sábado, outubro 22, 2016

O futuro de uma pessoa contido num CV.
O futuro de uma pessoa contido em duas frases numa entrevista de emprego.





Os CVs agora são muito formatados. Faz já algum tempo que não leio um curriculum em escrita livre. Gostava de ler CVs que tinham vida lá dentro, nos quais as pessoas tentavam traçar o seu retrato. Agora não. CV em modelo Europass. Coisas assim. São mais rápidos de ler, lá isso é verdade. Não sei é se é a melhor maneira de uma pessoa se apresentar. A menos que a pessoa saiba dar-lhe um toque pessoal ou revelar uma formação ou experiência que sejam apelativas, os CVs agora são sempre mais do mesmo. Perceber se domina a gramática ou se tem alguma bagagem cultural...? Está bem, está.

Volta e meia passam-me pelas mãos CVs e, lá está, talvez por terem todos mais ou menos o mesmo formato, em poucos segundos ponho uns de lado e selecciono os que, em minha opinião, devem ser chamados para entrevista. Por vezes penso que, se calhar, ao fazerem os CVs as pessoas se apuram, pensam e repensam, põem todas as suas expectativas naquele documento e eu, afinal, ponho-os de lado em dois segundos. Mas as coisas são o que são. E, de resto, se uma pessoa procura alguém que saiba fazer alhos e aparecem CVs a referir que sabem fazer bugalhos... fazer o quê? Ou, se os CVs são tão standardizados, tão coisa nenhuma, como esperar que se perceba que ali está alguém com vontade de se afirmar como um bom profissional?

No verão, tínhamos recebido pedidos de acolhimento de estagiários. Achei que podia acolher dois. Dois colaboradores meus entrevistaram alguns, dois a fazerem mestrado, um a meio da licenciatura. Depois da entrevista disseram-me que um dos putos era completamente despassarado, tinha chegado tarde porque se tinha perdido, dava respostas um bocado inesperadas, um bocado fora da onda dos entrevistados e que tinha aparecido de jeans, ar completamente desenquadrado. Outro era um filho-família, compenetradinho, de fato e gravata, com objectivos de vida bem definidos. Um outro era tímido, pouco tinha falado. Os três pareciam ser conhecedores da matéria. Pelo que me contaram, achei logo que o despassarado era cá dos meus. O tímido também podia não ser má ideia, pelo menos não devia fazer barulho. O ambiciosinho e atiladinho é que não. Um dos meus colaboradores disse que alinhava. O outro estava cético e verdadeiramente nenhum dos candidatos a estagiários o tinha impressionado. Ficaram os dois que a um dos meus colaboradores e a mim me pareceram bem. Pois, no final do estágio, o que concluo é que fizeram um excelente trabalho e o melhor, que me impressionou e muito, foi o despistado. Que rapazinho fora de série. E o tímido também, que fantásticos profissionais vão ser.

Ultimamente não tenho estado em entrevistas pois não tenho tido necessidade de ter gente nova a trabalhar directamente comigo. Mas em áreas que dependem de mim têm estado a recrutar pessoas. Infelizmente não muitas que a economia não está para grandes expansões mas, ainda assim, algumas.

Hoje os meus colegas dos Recursos Humanos estiveram a fazer entrevistas a algumas pessoas que já tinham passado pelas fases anteriores de selecção.  Tinham-me antes falado neles e tinha-me parecido bem. Uma já tinha quarenta e tal anos e parecia experiente. Pareceu-me boa ideia ter uma pessoa sénior, com alguma tarimba. Depois das entrevistas, por telefone, falei com um dos meus colegas, um que apenas conheceu as pessoas nesta entrevista. Disse-me que um deles lhe parecia uma escolha segura, conhecedor da área, com formação superior adequada, já uns anos de experiência, sereno, seguro, simpático. A outra não o tinha convencido. Fiquei admirada porque, pelo CV e pela informação das fases anteriores, parecia pessoa sabedora da área e, pela idade, imaginei que pudesse ser uma âncora. No entanto, disse-me o meu colega que quando ele lhe tinha perguntado se gostava de trabalhar naquela área, ela respondeu pouco entusiasticamente que sim mas que também gostava de experimentar outras áreas. Ele perguntou-lhe em qual, por exemplo. Ela respondeu, referindo uma área que não tinha nada a ver com o lugar ao que estava a candidatar-se. Ele perguntou-lhe se tinha estudado ou adquirido alguma preparação para poder trabalhar nessa área. Ela disse que não. Eu ia no carro a ouvir este relato e disse logo que ela não, para esquecer. Se queremos uma pessoa para uma área, querermos alguém que mostre que gosta dessa área, que queira aí aprofundar os seus conhecimentos. A última coisa que vou querer é que se admita uma pessoa que, em vez de estar motivada na área, anda de cabeça no ar a ver se lhe aparece outra oportunidade para poder experimentar se gosta. Portanto, adiante, que se procure outra pessoa.

E esta conversa foi a meio da tarde. Depois disso tive duas reuniões, telefonemas, mails. Jantei, dormitei, acordei, dormitei, voltei a acordar. E continuo a pensar nisto: o que leva uma pessoa a candidatar-se a um emprego e, ao chegar ao que seria a última entrevista, deixar evidente que, provavelmente, é daquelas pessoas descontentes, que nunca está verdadeiramente bem em lugar algum mas que revela que não sabe bem do que gosta (pois, se gostasse mesmo, tinha investido pessoalmente na aprendizagem mínima sobre esse assunto)?

E, no entanto, e se não estou a avaliar bem a situação...? Poderia acontecer que até viesse a ser uma trabalhadora exímia? Posso estar a cometer uma tremenda injustiça?

Do que conheço destas coisas, acho que estou certa; mas...

Tenho trabalhado com pessoas assim. Ao fim de algum tempo revelam instabilidade, acham que poderiam fazer mais do que fazem -- mas noutra área -- porque acham que aquela em que estão está abaixo das suas possibilidades. E, no entanto, não são tão boas quanto se imaginam e, sobretudo, são pessoas tóxicas, sempre desmotivadas, que puxam o ânimo da equipa para baixo, sempre a reclamarem, sempre mal dispostas. 

Gosto de dar asas a quem as merece. Mas gosto também de me ver livre de quem nunca está bem em lado nenhum pois pessoas assim ensombram o ambiente e, tanto como a competência profissional, o mais importante numa organização é o ser-se capaz de trabalhar em equipa, é ser boa onda, ter vontade de atingir objectivos comuns, ajudar os outros, dar o litro mas sem se mostrar uma estrela. Ser único e especial mas não uma diva nem um cromo.



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Não sei se o que escrevi pode ser útil a quem anda à procura de emprego. Espero que sim.

(E se não vale a pena contar a história da carochinha ou ampliar a relevância do que fez, acho que é bom que o CV contenha algum toque de individualidade sob pena de, depois, a escolha ser ainda mais arbitrária do que, pela sua natureza, já o é. E, nas entrevistas, é importante que se se dê a perceber que agarrará o lugar com motivação, que tudo fará para que a equipa em que se insere dê o seu melhor; ou seja, que, se entrar para a empresa, pensará sobretudo nos objectivos da empresa e não, quase exclusivamente, nos seus próprios objectivos).

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Nina Simone interpreta Don't let me be misunderstood. Os retratos são de Steve McCurry.

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E desçam, por favor, para aderirem ao movimento #Protejam as vossas passarinhas

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4 comentários:

  1. O meu CV, que enviei pro forma à sociedade onde estou a estagiar, já depois de ter feita a entrevista, é aquilo a que se pode chamar europass chapa cinco. Dados, média de licenciatura, línguas dominadas, artigos publicados. Sem qualquer nota sobre as minhas "capacidade de liderança", "de trabalhar em grupo", "de resolver problemas", etc. Tenho vergonha de falar de mim nesses termos, como se me estivesse a pôr à venda. Um texto sobre as razões que me levaram a querer trabalhar em certo lugar, isso sim, poderá ter o seu interesse (a tal "letter of motivation"). Fiz uma entrevista numa das grandes sociedades de advogados para um estágio de verão, andava no 3º ano da faculdade, e a senhora dos recursos humanos que me entrevistou só me perguntava coisas do género: "como é que as outras pessoas a veem? O que pensam de si?" e eu "Gosto de pensar que me têm em boa conta, mas não lhe saberei dizer...". E ela insistia: "mas a sua perceção sobre a forma como a veem..." e eu a meter os pés pelas mãos, incapaz de dizer uma boa palavra sobre mim própria, só me vinham auto-críticas: que haveria pessoas que provavelmente me achavam convencida, ou que tinha a mania, talvez demasiado efusiva em discussões, etc. E a senhora a deliciar-se: "Ah sim e porquê? Por que acha que passa essa imagem?". E eu a pensar: se me perguntasse como eu vejo o Direito, a profissão de advogado, caramba, o futebol, a política, as artes, não me ficaria a conhecer melhor do que forçando-me a falar de mim própria. Sou incapaz de entrar no jogo da auto-promoção e não é por até nem ter os meus momentos de me achar a maior (ups!), mas, bolas, não o impõe o decoro. Às vezes, em conversa com amigos e família, até falo das minhas qualidades e defeitos (e dos outros), mas surge em conversa, natural, não é num contexto em que estou a tentar obter um lugar.
    Abraço,
    JV

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  2. Apercebi-me agora de que sempre que queria usar um ponto de interrogação me saía um ponto final. Tenho de deixar de escrever comentários no telemóvel...
    JV

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  3. Olá JV,

    Deve ser interessante entrevistá-la.

    Acho que é importante que a pessoa seja espontânea e acredito que a JV o é bastante. E reconheço que um potencial bom entrevistado pode virar mau se apanha pela frente um entrevistador que contrarie a natureza do entrevistado. As perguntas como as que refere são parvas, acho eu pois não apenas são previsíveis como levam o entrevistado para um território para o qual já se preparou ou que lhe é incómodo. Nestas coisas acho que é preferível dizer isso mesmo: estamos em terreno subjectivo no qual não me sinto à vontade para me pronunciar já que prefiro falar de questões mais objectivas.

    Eu também não gosto de me pôr a gabar-me. Acho ridículo.

    Sabe JV, nisto dos empregos também é importante que se vá trabalhar para um sítio em que a pessoa sinta que lhe dão valor pelo que ela é e não pelo diz que é. Por isso, acho importante que o entrevistado mostre que gostava de trabalhar lá não apenas para ter emprego mas porque aquela é uma empresa em que imagina que se sentiria bem ou onde se orgulharia de estar.

    (E quanto ao ponto de interrogação, não foi necessário: as frases souberam fazer-se entender).

    Um abraço, brava JV!

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  4. Concordo inteiramente. Tenho a sorte de estar a estagiar numa sociedade onde estou a fazer trabalhos de que gosto e em que me sinto valorizada. Nem estava a pensar começar já este ano o estágio, mas eles entraram em contacto comigo e gostei tanto dos sócios na reunião que tive com eles que aceitei.
    E acho que deve ser interessante ser entrevistada por si, UJM.Talvez um pouco intimidante, se quem lhe aparecer à frente for um autêntico totó ou um betinho petulante...
    Abraço,
    JV

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