Na escola primária onde eu andava, tínhamos aulas de ginástica que eram muito variadas. Umas eram ao ar livre, dadas no campo de futebol que lá havia ao pé, outras no pavilhão desportivo, outras no campo de vólei onde também fazíamos basketball. De vólei nunca gostei mas adorava basket. Também gostava de ginástica. O meu corpo era flexível e ágil e eu gostava de o usar. No entanto, nunca fui capaz de fazer o pino senão com ajuda, parece que tinha medo de tombar para trás e partir-me ao meio. De saltos e corridas também gostava muito. Saltos em altura nem por isso mas em comprimento adorava. No verão íamos para a praia e aí nadávamos e mergulhávamos.
Ele não dava aulas a uma única turma de cada vez. Não. Juntava várias salas e, com a ajuda das professoras, conseguia movimentar toda aquela gentinha, meninos e meninas, uns mais pequenos, outros mais crescidos. Era às quartas-feiras de maanhã, a manhã toda.
Este professor introduziu ainda outra novidade.
Naquela altura, o leite que eu bebia era leite que uma leiteira ia vender a casa da minha mãe. E a minha mãe depois fervia-o num fervedor de alumínio. Quando esfriava, ficava uma película em cima que era retirada. Se calhava eu achar algum bocado daquela pele, eu que odiava leite, ficava agoniadíssima. O leite tinha sempre que passar por um coador. Na escola também nos davam lanche, leite do mesmo género, leite directamente do produtor. Tal como em minha casa, também ali misturavam Ovomaltine para os que não passavam sem isso, tal como eu, senão eram vómitos consecutivos.
Mas esse professor de ginástica trouxe a novidade das garrafinhas de leite Ucal. A meio da manhã de quarta-feira havia um período de descanso. Entre a mudança de actividades, tínhamos que nos sentar e, obrigatoriamente, ir à caixa buscar uma garrafa de leite. Não era daquelas de leite com chocolate que pouco depois conheci e de que fiquei a gostar até hoje. Aquelas eram só de leite e o leite tinha um sabor que me nauseava até às entranhas. Uma professora ensinou-me a conter a respiração e eu assim fazia, tentando beber de penalti numas quantas jogadas. Era o momento de horror naquelas manhãs de que eu tanto gostava.
Mas estes dias tinham uma outra particularidade.
Era normal, na altura, as crianças entrarem para a primária aos sete anos e era também normal algumas não passarem de classe. Tinha colegas uns anos mais velhas, que não ligavam a mínima aos estudos nem se importavam de ser repetentes e isso era coisa que era encarada com naturalidade. Uma delas encontrei há uns anos num restaurante. O restaurante era dela, o marido estava a atender e ela a chefiar a cozinha. Eu gostava muito dela. Tinha uma irmã gémea, igualmente desligada dos estudos mas que costurava lindamente e fazia fatinhos para as bonecas e para os gatos. Eu achava-as o máximo, sabiam mil vezes mais que eu.
Com rapazes o mesmo. Havia alguns já bem crescidos. Um de que eu gostava imenso fazia toda a espécie de maluquices, andava sempre escalavrado. Uma vez ouvimos bater à porta. A professora abriu a porta e entrou uma senhora, mulher do povo (digamos assim) que, sem o mínimo rebuço, foi lá para pedir à professora para dar ao filho as tareias que fossem necessárias porque a ela, por mais que lhe batesse, ele não lhe tinha já medo nenhum. A professora até ficou emburrada com aquele destempero, dizia que não, que tal não era necessário. E ela insistia que era, que lhe desse com a régua, que lhe desse bofetadas, o que fosse preciso porque, se ele não passasse no exame da 4ª classe, ela tirava-o da escola porque estava farta das desobediências dele. Ele enfiado, os olhos em baixo. Depois do desacato, ela saíu de rompante, da mesma forma como tinha entrado. Fiquei com pena dele. Nunca me passaria pela cabeça que uma mãe pudesse ser assim. Quando contei em casa, a minha mãe também professora, disse com um certo ar de pena: 'Eles, às vezes, fazem-nos perder a cabeça e a vontade é mesmo dar-lhes uns sopapos mas daí até se passar à prática... '
Mas, portanto, nessas aulas a que genericamente chamávamos de ginástica, havia miúdos de diferentes idades. No fim, dividíamo-nos por sexo e íamos tomar banho nos balneários.
E aí era sempre uma festa. Teria eu portanto sete ou oito ou nove anos e estava no balneário com meninas que poderiam ter dez, onze ou doze anos, sei lá se, mesmo mais. O balneário não tinha compartimentos. Eram duas paredes com chuveiros em fiada. Estavamos ao lado umas das outras e de frente para as que estavam na fieira da outra parede. E era uma festa, uma descoberta. Algumas ds mais crescidas, que já começavam a ter maminhas ou pelinhos, tinham pudor, não queriam ser observadas. Mas algumas, mais descaradas, gostavam de exibir o seu desenvolvimento. Por vezes perseguiam as mais pudicas, puxavam-lhes os braços para que todas as pudessem ver. Fugiam umas atrás de outras, havia risos, gritinhos. Lembro-me que, uma vez, uma das meninas mais crescidas não queria tomar banho, dizia que não podia, não queria tirar as cuecas. As outras puxavam-lhe as cuecas, ela já chorava, que não podia. Por vim, já lutavam no chão. Depois, entre lágrimas, ela confessou: estava com a 'coisa'. Eu não sabia do que ela falava. As outras ficaram todas muito curiosas. Ela passou a ser a mais importante. E eu, mesmo sem saber porquê, percebi que isso deveria ser um factor de hierarquização e respeitei, aceitei a sua superioridade, passei a olhá-la com alguma admiração, tentando descobrir mais indícios dessa tal marca distintiva.
Por essa altura o meu corpo era completamente impúbere e era com curiosidade que observava o que se passava no corpo das minhas colegas. Estranhamente não me lembro do que eu fazia nesses duches, provavelmente era um mundo ainda tão distante que me limitava a observar.
Depois dos banhos, umas penteavam as outras. Depois trocavam de roupas, miravam-se, desfilavam, ajudavam-se, umas às outras, a vestir-se. Algumas levavam batons escondidos no fundo do saco de ginástica. Punham umas às outras. Mas a ideia que guardo é que era tudo feito muito à pressa para que ninguém desconfiasse, tudo entre risinhos nervosos e malícias que despontavam. Depois, mal chegavam à porta do balneário, limpavam os lábios, cúmplices. Aí já estávamos todas mais calmas, saíamos de lá a conversar e a rir, desejando que chegasse a próxima quarta-feira.
Nunca comentávamos isto com ninguém. Aquele era um espaço de intimidade e descoberda que era vivido em segredo. Nunca falei nisto até hoje.
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Lembrei-me disto ao ver o vídeo abaixo no qual o fotógrafo Alasdair McLellan fotografa alguns dos novos rostos da moda internacional, aqueles que têm sabido mostrar ter voz própria: The Voices of a New Generation. Algumas dessas modelos estão nas fotografias que escolhi para ilustrar as minhas recordações.
Alasdair’s Girls by Alasdair McLellan and Katie Grand --- para a Love Magazine
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Lá em cima Bernardo Sassetti interpreta Inocência.
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E, se ainda o não fizeram, convido-vos a descer até Silêncio e Tanta Gente.
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http://blogsdoano.pt
ResponderEliminarvai começar a 2.ª edição, ainda não está disponível o formulário, não custa nada e com 2 milhões de vizualização.porque não?
para quem usa o XP , a microsoft abriu uma excepção a software descontinuado por causa do WannaCrypt attacks - https://blogs.technet.microsoft.com/msrc/2017/05/12/customer-guidance-for-wannacrypt-attacks/
na televisão só se falou no ataque mas nenhuma referência à solução da microsoft, noticiários de merda, só referiam que afecta sistemas windows, podiam completar, windows XP principalmente
Bob Marley
“Era normal, na altura, as crianças entrarem para a primária aos sete anos”. Não somos do mesmo tempo! No meu era aos seis anos, obrigatoriamente. Eu comecei a primária, hoje básico, aos 6 anos e porque faço anos entre Janeiro e Verão. Um colega meu entrou antes, com 5 anos, porque cumpria 6 em fins de Outubro.
ResponderEliminarÉ claro que me lembro de casos como o desses de tipos que eram repetentes até dizer chega, também os havia, na altura. Hoje há abandono escolar, que, aos poucos, nos deve preocupar, mas pelo menos o acesso ao Ensino mudou e muito e para muito melhor desde então.
P.Rufino
Cada um de nós tem as suas memórias de um tempo meio infantil em que crescíamos. As minhas memórias das aulas de ginástica são outra coisa. E tão diersa que ao ler o post pensei que dentro do mundo há mesmo muitos mundos. Tantos quanto queira o pensamento de cada um de nós. Existem os que vivem na memória e os que nascem da imaginação; e os últimos são incontáveis.
ResponderEliminarBom, mas eu queria mesmo era dar-lhe uma sugestão, que me surgiu depois de ler o post de hoje que não dá acesso a comentários. Dado que gosta bastante de ler e consegue tempo nem que seja nas filas de trânsito - lugar onde eu nunca leria salvo se houvesse acidente e paragem de horas com aviso - aí vai a dica de um livro que li e gostei muito, "A Quarentena" J. M. G. Le Clézio.
Não sou propriamente uma traça literária, desconheço vários autores de que fala, conheço outros e, em alguns livros, estou até de acordo consigo. vou lendo alguma coisa sem lamentos sobre o que não leio. Ler é como viver, não é possível a experiência de tudo. Convenço-me que mais se aprende lendo menos e com prazer.