É certo que apenas aqui cheguei tarde e más horas. Como se não bastasse, já aqui no sofá e ainda os mails de trabalho a chegarem, quase uma perseguição.
Não quero que pensem que sou viciada em trabalho. Não sou. Sempre que passo por uma fase destas, enquanto tento fazer o meu melhor, só me apetece descansar -- o que, para mim, é sinónimo de me evadir. À hora de almoço, conversando com o meu marido, dizia que me apetecia ir até Madrid. Saturada de tanto trabalho, penso nos museus, passear no Retiro, ver os pintores de rua, espreitar as montras na Salamanca, o bairro dos artistas, descer a Alcala, a Mayor, a Castellana, picar à noitinha, andar ao acaso. Pensar nisto descansa-me a cabeça, deixa-me com mais paciência para aturar os assuntos diários que teimam em submergir-me.
Por um lado, lendo os mails que me chegam a esta hora, por outro espreitando as reacções à vitória de Trump (que não são simétricas às da derrota de Hillary) -- depois do espanto, as ruas a polvilharem-se de protesto -- e com a televisão num maçador debate sobre o tema, o meu corpo sucumbiu.
Acordei há pouco, o meu marido a perguntar-me a que horas me levanto amanhã, e já a televisão num outro canal de televisão mas em que o tema se mantém.
Os protestos nas ruas americanas parecem estar a aumentar.
Os protestos nas ruas americanas parecem estar a aumentar.
No entanto, parece que, de repente, um desinteresse pesado se abateu sobre mim. Face a situações destas, não sei o que fazer ou, sequer, se vale a pena fazer alguma coisa. De que serve todo o conhecimento do mundo, os clássicos da literatura, a genialidade das grandes composições musicais, a matemática e a física, a biotecnologia, de que servem milhares de apps inovadoras, impressoras 3D que imprimem na hora toda a espécie de produtos, incluindo sucedâneos de órgãos humanos, de que servem encontros transnacionais para os quais convergem os mais inteligentes e criativos do mundo? De que serve tudo isso se o devir do mundo está nas mãos dos menos informados, dos mais vulneráveis, dos mais manipuláveis, e se as decisões, em última instância, nascem sobretudo do mais básico instinto de sobrevivência e da análise mais primária por parte do lado mais informe da imensa e acrítica mole humana?
Conquistas civilizacionais de gerações valem nada para quem nem as conhece ou trava uma luta diária contra a fome, o medo ou uma corrosiva insegurança.
Parte do mundo está feito ruínas e devastação. Desses lugares de guerra e fome fogem as populações, nem sabendo já onde se acolher. Outra parte do mundo ergue muros, vedações electrificadas, deixa as pessoas morrerem no mar ou na praia ou fecha os olhos à miséria que se deita em colchões pelas ruas.
Estarei a ser pessimista. Certo. Há um outro mundo em que as montanhas são verdejantes, as praias azuis, os mares férteis e as gentes sorridentes e felizes. Mas, tantos anos de construção leva já a civilização que seria razoável esperar que todo, ou quase todo, o mundo fosse já uma terra de leite e mel, paz e amor.
Depois de rasteiras como estas, em que os povos escolhem quem menos preparado está para fazer o destino singrar no caminho do desenvolvimento e da inclusão, fico de tal maneira desiludida que apenas me apetece refugiar-me no lugar mais longe de tudo, longe dos meios de comunicação social, no meio do mato, protegida pelos troncos das árvores e pelas rochas, convivendo com bichos do campo, pássaros, vendo a natureza a reinventar-se a cada dia, lendo os livros que me fogem no meio da insana correria do dia a dia.
Ficção, claro. Faço parte deste sistema indigente, não vale a pena pôr-me de fora como se fosse vítima ou espectadora. A minha passividade ou cegueira contribuem também para este caldo que abomino. Não sei é como fazer de outra maneira. No entanto, no fundo de mim, nestas alturas em que me apetece desistir, sinto que não devo seguir o caminho mais fácil. Tenho é que tentar descobrir como poderei fazer de outra maneira sem me destruir, sem sentir que desperdiço a minha vida.
Nos dias assim, entrego-me ao vício. Depois de almoçar e apesar de ter um programa recheado da parte da tarde, tanto que apenas me vi livre dele já a noite me trazia fome e cansaço, ainda fui enfiar-me numa livraria. Ia só para que a visão dos livros me amparasse a alma e me desse ânimo para a tarde que aí vinha.
Mas os livros são mais do que isso. Não são apenas uma presença silenciosa. Puxam-me, agarram-me. E eu tenho que lhes tocar. Tenho aqui comigo aquele que, com pele macia e rosto elegante, me tomou as mãos e não foi capaz de me deixar sair triste como tinha entrado. Paula Rego por Paula Rego, por Anabela Mota Ribeiro. Estive há pouco a folheá-lo, com vontade de encontrar pequenos trechos para aqui transcrever. Mas é tarde, o texto já vai longo. Mais vale um dia ocupar-me apenas das fantásticas palavras de Paula Rego. Gosto muito dela. É daquelas pessoas que sobrevive mantendo-se inocente e livre. Coloco-a na galeria de mulheres inteiras, de verbo frontal e ridente, onde estão também Agustina, Graça Morais, Maria Teresa Horta.
É muito tarde. Estou a descansar a cabeça e talvez a cansar-vos a vós. Não respondi a comentários ou mails e isso faz-me sempre sentir indelicada. Peço-vos desculpa.
Escolhi imagens de pinturas de Paula Rego mas comecei por escolher flores. Apetecia-me compensar a cinza que parece abater-se sobre as minhas palavras com a cor e o perfume das flores. Mas depois achei que era mesmo a companhia de Paula Rego que hoje me fazia bem.
Escolhi também uma frase dela para encimar este texto que por aqui andou, de viela em viela, sem rumo certo, na companhia de Jordi Savall. Não sei bem porque escolhi estas palavras, fazemos coisas de propósito para tomar um risco ainda maior. Talvez porque quero acreditar que o risco de se ter escolhido Trump venha a valer a pena, talvez o mal venha a mostrar-se tão ameaçador que os que hoje correm a entregar-se nas mãos dos assustadores palhaços que se anunciam como anti-regime percebam que não são eles que sabem o caminho para a terra do bem, talvez se perceba que está na hora de os mais lúcidos e bem formados tomarem o lugar dos burocratas e dos abutres sem rosto. Talvez. Não sei.
Escolhi imagens de pinturas de Paula Rego mas comecei por escolher flores. Apetecia-me compensar a cinza que parece abater-se sobre as minhas palavras com a cor e o perfume das flores. Mas depois achei que era mesmo a companhia de Paula Rego que hoje me fazia bem.
Escolhi também uma frase dela para encimar este texto que por aqui andou, de viela em viela, sem rumo certo, na companhia de Jordi Savall. Não sei bem porque escolhi estas palavras, fazemos coisas de propósito para tomar um risco ainda maior. Talvez porque quero acreditar que o risco de se ter escolhido Trump venha a valer a pena, talvez o mal venha a mostrar-se tão ameaçador que os que hoje correm a entregar-se nas mãos dos assustadores palhaços que se anunciam como anti-regime percebam que não são eles que sabem o caminho para a terra do bem, talvez se perceba que está na hora de os mais lúcidos e bem formados tomarem o lugar dos burocratas e dos abutres sem rosto. Talvez. Não sei.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.
Alegria, saúde e sorte é o que desejo a todos.
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Pois. Ninguém sabe o que vai acontecer. Mas os propósitos da JM parecem-me bem definidos e contribuem de alguma forma para melhorar a conjuntura actual. Paula Rego e seus monstrinhos vitalícios, ou melhor, eternos, estão no espírito dos acontecimentos. E soubemos do seu livro novo.
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