segunda-feira, novembro 14, 2016

Primeira lição da escuridão.
Todas as manhãs do mundo.



Veste-me o corpo o silêncio. Há pouco, sentindo a noite a insinuar-se por entre o arvoredo, espreitei pela janela. A lua que hoje tanto brilha iluminou o meu coração que nada pede. Veste-me o corpo a harmonia dos dias e a paz que habita o meu espírito. Fecho os olhos para que a luz branca da lua se reflicta no meu coração que nada espera.

Recolho-me. Sento-me num canto, mãos no regaço, olhos fechados. Veste-me o corpo o agradecimento. A graça do silêncio que se senta ao meu lado abençoa as longas horas da minha doce solidão. Nada desejo.

Muito a vida já me deu, tanto, tanto. E da música, da cor, do afago, do afecto, do voo das livres aves, da memória dos montes e dos mares, das árvores e das palavras que ouvi e que li, eu fiz uma renda feita de ar que atirei ao vento. Nada tenho agora, nada quero ter. Sou eu, eu e a minha pele nua, eu e o meu corpo que nada pede.

A noite está clara e fresca. Há uma luz branca que escorre dos céus. Percorro os caminhos de pedra e sombra, mal ouço os meus passos silenciosos. Estou descalça. Sinto a humidade da pedra. A névoa da noite derrama-se na minha pele.

Mal lembro a vida que foi a minha.

Amores tive, prazeres intensos. A minha boca conheceu o mel morno que existe no corpo de quem se ama, o latejar do sangue quando arde, a loucura que tinge de paixão o olhar quase cego. A minha pele conheceu a sede das mãos que, sôfregas e impúdicas, procuravam a febre do meu corpo. Tudo guardei e de tudo me desfiz. O meu corpo, tão amado que foi o meu corpo, nada pede, nada espera. Apenas o silêncio o veste.

Sento-me agora junto à fonte ao fundo do jardim, ouço o correr lento da água, o gotejar, ouço o suave rumor de um pássaro por entre a folhagem. Vai alta a noite.

Sem nada ver, passo a mão pelo tronco da árvore à beira da qual me acolho. Baixo-me, sinto a terra, aspiro o perfume que as flores exalam, abertas para a noite. Vêm até mim palavras que ouvia dizer quando o meu corpo também se abria, perdido de amor, palavras sussurradas no calor de abraços apertados, íntimos, infinitos.

O silêncio é agora a minha companhia. Penso em heróis longínquos, ninfas, deusas, traições, naus que partem, adeus que ficam a pairar no ar, lágrimas, saudades, mágoas, amores não confessados, aventuras, regressos, incertezas, palavras não ditas, interditas, malditas. Sonho. Aos sonhos me entrego.

Nada espero. Adormeço sobre as ausências que me habitam. Adormeço sobre os meus sonhos que me trazem cânticos inocentes, anjos brancos, sem corpo, sem rosto, flores transparentes, o sopro de uma respiração que tão bem conheço.

Depois acordo. A luz já rompe os céus. O meu corpo nu mistura-se com as folhas orvalhadas. Ao meu lado estão pétalas brancas, flores desfolhadas, e uma folha onde distingo a caligrafia daquele de quem o meu corpo guarda ainda o cheiro. Escondo de mim as palavras que não quero ler.

O meu coração nada pede, o meu corpo nada espera.
Mas, em segredo, o meu coração e o meu corpo aceitam a benção da visita que, ao raiar da aurora, um certo anjo teima em fazer-me, um anjo sem idade, sem nome, sem rosto, sem pudor, sem piedade.

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Pintura: François Boucher - Danaë
Música: Troisième leçon des ténèbres, Tous les matins du monde de François Couperin, direcção de Jordi Savall com Montserrat Figueras e Maria Cristina Kiehr.

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2 comentários:

  1. Sonhou a preceito. Parabéns.

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  2. Felizmente há luar.
    Quanto à natureza, cena de um casal italiano no Alentejo,
    após alguns dias de presença, visitas locais e gastronomia:
    Paragem breve do autocarro algures na planície.
    Saída por momentos, ela sai e no exterior vai abraçar uma árvore.
    Sentir a Terra, exclamava a italiana.
    Felizmente há música.

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