Ontem à noite, enquanto escrevia, via na televisão a missa nocturna em Fátima. Não prestei atenção à coreografia litúrgica nem ao que os diferentes intervenientes foram dizendo. Mas acho impressionante como tantas pessoas se juntam em vigília, silenciosas ou entoando cânticos, como se estivessem em adoração. Independentemente da interpretação racional que façamos do que ali se passa, tal convergência e partilha simultânea do mesmo espaço, em paz e felicidade, merece respeito e aceitação.
De manhã, tinha ouvido na rádio alguém que, em peregrinação, dizia que estava dorido dos pés mas que ia ali para mostrar à senhora que ele, com aquele sacrifício, já estava a fazer a parte dele, e que faltava agora a Nossa Senhora fazer a parte dela. Uma traficância de favores confessada com ingenuidade, como se ser crente fosse essencialmente isso. Não é que eu, quando quero, no meu íntimo, que alguma situação se resolva por bem, não me dirija a não sei quem pedindo a graça de uma cura, um nascimento feliz -- qualquer coisa. Mas peço sem traficar sacrifícios, bolhas nos pés, rezas de cinquenta avé-marias, trinta velas -- até porque tudo isso me parece insignificante e absurda paga. Peço porque é a forma que tenho de formular uma coisa que muito quero. E, se acontecer, fico muito agradecida. E agradeço sem saber a quem estou a agradecer, admitindo que possa ser ao supremo acaso que parece gerir, em silêncio, o suave equilíbrio de todas as existências.
E, ontem na rádio, vários outros peregrinos foram referindo o gáudio com que iam em sofrimento, uns para agradecer que a Senhora tivesse atendido um pedido, outros para apresentarem à Senhora uma qualquer súplica . Uma dizia que a Senhora pedia o sacrifício e que era o que ela estava a fazer, para obedecer à Senhora. E todos parecem ter interiorizado que a Senhora quer que as pessoas macerem o corpo para que Ela lhes conceda a graça de uma recompensa.
E eu não consigo criticar quem assim pensa porque esta distorção que, para mim, é desprovida de sentido tem sido a mensagem da Igreja.
Quando cheguei a casa, liguei a televisão e uma senhora que irradiava felicidade e com ar beatificado -- creio que foi a que tratou do processo da canonização dos dois pastorinhos -- dizia com segurança que a Senhora queria isto e aquilo e que as pessoas estavam ali a dizer à Senhora que aquilo e aqueloutro. Sem vacilar, ela era porta-voz da Senhora e dos interlocutores da Senhora. E eu, quando ouço alguém falar assim, sinto-me logo um bocado desconfortável.
A convicção com que os muitos crentes se sentem ungidos e aptos a divulgar a palavra do Senhor e da Senhora, modelando-as consoante lhes parece melhor e como se isso fosse a Verdade. Ao longo de anos, tenho ouvido e visto em católicos praticantes palavras e actos que me parecem barbaridades, estupidez em estado puro. Mas eu era a ímpia e eles os abençoados pela graça da fé. Alguns tentaram converter-me e, até, já dei por mim, sem o saber, a viver numa casa da Opus Dei. De lá saí, ao fim de alguns meses, em confronto com as práticas da responsável pela casa que, a meu ver, desconhecia a compaixão e a tolerância. E saí sem saber de onde estava a sair, saí porque aquele ambiente era atrofiante, intolerante, pouco saudável.
Em contrapartida, ontem, na televisão, assisti a um momento impressionante: Jorge Bergoglio, durante longos minutos, em silêncio. Um homem recolhido, entregue à serenidade do pensamento. E toda a multidão em silêncio. E eu que tanto prezo e tanto preciso de silêncio deixei-me ficar ali, presa àquela inesperada e longa imagem do silêncio, um silêncio vivido em comunhão.
E agora, ao dar uma volta pelos jornais, leio que o Papa terá dito que "Maria não é a 'Santinha' a quem se recorre para obter favores" e que recusa uma fé justiceira. Terá dito: "Grande injustiça fazemos a Deus e à Sua graça, quando se afirma em primeiro lugar que os pecados são punidos pelo Seu julgamento, sem antepor - como mostra o Evangelho - que são perdoados pela Sua misericórdia. Devemos antepor a misericórdia ao julgamento (...)"
Leio e fico feliz. É exactamente isso em que acredito. Tanto que eu abomino a noção de pecado que enforma a cultura cristã tal como nos foi transmitida. Sempre achei que, em vez disso, se deveria era cultivar o perdão, a compreensão. Toda uma matriz cultural assente no julgamento moral, no castigo, na penitência, no sacrifício não pelo bem dos outros mas para agradar ao Senhor ou à Senhora ou aos Santos. Tudo aquilo de que me afastei. E chega Francisco a Fátima e traz essa mensagem. Fico mesmo contente. Tomara que aquele meio milhão de pessoas perceba bem o alcance das palavras de Francisco.
Para mim, o que verdadeiramente importa não tem a ver com 'Deus' ou com 'Maria' mas com uma forma de ser e de estar, pelo bem dos outros, pela inclusão, pela paz.
"Percorreremos, assim, todas as rotas, seremos peregrinos de todos os caminhos, derrubaremos todos os muros e venceremos todas as fronteiras, saindo em direção a todas as periferias, aí revelando a justiça e a paz de Deus", afirmou.
E eu sinto que a minha alma sorri. Finalmente um Papa que diz coisas com as quais me identifico.
Até posso aceitar esse tal Deus. Não a divindade que faz milagres e justiceiramente olha para tudo, sempre pronto a enviar punição, o Deus das barbas que habita(va) nas mentes dos católicos e que tem servido para moralismos e ajustes de contas mas, em vez disso, como um conceito abstracto que englobe uma harmonia suprema, um silêncio maravilhoso e pacífico, a esperança numa convergência absoluta de boas vontades, o respeito pela natureza, pelos seres que a habitam, pelos elementos da vida, o amor tolerante e abnegado pelos outros em especial pelos mais frágeis e carentes, pelos perseguidos, pelos injustiçados. Nisto eu acredito. E talvez a isto também se possa chamar Deus.
Tal como post abaixo sobre A incompreensível e efémera beleza das borboletas, também aqui as imagens são fotografias da natureza vista de muito perto pelas lentes de Miki Asai (as duas primeiras) e de Magda Wasiczek (as três últimas).
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Um dia feliz a todos quantos por aqui passam.
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