terça-feira, fevereiro 21, 2017

Eu.
Sem Tom. Sem Dindinha.




Não me sai da cabeça. O dia todo a pensar nisto. Não o cheiro, não as mãos, não o olhar, não a voz, não os movimentos do corpo, não o toque da pele. Qualquer outra coisa. Não sei o quê. O dia todo. Tento recuperar algum fragmento mas não sei de que coisa. Rememoro as palavras, os gestos, os silêncios. Uma e outra vez.

Qualquer coisa me está a falhar. 

Tento descobrir o que em mim fez com que tudo fosse tão fácil. Alguma coisa foi mas não sei o quê.

Recordo o primeiro, o segundo, o terceiro dia. Que chave abriu, tão facilmente, a minha intimidade? Em que momento o meu corpo, antes de mim, reconheceu o que eu ainda não descobri?

Li um dia uma frase de Yvette Centeno: amor é quando dois corpos se reconhecem. Não sei porque essa frase aparece associada a isto que não me sai da cabeça. 

Dois corpos como dois cães. Corpos que se reconhecem.


Estive a dormir até há pouco. A cabeça desligou. Agora que acordei, a mesma estranha impressão. 

Dindinha ligou de tarde. Que eu fosse lá a casa, iam reunir-se para decidir aspectos finais. Gostava da minha opinião. Não quis. Disse-lhe que tinha um trabalho para concluir. Antes de se despedir, acrescentou: 'Não sei do estupor do Tom, não atende o telefone. Enviei-lhe um sms a dizer para vir cá a casa, e sabe o que ele respondeu, prima? Que não tinha tempo para babysitting'. Ela aborrecida e eu, não sei porquê, a achar normal. Qualquer coisa que me faz parecer a resposta expectável.

E, no entanto, em qualquer das três ocasiões, sempre o vi cortês, até galanteador. Porque é que a dissonância daquele desagradável sms não me choca não sei dizer. 

Há bocado, antes de mudar de roupa, hesitei. Pensei que ele poderia voltar, devia estar arranjada. Mas parece que adivinhei que ele não viria. Não veio. Não disse nada. E eu sinto que é normal ele não dizer nada. Mas parece que sinto que ele está a pensar em mim, talvez com vontade que eu lhe ligue. Não vou ligar. Eu queria que ele ligasse mas sei que não vai ligar. Os corpos como cães, aguardando.

...

E agora, ao escrever isto e ao pensar que ele facilmente obteria o meu endereço de mail tal como eu também facilmente obteria o dele, senti um calafrio. De repente, parece que se escavou um perigoso abismo sob os meus pés.

De repente soube.

Um estremecimento íntimo, um frémito no mais interior do meu corpo.

Aquela estranha impressão de que o conhecia, de que o conhecia muito bem, muito, muito bem, materializou-se: sei.

Sei quem tu és, Tom. Meu Deus, se sei. Meu Deus, sei quem tu és. Sei. Que horror. Que coisa mais estranha esta. Não tenho dúvida. E tu também sabes, Tom? Tal como eu, tu também sabes? Sabes e disfarçaste? Ou ainda não descobriste? Ai Tom, Tom, que coisa esta. Chamas-te então Tomé? Ou também não?

Ah, como afinal te conheço mesmo tão bem. E como tu me conheces tão bem. Tão bem que me conheces. Tão bem.

Mas saberás tu qual a mulher que ontem tiveste nos teus braços? Terá o teu corpo também reconhecido o meu?


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Este é o quinto episódio do folhetim 'Dindinha'. O episódio anterior pode ser visto aqui e de lá poderá recuar até aos restantes (isto se gostar de ler de trás para a frente porque, se gostar de ler pela ordem natural dos factos, deverá ler de baixo para cima)

As fotografias foram feitas rente ao rio. 


La Rêveuse é interpretada por Jordi Savall.

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Se preferir ler sobre 'Coisas da mente', então, é mais simples: é apenas descer.

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