Durante vários anos trabalhou comigo uma mulher com uma vida atribulada. Quando a conheci era ela uma jovem vistosa, casada, com uma filha pequena. Eu tinha poucos mais anos que ela. Uma vez um outro colaborador meu organizou um churrasco na sua casa de praia e convidou toda a gente e respectivas famílias.
Foi nesse dia que conheci o marido dela. Talvez uns dez anos a mais que ela, ar de pato bravo bem sucedido. Nesse dia vi também que tinham um grande mercedes*. Fiquei muito surpreendida. Achei que ela não tinha nada a ver com ele.
Muitas vezes me surpreendia com as roupas que ela usava. Muito morena, muito maquilhada, cabelos compridos a que, por vezes, dava uma tonalidade ruiva, sempre com saltos altíssimos, saias muito justas e muito curtas, decotes arrojados ou, no verão, vestidos ou blusas sem costas -- ela era, sem dúvida, uma mulher que dava nas vistas.
Por causa dela e de uma outra estagiária que eu lá tinha que competia em provocação com ela mas em louro e uma outra que, não sendo tão aparatosa como as anteriores, era também uma bela mulher, e trabalhando todas numa zona específica, é que um dia, o nosso contabilista, homem à beira de reforma, me disse ao entrar para lá: gosto sempre de vir aqui a este seu departamento: é como ir para o Meco. O que eu me ri. Eu própria, na altura, era uma mulher pouca dada a vestimentas muito fechadas. A única vez que, por essa altura, vesti um vestido aos quadradinhos miúdos em preto e branco, mais propriamente em pied de poule, abotoado de alto a baixo, cinto fino, mangas compridas, decote subido, salto alto, ouvi da minha secretária, ao lá chegar: 'Ai... que mudança de visual... Não leve a mal mas parece uma viúva... Mas daquelas ainda muito desfrutáveis'.
Mas, voltando ao ponto onde ia.
Esta de que falo não conduzia. Vivia na Linha e deslocava-se para o trabalho de comboio. Naquelas alturas os comboios para Lisboa ouvia eu dizer que vinham a deitar por fora. E eu ficava sempre a pensar no que seria aquilo, com ela naqueles preparos no meio da maltosa amontoada.
Esta de que falo não conduzia. Vivia na Linha e deslocava-se para o trabalho de comboio. Naquelas alturas os comboios para Lisboa ouvia eu dizer que vinham a deitar por fora. E eu ficava sempre a pensar no que seria aquilo, com ela naqueles preparos no meio da maltosa amontoada.
Um outro que trabalhava também comigo teve uma paixão tresloucada com ela. Anos mais tarde foi um outro (que, tantas fez por ela, a ia arranjando bonita...). Ela ria, gozava com o colega apaixonado, mas ia almoçar com ele, saía e iam beber um cafezinho, muitas vezes parecia-me que ia passear com ele (também casado) em vez de ir para casa.
No meio disto, outra situação: os ciúmes do marido. Ela dizia que era um tormento e volta e meia discutiam ao telefone. Os colegas falavam da doença do marido: um ciumento paranóico, que lhe ligava a saber se ela estava a trabalhar, que queria saber a que horas ela ia chegar para a ir buscar ao comboio, que queria controlá-la até mais não poder. Muitas vezes, vendo que era ele, ela pedia aos colegas para o atenderem e eles, no gozo, davam-lhe informações dúbias para o deixarem em brasa, coisa que a divertia imenso.
Eu lembrava-me do pintas que tinha visto naquele churrasco e ficava sem perceber o que via ela nele e, por outro lado, descrevendo-a como um ciumento doentio, interrogava-me porque andava ela sempre arranjada de uma forma que não podia deixar insensível os outros homens.
Anos depois as coisas entre eles azedaram a sério. Ela passou dos flirts para os namoros às escâncaras, o marido tentava apanhá-la em flagrante, ela ficava furiosa -- e falava abertamente das brigas constantes com o marido. Depois contou que saíu de casa e foi viver com a filha, já jovem adolescente, para uma outra casa que tinham. Mas depois contava-me que ele lhe aparecia lá e que ela, por pena, lhe abria a porta e que acabava por deixá-lo lá ficar até à discussão seguinte.
Eu não percebia nada daquele casamento. Um dia enchi-me de coragem e perguntei-lhe '... mas e têm relações...?'. Resposta dela: 'Violações! Aquilo são violações não são relações!'. E ficou quase a chorar. E eu aterrada. Perguntei: 'Mas então e porque aceita isso?' e ela encolheu os ombros e disse 'Chego a ter pena dele...'. Respondi-lhe que achava tudo aquilo doentio. Ela concordou.
Muita água correu ainda debaixo daquela ponte. Acabou por se divorciar depois de muitas histórias que nunca percebi se eram verdadeiras. Cheguei a ir com ela a uma esquadra para que fizesse queixa do marido, num dia em que me apareceu tarde, desmaquilhada, ar arrasado, dizendo que ele lhe tinha batido. Chegou lá, desistiu, não quis apresentar queixa.
Já aqui antes falei dela a propósito da política autárquica: uma outra história inacreditável.
Como disse, nunca percebi, entre tantas e tantas histórias rocambolescas a que lhe assisti e com tantos e tão diferentes intervenientes, qual a verdade.
Mas aquela das violações e de parecer encarar tal coisa com naturalidade nunca mais esqueci.
Que há muita violência doméstica encapotada --- e muita violência também a nível sexual -- e muitas relações sexuais não consentidas e não denunciadas é coisa que é facilmente intuída.
Acredito que, se me acontecesse a mim, talvez fosse tentada a esconder o assunto. Teria vergonha, talvez achasse que a culpa seria também um pouco minha, não quereria que os outros soubessem, que andassem a comentar assuntos da minha intimidade. Não deve ser fácil denunciar a situação. Imagino que uma mulher que seja molestada sexualmente pelo marido (ou pelo namorado ou companheiro, tanto faz) também deve ter muito medo de retaliações. Ou, se ainda gosta do homem, talvez o descupabilize e queira acreditar que não volta a acontecer, ou que aquilo é apenas uma forma doentia dele manifestar o seu amor ou que aquilo foi do stress, que são as circunstâncias que o levaram a isso. Imagino.
Deve ser uma situação muito complexa. Uma mulher a viver tal drama deverá arranjar coragem para pedir ajuda, é o que penso. Mas fácil é pensar, estando de fora. Difícil deve ser arranjá-la quando se vive debaixo da sensação de medo, de vergonha, de angústia.
Estou a escrever isto depois de ter visto o vídeo abaixo. Sinto sempre alguma reserva quando vejo pessoas que fazem das suas vidas uma história que vendem em TED's ou outras conferências. Mas desta vez foi um pouco diferente. Ao ouvir a história que violador e violada contam a duas vozes senti a mesma estranheza que sentia quando assistia à vida daquela minha colaboradora: gostava ela dele? Depois de tudo aquilo que contava, continuava a gostar dele? Ou se não gostava porque o aguentava? Desculpava-o?
Aqui a história não é bem assim mas merece ser ouvida. A jovem que foi violada, depois de esconder o sucedido durante anos, resolve contactar o violador e depois de, durante outros tantos manterem uma conversação por mail, acabam por se encontrar e exorcizar as culpas e vergonhas.
Vejam, por favor.
Thordis Elva and Tom Stranger:
Story of reconciliation
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As fotografias são de Nobuyoshi Araki
Lá em cima a música é Train de Shigeru Umebayashi
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* Nada contra conduzir Mercedes. Até porque,..
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As fotografias são de Nobuyoshi Araki
Lá em cima a música é Train de Shigeru Umebayashi
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* Nada contra conduzir Mercedes. Até porque,..
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E para uma coisa completamente diferente, queiram, por favor, descer até ao post seguinte.
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