Se pensar que sou lida por pessoas desempregadas, com fracos rendimentos, por pessoas que passam por dificuldades, que vivem solidões severas ou situações assim fico um pouco tolhida. Tudo o que eu diga sobre a minha vida me parece fútil e descabido. Outras vezes penso: falo de trânsito, de trabalho absorvente e de coisas deste género e quem vive em lugares sem trânsito ou que sai de casa às nove e regressa às seis deve achar que a vida tal como a descrevo é descabida ou que exagero ou que tudo é voluntário pelo que não me queixe.
De certa forma é pois ninguém me obriga a nada. Mas são opções que se fazem e que, depois, acabam por se transformar na nossa forma de viver.
Vivo numa cidade. trabalho noutra. Para ir para o trabalho ou para regressar a casa uso carro. Podia não. Contudo, teria que usar vários meios de transporte para atingir o meu destino, perderia um empo infinito. Acresce que não trabalho num único local. Se não usasse carro, o tempo em espera, uso e mudança de transportes públicos impedi-lo-ia.
Depois, quando se trabalha em funções como a minha, não se pode dizer 'ah, isso não, já não tenho saco para ralações'. Confiam em nós, convidam-nos mas, no fundo, em certas situações, é como se nos estivesse a ser pedida ajuda. Não é possível dizer que se vão catar. Há a solidariedade, o dever, quase a obrigação.
Para quem está longe desta realidade pode não ser fácil de entender mas, para quem vive dentro destes meios, sabe que é assim.
E, com a elevada dose de responsabilidade, vêm as preocupações, vem a quase permanente disponibilidade.
Claro que depois há também alguma recompensa. E, por vezes, com a recompensa, vêm outras pequenas maçadas. Maçadas de barriga cheia, bem sei.
E é ao pensar nestas pequenas maçadas que acho que talvez nem devesse falar delas aqui. Pode soar a futilidade, a estupidez. E não vou dizer que não seja. É, sei bem que sim. Mas se sou tudo menos perfeita, porque hei-de querer fazer-me passar por aquilo que não sou?
Mas... isto a propósito de quê?
Conto.
Dia do carro ir à revisão. Sempre um transtorno. Tinha que estar cedo. Não era eu que ia levar o carro, alguém faria isso por mim. Privilegiada, eu sei.
Mas o trânsito... Atrasada. Envio um sms: atrasada. Quando chego, entrego a chave. Peço que, depois, passem as cadeirinhas (que andam no banco de trás) para o carro de substituição. Entretanto, uma manhã de loucos. Às tantas, resolvo fazer um micro break. Ao ir buscar um chá, cruzo-me com quem me ia levar as chaves. diz-me o sítio onde está este carro. Pergunto se não se esqueceu as cadeirinhas. Que não, claro. Pergunto a marca. Tudo bem. Andei durante oito anos em carros dessa marca. Pergunto se é grande. De tarde vou para um sítio cujo acesso ao parque de estacionamento é um desafio: íngreme, estreito, com uma curva apertadíssima. Diz-me que é um monovolume, em dimensão menor que o meu. Descanso. E vou buscar o chá e logo mais afazeres. Nem mais me lembro do carro.
Hora de almoço, minutos contados. Chego ao carro. É alto, espaçoso. Espreito para ver se descubro a ranhura para enfiar o comando. Ranhura nenhuma. Penso. Gaita, está a começar bem. penso: será que isto tem para aqui uma chave oculta? Não descubro. Espreito para tentar ver se haveria ranhura para uma chave. Também não. E eu com pressa. Chego o banco para trás para ter uma visão mais panorâmica do tablier, para espreitar melhor. Nada. Penso: raios partam esta gaita. E não soube avisar-me que isto tinha truque...? Vejo um botão a dizer start ou coisa do género. Ponho o pé na embraiagem e carrego no botão. Nice. Começa a trabalhar. Procuro o travão de mão. Não existe, claro. Vejo um botão com um P, carrego. Apaga-se a luz. Penso que devia ser aquilo. Vejo como é a marcha-atrás, faço a manobra e aí vou eu. Chego à rua, começa a pingar. O limpa para-brisas começa a trabalhar sozinho. Normal. Entro na auto-estrada e desata a chover copiosamente. Quero pôr aquilo a limpar mais depressa. O manípulo tem mil funções. Lá consigo. Mas não consigo descobrir como pôr o de trás. Chove tanto que mal se vê e eu sem descobrir onde ligar o limpa pára-brisas de trás. Entretanto, o telefone não pára e não tenho bluetooth, não dá para atender.
Atrasada, lá chego ao meu destino. estaciono. Desligo o botão e o carro desliga-se. Quero travar. Carrego de novo no botão com o P. Nada. Não acende luz nenhuma. Espreito a ver se descubro alguma coisa que possa também parecer-se com um travão. Não. Carrego outra vez. Nada. Penso: se calhar é assim mesmo, é inteligente e percebe que deve ficar travado. Vou sair. Procuro no banco o comando. Lá está no meio da echarpe e da carteira.
Saio do carro com o comeando na mão. Um botão tem o sinal de porta aberta, outro o de porta-bagagens aberto. Penso: raios partam isto, e para fechar? Experimento carregar no símbolo da marca. As portas trancam-se. Vá lá. Quando chego ao pé da minha companhia digo que não percebi se o carro ficou travado, que não se acendeu nenhuma luz quando carreguei no botão. Disse-me que no dele levanta-se uma patilha. Neste não, disse eu, neste é um botão.
Quando regressei ao carro, espreitei o dito botão. Tinha mesmo uma patilha por baixo. Levantei-a e acendeu-se a luz. Ou seja, tinha deixado o carro destravado. Bonito serviço, pensei. Vá lá que não desandou.
Quando saí, chuva que deus a dava. Pus-me a apalpar o manípulo e lá lhe dei uma torção na ponta que pôs a funcionar o limpa pára-brisas de trás.
Depois o tal estacionamento. Perguntei ao guarda se o piso intermédio estava folgado. Disse que naquela altura sim mas que ia haver uma reunião, estavam pessoas para chegar. Gaita. Lá fui para o meu piso a pensar que só me faltava riscar o raio do carro. Mas a verdade é que foi bem mais fácil do que com o meu.
Quando agora à noite saí com o carro pensei: diabo daquela curva, será que o carro tem sensores a toda a volta? Tinha. Correu bem.
Mas vinha a pensar que já não é a primeira vez que me meto num carro desconhecido, sem perceber como funcionam as coisas mais simples, e, para ajudar à festa, desata a chover. De facto, para aí há uns três anos, peguei num à noite, numa noite de chuvada, e foi o bom e o bonito. Tudo naquele carro era misterioso, não descobria nada. Quando finalmente me meti à estrada, de noite e a chover, não atinava com nada daquilo, um susto, a andar devagarinho, o vidro embaciado e eu a pensar, aquilo que tantas vezes penso, que não há dinheiro que pague situações assim. Mas, quando tenho esses pensamentos parvos, logo percebo que é uma estupidez estar a vitimizar-me e que mais vale que, numa próxima, antes de me meter no carro, peça algumas informações.
Amanhã entrego este e hão-de trazer-me o meu. Vou sentir aquela sensação boa de conhecer os cantos à casa.
Agora ouvi um toque. Tinha andado há bocado à procura do telemóvel e não o tinha descoberto. Afinal estava caído aqui ao pé do sofá. Espreitei os mails de serviço. Um deles tinha a acta da reunião em que estive toda a tarde. Como tenho cá os meninos tinha logo avisado que não podia sair a desoras. estava à espera de algum momento de mudança de assunto para me levantar. Nada. Assunto pegado. Mas já passava das sete, tive que me levantar à papo-seco. Vejo agora pela hora de envio do mail e pelos assuntos que deve ter acabado pouco depois.
É tarde. Amanhã a alvorada é cedo, vamos levar os meninos à escola. dormem tranquilos nas suas caminhas. Antes de adormecerem, estivemos a jogar ao jogo da glória mas numa versão sintética. ele tenta fazer batota, a irmã denuncia-o, ele desata a rir.
Tenho estado a ouvir June Tabor. Gosto muito dela. Para partilhar convosco escolhi Send us a quiet night. Espero que gostem.
Agora que estão a ler-me se calhar já é de dia. Tomara que seja um dia bom, tranquilo. Para mim e também para vocês que estão a ler estas minhas palavras sem grande sentido.
Agora que estão a ler-me se calhar já é de dia. Tomara que seja um dia bom, tranquilo. Para mim e também para vocês que estão a ler estas minhas palavras sem grande sentido.
As imagens são fotografias feitas por drones. Estas concorreram e algumas foram premiadas no SkyPixel 2016 Photo Contest's. Vi-as no Bored Panda. Descobir imagens como estas, algumas tão belas (a primeira é de uma beleza extraordinária, não é?), ouvir uma música boa, estar aqui a escrever -- são partes boas da minha vida.
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