Goastava de lhes poder fazer uma festa.

Quando regressou a casa, as lágrimas corriam-lhe pela cara. Talvez emoção por ver que tinham nascido lá, filhos daquela sua amada casa, uns gatinhos tão bonitos. Mas também talvez tristeza pela sua vida tão vazia.

Depois percebeu que tinha acabado de tomar uma decisão e, conhecendo-se bem como julgava conhecer-se, sabia que era uma decisão sem retorno.

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O título do post foi extraído do poema de 'Indócil' de Maria Teresa Horta in 'Poesis'

Excepto obviamente as de Kate Moss, as restantes fotografias foram feitas por mim, este sábado, in heaven.

Amira Willighagen, com a condução de André Rieu, interpreta O Mio Babbino Caro de Puccini

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Este texto, que acabo de escrever, vem na continuação de:
Num excesso sempre incontido de perda e perdição

E continua em 'Lu, a mulher infiel' que também encerra este folhetim.

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Num excesso sempre
incontido
de perda e perdição





Estava calor. Apesar das janelas estarem abertas para o ar circular, Lu sentia-se transpirada. Foi tomar um duche. Estava a sair da casa de banho, nua, o cabelo molhado, quando ouviu tocar à campainha e, em simultâneo, bater à porta. Ouviu chamar por ela. Passado um bocado, a chave a rodar na porta. 

De novo ele, outra vez zangado: 'Só podes estar mal da cabeça. Aqui fechada, sem atenderes o telefone, sem responderes a mails, sem abrires a porta. E desististe de ir trabalhar? Não te parece que já chega desta palhaçada? Se não queres voltar a trabalhar, demite-te. Se estás passada, vai ao médico, mete baixa. Isso é um burnout. Trata-se. Agora ficares em casa fechada é que não resove nada. Merda. E nem pensas que me preocupas?'

Lui, serena, nua, de frente para ele: 'Não, não penso que te preocupo. E sabes há quanto tempo não gozo senão umas duas semanas de férias por ano? Faz as contas. Se tudo o que dei à empresa não serve de nada, nem sequer para, por uma vez na vida, poder descansar, então deixa que me farei pagar de outra forma'.

Ele sorriu ao de leve: 'Já estás melhor...'

Lu não ligou à piada. Limitou-se a esclarecer: 'Estou a escrever as minhas memórias, preciso de tempo. E cada vez me sinto mais descansada, mais leve e cada vez me lembro de mais coisas'

Foi como se tivesse sido alvejado. Olhou-a com ar aterrado. Depois deixou-se cair numa cadeira, ombros tombados: 'Merda, Lu. que conversa é essa? Se os gajos cá voltam... Tu estás a arranjar lenha para te queimares. Para nos queimarmos. Merda. Não faças isso. Deita tudo fora'.

Ela saiu da sala sem dizer nada. Pouco depois regressou com um vestido que lhe cobria levemente a nudez. Sentou-se em frente dele: 'Se soubesses como me faz bem relembrar alguns episódios da minha vida. Gosto de escrever. Parece que escrever abre os diques da memória. Não vou deitar nada fora. Quando acabar mostro-te. Afinal és um dos personagens. Acho que vais ver que estou a retratar-te com lisura. Não podia ser de outra forma. Sou fair em qualquer circunstância. Acho que, no fim, até posso ver se a editora da fundação está interessada em publicá-las. 'As memórias de L. O que achas? Será um título suficientemente sugestivo?'.

E, dizendo isto, reclinou-se um pouco no sofá e colocou um pé sobre ele, deixando ver que estava sem roupa interior.

Ele olhou mas não reagiu. Noutra altura teria saltado sobre ela, guloso e impaciente. Limitou-se a dizer 'Ainda vais dar cabo de nós. Para que é isso?'. Ela olhou-o com olhar vazio, indiferente à ansiedade dele, que insistia: 'Responde. Estás a ouvir? Qual a ideia? Posso saber?'

Lu, como se estivesse a fazer um esforço, condescendeu em responder: 'Não tem nada a ver com 'nós'. Existe algum 'nós'? Que eu saiba, não. E tal como não preciso da tua protecção para coisa nenhuma, também acho que deverias ser menos medroso até porque ficas patético assim, a mostrar que tens medo de mim. Ridículo...'


Ele levantou-se, irritado, 'Estás a ser parva. Não tenho medo. Mas acho absurdo que estejas a entregar o ouro ao bandido'.

'Quem está a ser parvo és tu, ó empresariozinho caguinchas. Quem é que te diz que não estou simplesmente a contar uma maravilhosa história de amor?', e ela esboçou um sorriso.

Mas ele não achou graça 'Deixa-te de merdas, Lu. Sou casado, não me trames'

Ela ajeitou o cabelo que, entretanto, secava, rebelde: 'E olha lá, ó cagãozinho, e quem é que te disse que tens lugar na história dos amores da minha vida? Só lá apareces nos momentos de comédia e é na qualidade de emplastro. Ou nos momentos de suspense. O grande empresário, tão incensado, tão galardoado mas, de facto, um parvalhão, um vendido, um corrupto, um assassino.'

Ele olhou-a perplexo. 'Piraste...? Trata-te. Estás maluca. Assassino? Tem cuidado com o que dizes, Lu, tem cuidado, estou a avisar-te. Ouviste?'

'Digo, sim: assassino. Quantas pessoas já morreram por tua causa? O que se suicidou, esqueceste? A dos Jurídicos a quem empurraste para uma aventura suicidária. Lembras-te? E o que morreu em casa da mãe, depois de lhe terem amputado as pernas?... Queres mais...?'

'Não estou a gostar desta conversa. Estás passada. Esse era diabético. Que é que eu tenho a ver com isso? Está calada que não estás a dizer coisa com coisa. Cala-te.'

'Não limpes a tua consciência, presidentezinho. Eu lembro-te. Ele não queria aparar os teus esquemas. Era um homem íntegro. O que fizeste para o afastar... lembras-te? Humilhaste-o, perseguiste-o. Não descansaste enquanto o homem não saíu da companhia. A companhia como tu dizes, enchendo a boca. A empresa cujas contas ele queria manter transparentes e de que tanto se orgulhava.  Saíu pela porta baixa, descartado como um inútil. Não saía de casa. Arranjou uma depressão. A mulher não aguentou. Deixou-o. Ele foi viver para um andar pequeno. Continuou fechado em casa, não queria ver ninguém. Não se mexia, não se tratava. Sim, diabético. Foram as filhas que levaram o médico lá a casa. Tarde de mais. Tiveram que lhe cortar as pernas. Quando saíu do hospital, foi para casa da mãe, uma idosa desfeita por ver o filho, antes um executivo bem sucedido, agora um inútil farrapo. Obeso, inválido. Morreu pouco depois, paragem cardíaca. Toda a gente falava disso. Fazias de conta que não tinhas nada a ver com o assunto. Lembras-te da carta que as filhas escreveram para a empresa? E tu que fizeste?'

Lu parecia calma mas ele estava cada vez mais assustado. 'Esquece. Não vale a pena, estás maluca e eu não estou para ouvir estes disparates. Estás paranóica, como se tudo tivesse a ver com tudo e como se eu fosse a mão que tudo destrói. Esqueces-te da obra social, esqueces-te de todos a quem ajudamos a ter uma vida melhor?'.

Lu reagiu: 'Uma merda. Fazes o que fazes -- e tu, tu mesmo, de facto não fazes a ponta de um corno -- apenas para termos benefícios fiscais, para ficares bem nessas gaitas da responsabilidade social, para receberes prémios chorudos que colocas sabemos bem onde. Guarda as aldrabices para quando dás entrevistas ou para quando tiveres que te defender. Comigo não. Mais do que tua confidente ou amante, sempre fui tua cúmplice. Sei de tudo. Contigo sempre partilhei a responsabilidade, a insensibilidade, a arrogância, a frieza. Não te esqueças disso.'

'É verdade. Portanto, pensa bem. Se me tramares, tramas-te também a ti. E porque haverias de o fazer? Fiz-te algum mal? O que é que aconteceu?'

'Nada. Não aconteceu nada. Simplesmente um dia acordei com formigueiro nos dedos, sem quase saber de mim. Na verdade, percebo agora, foi como se tudo o que andava a viver me estivesse a sugar a existência'.

'Merda, Lu. Apaga o que escreveste. Volta para o trabalho. Preciso de ti. O ambiente está muito mau. Depois das buscas, aquela merda está de cortar à faca. E já falaste com o Manel? Aqueles gajos não brincam em serviço. Tu vê com o Manel.'

'Não vejo nada. Estou sob escuta e tu também. Quando aqui andaram a revistar a casa até podem cá ter deixado microfones. Não sei nem quero saber. Mas é uma questão de tempo'

'Porra, Lu. Sabes lá tu se estamos sob escuta... Sabes lá se arranjam alguma ponta por onde pegar. O que não faz sentido é facilitar. Apaga tudo, apaga as merdas que andas a escrever, anda trabalhar, vamos voltar ao que era'.

Aproximou-se, estendeu os braços, baixou-se na direcção dela. Ela endireitou-se. Depois levantou-se e olhando-o nos olhos disse com indiferença 'Ao que era...? Impossível. Sob todos os pontos de vista. Todos. Apesar de muitos me desejarem, por comodismo servia-me de quem me estava mais à mão. De ti. Eras um objecto fácil. Agora acho que está na altura de não me contentar com amostras, com deturpações. Está na altura de arranjar um homem de verdade'

Irritado, ele dirigiu-se para a porta. Então, viu o computador sobre uma mesinha pequena e, com inusitada violência, deu-lhe um pontapé, atirando tudo ao chão, a mesa, o computador, o copo de sumo. E saíu, atirando violentamente com a porta.

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O título deste post é parte do poema 'Perdição' de Maria Teresa Horta in 'Poesis'

Lorraine Hunt e a Philharmonia Baroque Orchestra interpretam "With Darkness, Deep," da ópera "Theodora" de G. F. Handel 

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