quinta-feira, abril 20, 2017

O amor e o desejo são inconciliáveis?


Depois de ter desabafado sobre o triste estado em que fiquei depois de ver o brilhante João Pereira Coutinho transformado em comentadeiro avençado na Correio da Manhã TV, a falar de vácinas, caí num profundo estado de estupor do qual só agora acordei.

Antes do entorpecimento ter galgado por mim acima, estava eu a pensar escrever sobre o cheiro dos livros. Piedosos intentos os meus -- tão frequentemente gorados. Ao despertar, não que tenha tido algum sonho impróprio para consumo enquanto dormia mas porque num rápido voo planado sobre os onlines vi referência ao tema que se segue, agora estou mais inclinada para falar de amor e desejo.




Poderia dar aqui uma lição, quiçá organizar um workshop com aulas teóricas e aulas práticas, mas não posso esquecer-me que marido e filhos são leitores diários e, portanto, manda a mais elementar prudência que não me atire para fora de pé.

Não tarda, faço anos de casamento e tantos são que me tinha até esquecido da vindoura efeméride. Vou bater três vezes na madeira para dizer isto: nunca passei por nenhuma crise conjugal. Presumo que por uma razão simples: não tenho paciência para crises. Não faço ideia se tive razões para as ter mas, se tive, não me lembro. A verdade é que também não as procuro.

Ao longo da minha vida tenho conhecido de perto casos de pessoas cujos casamentos acabaram e que, enquanto duraram, eu me interrogava: como é que uma vida assim se aguenta? No outro dia falei de uma amiga minha, ciumenta e possessiva, e isto para não dizer aquilo que o meu marido diz dela: maluca. Em tempos também já falei de uma outra amiga. Relembro. Éramos chegadíssimos. Ela loura, olhos azuis, muito bonita, executiva numa grande empresa. Ele com peso a mais, badocha, truculento. Os ciúmes que ela tinha dele não dão para acreditar. Ele era um sedutor incontinente. Não era capaz de ter uma mulher pela frente, conhecida ou não, que, com malícia e graça, não dissesse qualquer coisa que, invariavelmente, deixava a mulher doente. Desde que me lembro deles, sempre lhe soube, a ele, de casos. Ele não os escondia de nós, apenas escondia dela. Contudo, gostava imenso da mulher e era amicíssimo dela, um companheirão. Mas ela queria domesticá-lo, queria tratar dele, não queria que ele apanhasse sol e ia buscar-lhe um chapéu, não queria que ele fizesse aquilo que sempre fazia depois de uma almoçarada: um mergulho na piscina e andava à volta a zangar-se com ele, não queria que ele apanhasse frio e ia buscar-lhe um casaco, e queria ter a certeza que ele chegava bem ao trabalho e contava o tempo até lhe ligar, e queria que ele lhe ligasse antes de sair do trabalho -- e ele a tudo acedia para a ver feliz (ou para não a ouvir...). Eu dizia-lhe a ela: ''mas que melga, deixa-o em paz', ou, 'deixa-o ser como ele é'. Mas era mais forte que ela. Apesar de ser muita mais bonita como mulher do que ele como homem, nunca soube de algum interesse dela por qualquer outro homem nem de qualquer outro homem por ela. Vivia atormentada, querendo prender o marido. E ele fingia que se deixava prender mas, mal ela virava costas, dava largas à sua irreverência, ao seu gosto pela adrenalina, à sua atracção pelo clandestino, pelo interdito.

As passagens de ano cá em casa eram uma tourada: ele, às escondidas, a ir telefonar à outra à meia-noite, ela pela casa fora a ver se o descobria -- e nós todos a ver se ela não o achava para não começarmos o ano debaixo de uma tempestade.

E o que ela fazia para conhecer a colega A, B ou C dele pois desconfiava que ele tinha casos com elas...


Nunca nada disto se passou comigo. Não telefono ao meu marido a saber se chegou bem ao trabalho, não o persigo para tomar conta dele porque mãe sou dos meus filhos e não dele, não tenho qualquer curiosidade em conhecer as colegas dele e quando ele me diz que alguma das colegas é velha e gorda e eu as vejo acidentalmente, novas e jeitosas e a cumprimentarem-no com piscar de olho, confirmo que ele é um sonso mas, olha, que se lixe. E se ele é um homem bonito e, apesar de sóbrio e até levemente recatado, naturalmente charmoso... Mas não consigo mesmo desperdiçar o meu tempo com ciumeiras e macacadas.

Ou seja, na verdade não quero saber e muito menos aprofundo não vá dar-se o caso de alguma coisa que descobrisse me maçar.

Ele, pelo contrário, inicialmente era ciumento. Sabia do que eu era capaz já que tinha começado a andar comigo enquanto namorava outro, namoro de aliancinha no dedo e tudo. Mas os ciúmes dele incomodavam-me. Não suporto ciúmes ou controlos. Portanto, embora ainda o seja, também já percebeu que preciso de espaço e que abomino gastar tempo com parvoíces e, portanto, já aprendeu a controlar os ciúmes ou, se não aprendeu, disfarça.

Outra coisa: aquela cena de ter que conversar sobre tudo, até à exaustão, uma verdadeira esfoliação verbal aos pensamentos, de moer a paciência um ao outro a discutir os assuntos até ao tutano, também não é connosco. Se há alguma coisa para falar, fala-se e está falado. Bola para a frente.


Dito isto. 

Haja alegria, surpresa, malandrice, companheirismo, liberdade de movimentos, compreensão, confiança, generosidade, descontração, bom perder, bom ganhar, gosto pela vida, disponibilidade para o inesperado. 

Alguns destes ingredientes cimentam o amor. Outros alimentam o desejo.

E junte-se-lhe ainda humor, entreajuda, olhares cúmplices, pele contra pele, passeios a dois, solidariedade, aqui e ali uma irresistível provocação, e mais o que nesta base possa acontecer -- e o tempo irá passando prazerosamente.

O tempo não erode nem o amor nem o desejo. O que os corrói é a falta de amor pela vida. 

Tenho um mail para responder no qual me perguntam como é que pareço tão jovem tendo já netos. Como é muito tarde não vou responder lá mas respondo aqui: não sei se pareço jovem. Sei que me sinto jovem. Não me lembro dos anos terem passado por mim. A minha filha disse no que escreveu sobre mim que não tenho idade. Talvez seja isso. Não tenho idade. Não sinto a idade. Talvez por isso sinta hoje o amor, a paixão e o desejo da mesma forma que sempre os senti: com intensidade. Como se não houvesse amanhã. Como se tivesse que os descobrir e conquistar todos os dias. Como se tivesse vontade de os festejar todos os dias.


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E isto a propósito do que li e que tem a ver com o que a psicoterapeuta Esther Perel concluíu de um estudo que fez ao longo de anos em mais de vinte países. Mostro aqui o vídeo em que ela fala disso. Já há tempos o partilhei mas acho que o tema merece uma revisita. Tem legendas em português. As traduções nunca são famosas mas, para quem não esteja muito à vontade com outras línguas, acho que é melhor que nada.


Esther Perel: O segredo do desejo num relacionamento duradouro 



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Relembro: desçam, por favor, para perceberem porque é que não deverão ver  a Correio da Manhã TV -- e isto se não querem ter um baque como eu tive.

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5 comentários:

  1. Às vezes leio-a e penso "esta pessoa não percebe nada da vida". Lá por o tempo não lhe ter levado o desejo pelo marido (graças a Deus, que não tenho razão para lhe desejar mal), quem é você para dizer que não é o tempo que o leva aos outros? Não é a idade, minha cara, é o hábito. Há outros aqui deste lado (sem duvida não tão felizes ou perfeitos como a senhora) a quem às vezes a vontade passa. Caramba, é o desejo ou amor à vida, ou lá o que lhe queira chamar, que mandam procurar a mudança.
    Cump.

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  2. Acertadíssimo comentário o de cima. No entanto, fica uma coisa por explicar. Diz "Como se tivesse vontade de os festejar todos os dias", mas como é que os festeja todos os dias se escreve no blogue até tarde enquanto o marido dorme?
    E sim, a vida é outra coisa, não é essa alegria e essa perfeição em que se apresenta sempre.

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  3. Resposta à Anónima que pela 2º vez faz a mesma pergunta.

    Com o meu marido a dormir como é que eu poderia festejar? Prefiro fazê-lo quando ele está acordado.

    Simples de perceber, não é...?

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  4. Resposta à primeira Anónima:

    Se não adormecer antes, respondo no corpo do blog. Ok?

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  5. Curiosa a sua resposta, estava a ler e pensei o mesmo.
    Com o marido a dormir???
    Como se houvessem horas marcadas para festejos, tal UJM diz, há festejar a vida qdo nos apetece, qdo estamos muito bem despertos porque nem teria graça se assim não fosse.
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    "Simples de perceber, não é...?"

    : é, mto simples.
    Não há dias nem horas marcadas para o que nos dá prazer e, se escrever é um deles já que a noite permite essa tranquilidade, que fique o desassossego que nos relaxa para outras.
    Quem assim comenta deve ter deveres a cumprir, se calhar só aos sábados e... vai com sorte.

    Mariana

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